sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Blog com Nova Roupagem

O Blog está com nova cara.


Carolina Ramos (Árvore)

Verde bandeira desfraldada ao vento,
árvore amiga, o olhar que te procura
busca repouso e vai achar alento
na sombra que lhe estendes, lá da altura!

A sede abrasa! E o fruto sumarento
entregas, com requintes de ternura,
a quem poda a raiz que é teu sustento
ao extrair do solo a seiva pura!

Ramos erguidos, abraçando o espaço,
tua ânsia de dar não tem cansaço!
Tua benção de amor não tem medida!

E embora tanto dês e nada colhas,
com o verde pincel de tuas folhas
vais colorindo de esperança a vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.

António Botto (A Rolinha Nervosa)

     Certa manhã, Nica zangou-se com Mica e Tica. Estas três rolas bravias não se davam muito bem.

     Nica afastou-se para um canto e ali ficou de olhos cerrados. Zangada, nem queria fixar as irmãs. E detestava a natureza inteira: os arvoredos, a lua, o sol, as estrelas, as nuvens, os caminhos, as fontes, - tudo, tudo a aborrecia ou enervava, dizia.

     Nisto, um passarinho amarelo pôs-se a cantar empoleirado num galho de marmeleiro...

     - Tu não vês aquele pássaro, Mica, a fazer troça de ti?

     - Não pode ser, disse a Mica; a esta hora, os passarinhos têm mais em que pensar.

     Nica, então, distraiu-se, passeou, compôs o ninho, e quando nas águas de um charco molhou o bico e lavou as penas do peito, o mesmo passarinho amarelo ainda gorjeava alegremente.

     - Que passarinho tão amável!, exclamou ela. A cantar e a chamar-me linda! Não é o mesmo que à pouco se pôs a troçar de mim, certamente.

     - É o mesmo, responde Tica; e diz o que à pouco dizia. Tu é que não és a mesma.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

Marly de Oliveira (Antologia Poética)

CERCO DA PRIMAVERA

5.


Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.

Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.

Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.

Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.

Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.

RETRATO

Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.

               De Cerco da Primavera (1958)

EXPLICAÇÃO DE NARCISO

1.

A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranqüilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso;
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.

18.

Num tempo alheio ao tempo, a sós comigo
mais uma vez diante de mim, me escuto:
o meu rebanho ficou longe, longe,
e sou pastor apenas do meu luto.
Mana de mim como um silêncio o amor,
e uma angústia, uma estrela em que me escudo
extremamente para não morrer,
de meus próprios recursos inseguro.
Que saudade de mim me vem agora
quando revejo a fonte com seu brilho
onde meu rosto urgia um tempo-outrora!
Permanência do amor ou desafio
ao tempo, no âmago de mim se vota
um sol eterno e cada vez mais frio.

               De Explicação de Narciso (1960)

A SUAVE PANTERA

1.

Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
— em silêncio e lisura —
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.

11.

Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.

               De A Suave Pantera (1962)

O SANGUE NA VEIA
25.

Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.

               De O Sangue na Veia (1967)

XVI

                              À Mônica (aos três anos)

Um súbito silêncio enfreia a mágica
aventura de estar entre os objetos
que apenas reconhece. Ela adormece
a meus pés como um gato, um bicho quieto,
com doçura felina, suave e intensa,
recolhida em si mesma contra o frio
da noite. Ela me é, me dorme no seu sono,
desdobrada de mim, além de mim,
que a recebi sem entender, atenta
ao milagre de vida de que fui
receptáculo apenas, serva mansa,
e em tudo obediente à natureza.
Dorme a meus pés, e meu amor reinventa-se
vendo-a tão calma assim, tão sem defesa.

               De Contato (1975)

Clarice

XVIII.

Revejo seu rosto nos vários retratos:
cada um capta algo, nenhum a totalidade
do que ela foi, do que é ainda,
a cada instante outra/renovada.
Eu sei que ela tocou no escuro o Proibido
e conheceu a Paixão
com todas as suas quedas.
Quem esteve a seu lado sabe
o que é fulguração de abismo
e piscar de estrela na treva.

               De Aliança (1979)

Alguns poemas

11. 
Um dia vou ser apenas uma biografia.
Nem isso, talvez, uma inscrição
numa pedra qualquer,
no pó que o vento leva,
na memória inconstante dos que amei
de forma certa.

29. Ser poeta não é ambição minha,
diz Pessoa,
é a minha maneira de estar sozinho.
É também a maneira de esquivar-me
à ação, eu acrescento,
subjugada por forças poderosas,
enquanto o pensamento
cava fundo
no abismo.

30. A função do poema: conhecer,
A função do teorema: desafio
que leva à abstração, à conjetura.
A função da esperança: convencer
que o poema, o teorema, a ciência, a invenção,
o semáforo, a história, a explosão
de Hiroshima; Picasso e sua glória;
o decalque, a estrutura, a rachadura,
a ruptura, a eternidade, a desmemoria;
a ignorância, a pobreza, a riqueza,
a insuficiência, a morte têm sentido.

INSCRIÇÃO

Eu. E diante da vida,
com meu azul intacto,
Um esbatido de pássaros.
Alto no vento. Grato.

A sensação de ser
só, uno, um, completo.
No redondo das horas,
pleno, lúcido, cego.

O que de mim salvando
se vai a cada instante,
nesse morrer diário
e sucessivo: um canto.

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO

1. 
Lume, teu rosto,
agudo e novo
como um descobrimento,
E tuas mãos silêncio,
como noturno fruto
pendido sobre mim.
Eu em ti,
com meus arroubos de ave,
mas sem querer partir.

2. 
Quando às vezes te assalto
com meu querer noturno,
ébrio de mãos e beijos,
não é alguém que busca
o limiar de um lábio
ou vinho, para a mesa.
Alguém de copo em mão,
no umbral da tua porta,
o infinito suposto
quer, para além do umbral
e para além da porta.

3. 
No céu inteiro penso,
amplo de vôos límpidos
e bicos musicais,
torso desnudo e azul
como o de um pombo triste,
nuvens como asas doces,
de um corpo altivo e elástico.
No espaço em que naufrago,
onde as horas não querem
portais ou tetos, penso,
quando te chamo pássaro.

MORTE

E lutarás comigo,
fresca ainda de vento,
presa às luzes do dia
pelos cabelos últimos.
Quebrantarás meus olhos,
sei.
Apagarás as mãos
para a ternura,
para o amor,
também sei.
E alçarás a distância
entre mim e quem amo,
imperdoável.
E me terás por fim.
Mas se entrega, dura.
Mais que difícil,
fria.

ELEGIA
 
Teu rosto é o íntimo da hora
mais solitária e perdida,
que surge como o afastar-se
de ramos, brando, na noite.
Não choro tua partida.

Não choro tua viagem
imprevista e sem aviso.
Mas o ter chegado tarde
para o fechar-se da flor
noturna do teu sorriso.

O não saber que paisagens
enchem teus olhos de agora,
e este intervalo na vida,
esta tua larga, triste,
definitiva demora.
Fontes:
Carlos Machado. Poesia.net – numero 272 – ano 10. www.algumapoesia.cdm.br
http://marlydeoliveira.blogspot.com/search/label/CERCO%20DA%20PRIMAVERA

Lima Barreto (Anúncios…anúncios)

Quando bati à porta do gabinete de trabalho do meu amigo, ele estava estirado num divã improvisado com tábuas, caixões e um delgado colchão, lendo um jornal. Não levantou os olhos do quotidiano, e disse-me, naturalmente:

- Entra.

Entrei e sentei-me a uma cadeira de balanço, à espera de que ele acabasse a leitura, para darmos começo a um dedo de palestra. Ele, porém, não tirava os olhos do jornal que lia, com a atenção de quem está estudando coisas transcendentes. Impaciente, tirei um cigarro da algibeira, acendi-o e pus-me a fumá-lo sofregamente. Afinal, perdendo a paciência, fiz abruptamente:

- Que diabo tu lês aí, que não me dás nenhuma atenção?

- Anúncios, meu caro; anúncios...

- É o recurso dos humoristas à cata de assuntos, ler anúncios.

- Não sou humorista e, se leio os anúncios, é para estudar a vida e a sociedade. Os anúncios são uma manifestação delas: e às vezes, tão brutalmente as manifestam que a gente fica pasmo com a brutalidade deles. Vê tu os termos deste: "Aluga-se a gente branca, casal sem filhos, ou moço do comércio, um bom quarto de frente por 60$ mensais, adiantados, na Rua D., etc., etc." Penso que nenhum miliardário falaria tão rudemente aos pretendentes a uma qualquer de suas inúmeras casas; entretanto, o modesto proprietário de um cômodo de sessenta mil-réis não tem circunlóquios.

- Que concluis daí?

- O que todos concluem. Mais vale depender dos grandes e dos poderosos do que dos pequenos que tenham, porventura, uma acidental distinção pessoal. O doutor burro é mais pedante que o doutor inteligente e ilustrado.

- Estás a fazer uma filosofia de anúncios?

- Não. Verifico nos anúncios velhos conceitos e preconceitos. Queres um outro? Ouve: "Senhora distinta, residindo em casa confortável, aceita uma menina para criar e educar com carinhos de mãe. Preço razoável.Cartas para este escritório, a Mme., etc., etc."

Que te parece este anúncio, meu caro Jarbas?

- Não lhe enxergo nada de notável.

- Pois possui.

- Não vejo em quê.

- Nisto: essa senhora distinta quer criar e educar com carinhos de mãe, uma menina; mas pede paga, preço razoável - lá está. É como se ela cobrasse os carinhos que distribuísse aos filhos e filhas. Percebeste?

- Percebo.

- Outra coisa que me surpreende, na leitura da seção de anúncios dos jornais, é a quantidade de cartomantes, feiticeiros, adivinhos, charlatães de toda a sorte que proclamam, sem nenhuma cerimônia, sem incômodos com a polícia, as suas virtudes sobre-humanas, os seus poderes ocultos, a sua capacidade milagrosa. Neste jornal, hoje, há mais de dez neste sentido. Vou ler este, que é o maior e o mais pitoresco. Escuta: "Cartomante - Dona Maria Sabida, consagrada pelo povo como a mais perita e a última palavra da cartomancia, e a última palavra em ciências ocultas; às excelentíssimas famílias do interior e fora da cidade, consultas por carta, sem a presença das pessoas, única neste gênero - máxima seriedade e rigoroso sigilo: residência à rua Visconde de xxx, perto das barcas, em Niterói, e caixa postal número x, Rio de Janeiro. Nota: - Maria Sabida é a cartomante mais popular em todo o Brasil". Não há dúvida alguma que essa gente tem clientela; mas o que julgo inadmissível é que se permita que "cavadoras" e "cavadores" venham a público, pela imprensa, aumentar o número de papalvos que acreditam neles. É tolerância demais.

- Mas, Raimundo, donde te veio essa mania de ler anúncios e fazer considerações sobre eles?

- Eu te conto, com algum vagar.

- Pois conta lá!

Eu me dava, há mais de um decênio, com um rapaz, cuja família paterna conheci. - Um belo dia, ele me apareceu casado. Não julguei a coisa acertada, porque, ainda muito moço, estouvado de natureza e desregrado de temperamento, um casamento prematuro desses seria fatalmente um desastre. Não me enganei. Ele era gastador e ela não lhe ficava atrás. Os vencimentos do seu pequeno emprego não davam para os caprichos de ambos, de forma que a desarmonia surgiu logo entre eles. Vieram filhos, moléstias, e as condições pecuniárias do ménage foram ficando atrozes e mais atrozes as relações entre os cônjuges. O marido, muito orgulhoso, não queria aceitar os socorros dos sogros. Não por estes, que eram bons e suasórios; mas pela fatuidade dos outros parentes da mulher, que não cessavam de lançar na cara desta os favores que recebia dos pais e decuplicar os defeitos do seu marido. Freqüentemente brigavam, e todos nós, amigos do marido, que éramos também envolvidos no desprezo liliputiano dos parentes da mulher, intervínhamos e conseguíamos apaziguar as coisas por algum tempo. Mas a tempestade voltava, e era um eterno recomeçar. Por vezes, desanimávamos; mas não nos era possível deixá-los entregues a eles mesmos, pois ambos pareciam ter pouco juízo e não saber afrontar dificuldades materiais com resignação.

Um belo dia, isto foi há bem quatro anos, depois de uma disputa infernal, a mulher deixa o lar conjugal e procura hospedagem na casa de uma pessoa amiga, nos subúrbios. Todos nós, os amigos do marido, sabíamos disso; mas fazíamos constar que ela estava fora com os filhos. Em determinada manhã, aqui mesmo, recebo uma carta com letra de mulher. Não estava habituado a semelhantes visitas e abri a carta com medo. Que seria? Fiz uma porção de conjecturas; e, embora com os olhos turvos, consegui ler o bilhete. Nele, a mulher do meu amigo pedia-me que a fosse ver, à rua tal, número tanto, estação xxx, para se aconselhar comigo. Fui de coração leve, porque a minha intenção era perfeitamente honesta. Em lá chegando, ela me contou toda a sua desdita, passou dez descomposturas no marido e disse-me que não queria saber mais dele, sendo a sua tenção ir para o interior trabalhar. Perguntei-lhe com o que contava. Na sua ingenuidade de menina pobre, criada com fumaças de riqueza, ela me mostrou um anúncio.

- Então, é daí?

- É daí, sim.

- Que dizia o anúncio?

- Que, em Rio Claro ou São Carlos, não sei, numa localidade do interior de São Paulo, precisavam-se moças para trabalhar em costuras, pagando-se bem. Ela me perguntou se devia responder, oferecendo-se. Disse-lhe que não e expliquei-lhe a razão. Tão ingênua era ela, que ainda não tinha atinado com a malandragem do anunciante... Despedi-me convencido de que seguiria o meu conselho leal; mas, estava tão fascinada e amargurada, que não me atendeu. Respondeu.

- Como soubeste?

- Por ela mesma. Ela me mandou chamar novamente e mostrou-me a resposta do meliante. Era uma cartinha melosa, com pretensões de amorosa, em que ele, o desconhecido correspondente, insinuava que coisa melhor do que costuras ela iria encontrar em Rio Claro ou São Carlos, junto dele. Pedia-lhe o retrato e, logo que fosse recebido, se agradasse, viria buscá-la. Era rico, podia fazer.

- Que disseste?

- O que devia dizer e já tinha dito, pois já previa que o tal anúncio fosse uma cilada, e cilada das mais completas. Que dizes agora do meu pendor pelas leituras de anúncios?

- Tem o que se aprender.

- É isto, meu caro: há anúncios e... anúncios...

Efigênia Coutinho (Flor do Pecado)

Nesta dança ardente em chamas alma desperta
E serpenteia todo o meu corpo em sedução,
Como num jogo, incendeia a pele em descoberta
Propenso a exalar o incenso da louca paixão...

O ardor em mim instalado vira um braseiro
De rubro sentir, que toda pele se inflama
E a entranha ardente, deste fogo é o picadeiro,
De onde se devora ao leito desejos,de toda trama.

E em cada beijo sedutor todo o nosso sonho,
Acalenta audaz o desejo dessa entrega total...
E na vontade de ser possuída componho,
Ao corpo a chama deste sentir seqüencial.

Agiganta-se dentro de mim o teu ser agrilhoado,
E no meu íntimo a chama ardente em sinfonia,
Exala de todo o ser o aroma da flor do pecado,
Em desejos ardentes numa eloqüente sincronia!

Fonte:
Poema enviado pela autora

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Natal n. 434)

 Uma Trova Nacional

Se queres ter a certeza
de fazer um gesto nobre,
que a sobra da tua mesa,
vá para mesa do pobre!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova Potiguar


Peço a “Noel”, com leveza,
que ao chegar do polo norte,
bote ao menos pão na mesa
dos que nasceram sem sorte.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada


2002 - Garibaldi/RS
Tema: Natal - M/H


Meu Natal, hoje, é melhor,
pelo conforto e os bons tratos,
mas o sonho era maior,
quando eu não tinha sapatos!
–JOSÉ MESSIAS BRAZ/MG–

Uma Trova de Ademar


Para a ceia que traduz
Um grande significado,
quero que seja Jesus
meu principal convidado.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


É Natal! A casa cheia
e a família reunida
no amor de Deus faz a ceia,
dividindo o pão da vida!
–VERA MARIA BASTOS/MG–

Simplesmente Poesia

Amigo Ademar!
                         –NEMÉSIO PRATA/CE–


Vejo que és grande em bondade
para com este aprendiz;
só pode ser caridade:
pois nada de mais eu fiz!

"Grande Poeta" não sou,
oh menestrel das salinas;
mas meu coração amou
as mensagens natalinas!

Estrofe do Dia 

No Natal compre presentes
compre flores e perus,
encha a árvore de bolinhas
enfeite com muita luz;
prepare um belo jantar
e não deixe de convidar
o nosso amado Jesus.
–JOSÉ ACACI/RN–
         
 Soneto do Dia

Natal dos Meus Sonhos
                      –JOSÉ ANTONIO JACOB/MG–


Se não houver partilha de bondade
Não há Natal na vida que amenize
A dor profunda da desigualdade
Entre os irmãos de casa e de marquise.

Que a ceia repartida simbolize
O pão sagrado da fraternidade
E que consagre a paz e realize
Esse Natal de fato e de verdade.

De não ter criança pobre numa esquina
A olhar brinquedos dentro da vitrina,
Onde “Papai Noel” sorri contente...

Natal é muito mais, e mais seria,
Se a gente retribuísse o dia a dia
Que a vida nos concede de presente.
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Graciliano Ramos (A Última Noite de Natal)

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura.

Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois  ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam. Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça  luminosa dos repuxos.

(20 de dezembro de 1941).

Fonte:
Linhas Tortas. RJ: Editora Record, 1983.

Carlos Lúcio Gontijo (Poesias Escolhidas)

ANO NOVO

Não me importa a frase feita
Se a mulher amada não me vem
Não me importa nenhuma seita
Se a fé diz-me amém
Não me importa o termo
Se todos os ermos me acham
Não me importam os fenestrados
Se as portas não me encaixam
Não me importam os enlatados
Se a toda fome me abro
Não me importa o velho quadro
Se já pendurei-me um novo olhar.

CASA DE HERANÇA

Os olhos são o cio das luzes
Sem eles a claridade não teria razão
Nossa emoção espiritual é fio condutor
Calor que faz a prosopopéia dos objetos
Por isso, mãe, ao vender nossa casa
Foi como negociar meu berço
Cortar as asas de pássaro
Perder o terço de orações
Mãe, confesso que chorei
Molhei meu rosto feito nuvem de chuva
Abandonei paredes que erguemos com a mão
E o limoeiro, mãe, lá no meio do terreiro
Quando for de seca a estação
Quem vai adivinhar-lhe a sede?
Mãe, em outra rede a paisagem da janela
Nova sentinela para nossas coisas
Recordo uma vida de menos solidão
Quando antes desta minha viuvez de mãe
Até havia mais doce na acidez do limão!

JESUS SALVADOR

Do Menino-Jesus todos se sentem donos
         Assentados no trono frio do egoísmo humano
         Fazem-No patrono da eterna crucificação
         Depositário fiel de repetida salvação
         Relicário dos Céus à disposição do pecador
         Pincel miraculoso a nos renovar a cor
         Apontando-nos o amor como iluminada prece
         Oração da qual jamais se esquece o Criador! 

LÓGICA DAS BORBOLETAS

Cada borboleta é uma alavanca
Que arranca tumores do chão
Tudo então ganha asas e voa
Em coisa à toa se transforma toda mágoa
Não há por que se afogar em água rasa
Quando até larva se ergue alada
E faz do rastejar vida passada!

ALDEIA CAPITAL

Meço infinitos entre concreto
Num secreto desejo de abolição
Como rio que  sonha cachoeira
Meus olhos voam na poeira das ruas
Senzalas nuas da injustiça social
Crucificando braços, erguendo escuridão
Paisagens e laços da construção capital

Fonte:
Poesias enviadas pelo autor

Carlos Correia Santos (Aplausos para o Espetáculo do Tropeço!)

Chegue-se. Tome seu lugar nessa vã e imensa casa de espetáculos que sãos os tempos atuais. Valha-se de seus doces porque o açúcar sempre atenua a dor. Acomode-se plenamente a contento e prepare-se para aplaudir, pois o espetáculo vai começar.

Espetáculo?

Qual?

O tropeço.

Sim, o tropeço. Eis o grande espetáculo que tanto ganha ovações, aplausos e fãs nos dias de hoje. O tropeço.

Prostram-se as massas diante de seus famigerados twitters e facebooks para ver quem caiu, quem desabou, quem ruir. E assim se ri. O que se quer é rir. Gritar aos ventos todos dessa nau insanidade chamada internet. Gritar: aquele imbecil ali tropeçou. Caiamos como abutres sobre ele. Sim, façamos do clique bico de corvo para furar a carne daquela calma, afligir aquela alma. Lancemos o mouse sobre aquele que tropeçou e, qual ratos a despedaçar lixo (Ave, Chico Buarque), espalhemos tristeza e crueldade.

Em pensar que houve um tempo no qual compartilhar era apenas etimologia: partilhar com. Dividir o que de bom, o que de bem. Agora... Num compartilhar, compraz-se a infâmia. Compra-se intolerância. Vende-se a dignidade. Acha-se o pouco caso. Perde-se a paz de espírito.

Na platéia, o ávido espectador do tropeço, quando não encontra, caça. O fantoche da sanha geral, que baila sobre o fio da navalha diante da turba coberta pela burca do anonimato, tem que se estatelar, tem que se esborrachar. Ah, ele não fará seu número? Pois a turba o leva à lona. Assim, feito perdigueiros das bordas do apocalipse, os espectadores do tropeço dedicam-se a criar dramaturgias que derrubem.

No entanto...

Tão no entanto...

Dos saltos ninguém fala. Para os saltos aplausos tão poucos... Não interessa festejar o que põe para frente. Aos acorrentados à mediocridade, pouco interessa celebrar o ir adiante.

E segue, desta feita, em cartaz o show do tropeço. O irônico é que as platéias se esquecem de algo divinamente poético. O espetáculo da vida é democrático. Você está aí nessa fétida platéia aplaudindo quem cai? Caindo na gargalhada? Aplausos para você. Amanhã o papel de protagonista, bebê, certamente há de ser seu.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Caravelas da Poesia III

CESÁRIO VERDE
Lúbrica


Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um papel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do pazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

ALICE GOMES
Na idade dos porquês

Professor diz-me    porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor diz-me    porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda    gira    rodopia
e cai morto no chão...

Tenho nove anos    professor
e há tanto  mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas falas    professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.

É a luta    professor
a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes    professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.

Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.

DAVID MOURÃO-FERREIRA
Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

BOCAGE
O corvo e a raposa

É fama que estava um corvo
Sobre uma árvore poisado
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a raposa matreira
A qual, pouco mais ou menos
Lhe falou desta maneira:

- Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra fénix, se acaso,
Tens a voz como a figura.

A tais palavras o corvo
Com louca, estranha afoiteza
Mor mostrar que é bom solfista
Abre o bico e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho
E diz: - Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
à custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem destas para teu uso.
Rosna então consigo o corvo
Envergonhado e confuso:

- Velhaca, deixou-me em branco
Fui tolo em fiar-me dela
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.

ANTÓNIO GEDEÃO
Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as núvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Foge, foge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

AL-BERTO
Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Coracy Teixeira Bessa (Colheita Noturna)

Rua deserta. Ao longe, os últimos ruídos na noite que se prepara para repousar à espera da próxima manhã. Vulto solitário, a garota, quase ainda criança, se move como sombra indecisa.

Corre e colhe. Colhe. Corre. De tonel em tonel, de saco em saco, do lixo recolhe o hipotético sustento. Latas, vidros, plásticos e papéis configuram o (im)provável lucro. Corre e colhe sujeira, cortes, arranhões. Aos magros dedos, que não aprenderam a escrever nem contar, diligentemente esmiúçam como se fossem à cata de tesouros. Rende-se à tentação de guardar para si um vidrinho vazio de perfume. Aspira-lhe os resquícios do odor outrora ali guardado. Devaneia: um vestido vermelho, um par de sapatos combinando, uma passadeira bordada cingindo-lhe a raiz dos cabelos. E o perfume. Não sabe se é de rosa, jasmim ou alguma flor exótica, daquelas pelas quais gente que pode paga uma fortuna. O das rosas que aspirara no enterro da mãe, emurchecidas, lhe deixara uma desagradável impressão. Do jasmim, remota lembrança da casa da avó, doce demais, deixara-a levemente enjoada. Seria de algo que desconhecia…

O tabefe no ouvido pega-a desprevenida. Rodopia e cai sobre um monte de caixas de papelão vazias – ainda com o vidrinho de perfume na mão. Enfrenta os congestos olhos de beberão contumaz do padrasto: “Ainda não terminei! Falta procurar no lixo da lanchonete! Por favor, pai Dé!”. Surdo ao seu apelo o homem vocifera: “Tu pensa que pode me enrolar?! Quem te deu esse vidro de perfume, vagabunda?!”. Chocada, tentando se levantar, a garota procura se defender: “Ninguém! Achei aqui no lixo…”. Em resposta, o homem chuta-a brutal e repetidamente. O vidrinho de perfume espatifa-se além. Antes que possa recompor o corpo contorcido pela dor, o homem agiganta-se sobre a menina indefesa e a violenta. Satisfeito, cambaleando, apossa-se do saco contendo o produto da colheita noturna da garota e sai à procura de algum boteco ainda aberto àquelas horas…

Sobre os refugos da cidade, uma vida se esvai lentamente, ceifada pela selvajaria (in)humana.

O caminhão coletor de lixo, nesta madrugada, recolhera mais que sacos, caixas e engradados?

Fonte:
Academia de Letras de Maringá. III Concurso Literário Cidade de Maringá – Modalidade Crônica – Troféu Luiz Lourenço. Disponível no site da Academia de Letras de Maringá.

Efigenia Coutinho (Trovas Avulsas)

Meu pescador enlaçado
quero todo o teu carinho,
 sonho um abraço apertado,
vou me perder no caminho.

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes
pescando nossa emoção.

Acreditando em Deus, fui
pescando meus sonhos sim,
e lá onde o sonho flui,
encontrei você em mim!

Voltar sonhar, não me peças...
perderia a insensatez,
creria em  tuas promessas
p’ra arrepender-me outra vez.

Essa foi a trova classificada com Menção Especial:

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes,
pescam nosso coração.

Fonte:
Trovas enviadas pela autora

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja –VI – Outros convidados

Em seguida veio o alfaiate que matava sete de um golpe. Veio também o soldadinho de chumbo que depois de derretido ao fogo se transformou em coração.

— E como virou soldadinho outra vez ?— quis saber Emília.

— Uma fada, que leu minha história — chorou uma lagrimazinha tão sentida que virei soldado outra vez.

— E a dançarina de saiote cor-de-rosa? Morreu no fogo também?

— Essa morreu para sempre — respondeu o soldadinho, fingindo que se assoava, mas de fato enxugando os olhos. O burrinho supunha que como era soldado não podia demonstrar fraqueza, chorando.

Depois veio um Patinho Feio, filho daquele outro que virara cisne. Assim que entrou, Emília, que já tinha visto tia Nastácia matar um pato, foi depressa cochichar-lhe ao ouvido:

— Não saia daqui, não vá à cozinha, ouviu? Lá mora uma fada preta que não tem piedade nem de frangos nem de patinhos. Pega os coitados e vai logo lhes torcendo o pescoço. Sabe para quê? Para assá-los no forno, imagine!...

Tamanho susto levou o patinho, que teve de encostar-se à parede, mais pálido que uma vela de cera — das que não são cor-de-rosa. Hansel e Gretel vieram em seguida, sendo muito festejados.

Emília quis saber notícias daquele ossinho que mostravam à feiticeira cada vez que ela dizia: “Hansel, mostre o dedinho, para eu ver se está engordando.” Emília achava que como tinham sido salvos por aquele ossinho, era injustiça não terem feito dele um colar para ser trazido ao pescoço. Depois chegou a Xerazade, acompanhada de todos os heróis das Mil e Uma Noites. Como não pudessem entrar na sala, muito pequena para contê-los todos, tiveram de ficar de fora.

Narizinho, Emília e as princesas correram à janela, donde puderam regalar-se de ver o Pescador e o Gênio, o Cavalo Encantado, os príncipes Codadad e Ahmed, Sindbad o Marujo, Morgiana e mais uma multidão de sultões, sultanas, califas e escravos núbios, pretos e lustrosos como jabuticabas.

— Por que não trouxe também o pássaro Roca? – perguntou Emília à Xerazade.

— Que idéia! — respondeu a princesa sorrindo. — Para que esse bruto derrubasse uma pedra em cima do sítio de dona Benta e nos esmagasse a todos, como fez com o navio de Sindbad?

Depois vieram os heróis gregos, o valente Perseu que matou a Górgona, o heróico Teseu que matou o Minotauro e até a cabeça da Medusa, espetada na ponta de um pau, com aquela porção de cobras se mexendo em lugar de cabelos. Tantos personagens maravilhosos vieram, que o terreiro de dona Benta ficou de não caber um alfinete.

Narizinho olhava, olhava, no maior êxtase de sua vida. Só reis e príncipes e fadas e anões e madrastas boas e más, e bruxas e mágicos de chapéus em forma de cartucho, e ursos que viram príncipes, e lobos de dentuça arreganhada... Mas Peter Pan não aparecia — o que muito decepcionava Pedrinho. Seu grande desejo era justamente conhecer Peter Pan. Estavam todos à janela, regalando os olhos naquele espetáculo nunca visto no mundo, quando Emília se pôs a filosofar.

— Estou pensando na vaca mocha — disse ela. — A coitada costuma deitar-se aí no terreiro todas as tardes. Imaginem a surpresa dela agora! Olha dum lado, vê um rei. Vira-se de outro, dá com um anão. Sacode a cauda e bate numa princesa. A coitada deve de estar que nem mover-se pode. Se não morrer de medo, é capaz de secar o leite — e amanhã dona Benta vai ficar danada!...
–––––––
Continua... Cara de Coruja– VII – A Coroinha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Antonio Botto (Leviandade)


Havia uma figueira muito velha, e o dono, que também era velhote, um dia, depois de a olhar, exclamou:

- Esta árvore não presta.

Durante setenta anos, carregadinha, dera saborosos frutos, mas, maltratada, carcomida pelo tempo, apenas as suas folhas, quando o sol na Primavera aquecia as almas e o mundo, rebentavam ainda viçosas, plenas de graça e de frescura. Já não podia dar figos.

Outro dia, o velho dono, voltando-se para o filho mais novo, murmurou num tom velado de saudade e de tristeza:

- Creio que é tempo de eu poder descansar um pouco e ficar em sossego, sem canseiras, sem cuidados, a aproveitar esta luzerna de vida que me resta, depois de setenta anos de trabalho.

- Setenta anos!, como a figueira, meu pai!

- O velho baixou a cabeça e nunca mais repetiu: - Esta árvore não presta.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. Livraria Bertrand

Sérgio Reis (Couro de Boi)


Conheço um velho ditado, que é do tempo dos agáis.
Diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai.
Sentindo o peso dos anos sem poder mais trabalhar,
o velho, peão estradeiro, com seu filho foi morar.
O rapaz era casado e a mulher deu de implicar.
"Você manda o velho embora, se não quiser que eu vá".
E o rapaz, de coração duro, com o velhinho foi falar:
Para o senhor se mudar, meu pai eu vim lhe pedir
Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair
Leve este couro de boi que eu acabei de curtir
Pra lhe servir de coberta aonde o senhor dormir
O pobre velho, calado, pegou o couro e saiu
Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu
Correu atrás do avô, seu paletó sacudiu
Metade daquele couro, chorando ele pediu
O velhinho, comovido, pra não ver o neto chorando
Partiu o couro no meio e pro netinho foi dando
O menino chegou em casa, seu pai foi lhe perguntando.
Pra quê você quer este couro que seu avô ia levando
Disse o menino ao pai: um dia vou me casar
O senhor vai ficar velho e comigo vem morar
Pode ser que aconteça de nós não se combinar
Essa metade do couro vou dar pro senhor levar.

Cornélio Pires (Trovas da Vida)


PREFÁCIO
Desejava ter comigo
Uma jóia de alto preço
Não tendo, porém, o ouro
Esse propósito, esqueço...

Mas tendo fé em mim mesmo
Lembro-me, com razão
De ofertar-lhes este livro,
Que me expressa a gratidão

AMBIÇÃO
Conserva a simplicidade,
Observa onde te pões,
A ambição domina os homens,
EM todas as direções.

AMOR
Amor puro é qual diamante
De beleza singular,
Mas se é vendido ou tem preço,
Qualquer um pode comprar.

AMOR NO ALÉM
De alma para outra alma
O amor é um laço tão forte
Que vejo muitos casais
Unidos depois da morte.

ANOTAÇÃO
Jesus deu valor ao pouco:
“Pão nosso de cada dia”
Se tiveres mais e mais,
O “muito” te arruinaria.

BARULHO
Para quem pensa e trabalha
Em benefícios reais
Qualquer barulho atrapalha,
Silêncio nunca é demais.

BENÇÃO DE MÃE
Depois da cruz, Jesus viu
Que o Bom ladrão o seguia...
E o outro? Também foi salvo,
Pela benção de Maria.

BENDITA SEJA
Já que o mal nasce de nós
Como vem e quando vem,
Bendita seja a pessoa
Que apóia a força do bem.

CLONAGEM
Clonagem é um feito antigo;
Fala a Bíblia com razão.
Nosso pai creou Mãe Eva
Numa costela de Adão.

DESENGANO
Ele ajuntou prata e ouro,
Porém, não achou transporte,
Quando buscou pensativo,
A grande agência da morte.

DESEQUILÍBRIO
Há mulheres arruinadas
Na luta em que se consomem.
Não por fraqueza ou maldade,
Mas por desprezo do homem.

DESILUSÃO
Silvino era apaixonado
Pela jovem Maristela;
Numa festa da Laranja,
Silvino ficou sem ela.

DINHEIRO
Registro esta nota sábia
Do Doutor Joaquim de Malta:
“Riqueza não traz ventura,
Mas o dinheiro faz falta.”

DOENÇA
Muitas Vezes, a doença,
Por mais que aborreça e doa,
É socorro necessário
Para guardar a pessoa.

DUAS MÃES
Nossa Senhora chorava,
Lembrando o Filho... Horas mudas...
Alguém soluçou à porta,
Foi ver: Era a mãe de Judas.

DURAÇÃO DO AMOR
O amor é uma luz do Céu,
Dizia o mestre Joaquim,
Sem a praga do ciúme,
Tem duração do “sem-fim”.

ECONOMIA
O dono de muitas capas
Da mais rica às mais singelas
Nas horas de frio ou chuva
Veste somente uma delas.

ESTRELA CONSTANTE
No evangelho de Jesus,
Há uma estrela que nos guia
Que de nós nunca se afasta,
Tem o nome de Maria.

EXTRA-TERRESTRES
Extra-terrestre? Existem.
Não são notícia sem fundo;
Elias saiu da Terra
Numa nave de outro mundo.

FELICIDADE
Casais ricos e felizes
Vivem de festa e rumor,
No entanto, a felicidade
Conhece apenas o amor.

FÉ VIVA
Foi exemplo de fé viva
A jovem mãe de Belém;
Chorou com o filho humilhado,
Sem pedir nada a ninguém.

FORÇA
Avistando a força bruta
Ferindo ou pisando alguém,
Age em silêncio e auxilia
À nobre força do Bem.

GUERRA
A guerra surge por vezes
De nação para nação,
Mas é constante
Nos casos de opinião

HUMILDADE
A maior dama do mundo,
Mostrando humildade e fé,
Usava este nome simples:
Maria de Nazaré.

INDISCIPLINA
Há muita morte no mundo
Fora do tempo previsto,
Não por falta de assistência,
Sim, por falta de juízo.

LIBERDADE
Virtude alta e sublime
Ninguém quer viver sem ela:
É a liberdade, no entanto,
Que exige muita cautela.

LIÇÃO SIMPLES
Uma lição clara e simples
A que a verdade nos chama:
- Por força de obediência
Realmente ninguém ama.

MÃOS NOBRES
Branca, amarela ou morena
Nos sofrimentos da estrada
Se é mão que dá socorro
Será sempre abençoada

MORTO VIVO
Ao morrer, disse Romário:
“Volto já...”, falando a custo.
Após seis meses, voltou...
A esposa caiu de susto.

NÃO PODE
Deixou milhões para os órfãos
O avarento João Lasmar,
Deixou para a caridade
Porque não pode levar.

NO ALÉM
Em nosso estado no Além,
Seja em luz, penumbra ou treva,
O que importa é a consciência
Da vida que a gente leva.

PROGRAMA
Quem quiser ter vida longa
Pelos caminhos terrenos,
No curso do dia a dia
Coma pouco e fale menos

PRUDÊNCIA
Falta pouco. Não critiques.
Deixa os outros tais quais são.
Há quem passe a noite em festa
E amanheça em provação

RACISMO
Em qualquer grupo racista
De sábios crentes e ateus,
Perguntemos seriamente,
De que forma é a cor de Deus

REALIDADE
“O homem deixou milhões”
Falei ao sábio Jomar.
Disse-me o sábio: “Deixou
Porque não pode levar”.

RECADO FRATERNO
Se caíste em provação
Por falha de outra pessoa,
Em favor da própria paz,
Trabalha, ora e perdoa.

REFLEXÃO
O homem é sempre poder,
Faz tudo quanto ele quer.
No entanto, não nos esqueçamos:
Somos filhos de mulher.

REMÉDIO
Joel gritava xingando,
Na Fazenda Terra Oca;
O tio deu-lhe um remédio:
O xarope “calaboca”

SALÁRIO
Salário pobre e pequeno?
Não consigo ser ingrato.
Se tenho montes de arroz,
Ao comer, só tenho um prato.

SALÁRIO DE DEUS
Serviço pago é dinheiro
Entre nobres e plebeus;
Serviço-abnegação
Tem o salário de Deus

SE QUERES
Se queres cooperação
Para qualquer obra do Bem,
Não afastes a esperança
Do coração de ninguém.

SERVIÇO AO PRÓXIMO
Sigamos servindo aos outros
E escutai, amigos meus:
Quem trabalha para o bem
Colhe o salário de Deus.

TUDO PASSA
O tempo corre apressado
No campo, na rua, em casa
Tudo passa velozmente
Se a pessoa não se atrasa.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). Livro Trovas da Vida.
Digitalizado por Aparecida Tognato. Organizado por José Feldman.

Teófilo de Azevedo (Quadras Populares)


Para quem não sabe:
Quadra Popular
A forma lírica mais comum entre o povo; foi também utilizada por poetas de renome.
Composta por 4 versos de sete sílabas (redondilha maior), a rima surge geralmente no 2º verso e 4º versos, sendo os outros dois versos brancos (sem rima).
A quadra popular pode ser composta por uma única estrofe ou por várias.

Mandei buscar na botica
Remédio para uma ausência
Me mandaram uma saudade
Coberta de paciência

Sete e sete são quatorze
Com mais sete vinte e um
Soletra quem sabe ler
A paixão de cada um

Meu benzinho não é este
Nem aquele que lá vem
Meu benzinho está de branco
Não mistura com ninguém

Menina dos olhos pretos
Sobrancelhas de retrós
Dá um pulo na cozinha
Vá coar café prá nós

Quem quiser pegar morena
Arma um laço na parede
Que inda ontem peguei uma
Morena dos olhos verdes

Em cima daquela serra
Tem um ninho de carcará
Quando olho pra tua cara
Dou vontade de lançar

Atirei meu limão verde
Lá atrás da sacristia
Deu no ouro, deu na prata
Deu na moça que eu queria

Limoeiro pequenino
Carregado de limão
Eu também sou pequenino
Carregado de inluzão

Eu plantei e semeei
Carrapicho na “colonha”
A coisa que tenho raiva
É gente branca sem vergonha

A laranja de madura
Caiu nágua foi ao fundo
Os peixinhos estão gritando
Viva dom Pedro Segundo

Esta noite à meia-noite
Me cantava um gavião
Parecia que falava
Maria, meu coração

Cravo branco na janela
É sinal de casamento
Menina tira seu cravo
Inda não chegou seu tempo

Toda vez que considero
Que tenho de te deixar
Me foge o sangue na veia
E o coração do lugar

A garça pôs o pé n’água
Pode estar quarenta dia...
Eu fora do meu bem
Nem uma hora, nem um dia

Menina dos olhos pretos
Sobrancelhas de veludo
Vamos berganhar os olhos
Com sobrancelhas e tudo

Lá do céu caiu um cravo
De tão alto desfolhou
Quem quiser casar comigo
Vai pedir quem me criou

Eu joguei meu limão verde
Numa moça na janela
O limão caiu no chão
E eu caí no colo dela

Limoeiro pequenino
Carregado de “fulô’
Eu também sou pequenino
Carregado de “amô”

A perdiz pia no campo
Comendo seu capinzinho
Quem tem amor anda magro
Quem não tem, anda gordinho

Anum é pássaro preto
Pássaro do bico rombudo
Foi praga que Deus deixou
Pra todo negro beiçudo

Em cima daquela serra
Passa boi, passa boiada
Também passa moreninha
De cabelo cacheada

Batatinha quando nasce
Esparrama pelo chão
Meu benzinho quando dorme
Põe a mão no coração

Cigarrinho de papel
Fumo verde não fumega
Eu vejo moça bonita
Meu coração não sossega

As moças daqui da terra
Passam fome porque quer
Tanto coco macaúba
Tanto buriti no pé

Um coqueiro de tão alto
Que dá coco na raiz
Uma moça bonitinha
Com três palmos de nariz

Meu amor é só meu
Não é de mais ninguém
Quem tiver inveja dele
É fazer assim também

Amanhã eu vou-me embora
Eu não vou-me embora não
Se eu tivesse de ir-me embora
Eu não estava aqui mais não

O anel que tu me deste
Era de vidro e quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e já acabou

Caititu do Mato-Grosso
Corre mais do que cotia
Quando vejo mulher velha
Dou bênção e chamo tia

Se essa rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Ou de ouro, ou de prata
Para meu bem passear

Alecrim da beira d’água
Não se corta de machado
Corta só de canivete
Cara de sapo rejado

Minha mãe me deu um pente
Todo crivado de ouro
Para fazer uma pastinha
Na janela do namoro

Duas correntes pesadas
Eu arrasto sem poder
Uma é do meu capricho
Outra é do meu dever

Bate bate coração
Arrebenta este peito
Como cabe tanta mágoa
Num espaço tão estreito?

Da Bahia me mandaram
Um presente num canudo
Tinha mais de conto de réis
Fora o dinheiro miúdo

Ninguém viu o que vi hoje
Um macaco fazer renda
E também vi um peru
Caxeirando numa venda

Camisinha de meu bem
Não se lava com sabão
Lava com raminho verde
Água no meu coração

Você disse que vai embora
Eu também já quero ir
Você disse não vai mais
Eu também “arresorvi”

Lá no céu tem três estrelas
Todas três encarrilhadas
Uma é minha, outra é sua
Outra de minha namorada

Mandei fazer um sobrado
De vinte e cinco janelas
Pra prender moça bonita
Morena cor de canela

Em cima daquela serra
Tem um caldeirão de ferro
Quem falar de minha vida
Está na porta do inferno

Calango desceu pra baixo
Foi vender sua farinha
Lagartixa respondeu
Vende a sua e deixa a minha

Lá no céu tem três estrelas
Vestidinhas de nobreza
Quem quiser casar comigo
Não repare minha pobreza

Trepei num morro de fogo
Com “precata” de algodão
Desci numa ponta de nuvem
Com mil coriscos na mão

Eu não dou a mão rapaz
Nem que seja meu parente
Porque rapaz tem o defeito
De apertar a mão da gente

Comprei uma camisinha
Que custou mil e quinhento
Toda vez que visto ela
Acho muito casamento

O anel que tu me deste
Na procissão do Senhor
Era frouxo no meu dedo
Acochado no amor

Da folha da bananeira
Pingou três pingos de prata
Da família de meu bem
É só ele quem me mata

Em cima daquela serra
Corre água sem chover
Os mocinhos da cidade
Me namoram sem me ver

Essas meninas dagora
Só sabem namorar
Botam a panela no fogo
E não sabem temperar

Menina de olhos pretos
Que inda ontem eu reparei
Se há mais tempo eu reparasse
Eu não amava quem amei

Lá vai a garça voando
Com as penas que Deus lhe deu
Contando pena, por pena
Mais pena padeço eu

Eu plantei um pé de rosa
Para te dar um botão
O pé de rosa morreu
Eu te dou meu coração

Baixa baixa serraria
Que eu quero ver a cidade
Meu amor aqui tão perto
E eu morrendo de saudade

Amanhã eu vou-me embora
Pela semana que vem
Quem não me conhece chora
Que fará quem me quer bem

Se eu soubesse quem tu eras
Quem tu havia de ser
Meu coração não te dava
Para agora eu padecer

Você disse que bala mata
Bala não mata ninguém
A bala que mais me mata
São os olhos de meu bem

Menina toma esta uva
Da uva faça seu vinho
Seus braços serão gaiola
Eu serei seu passarinho

A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijinho de meu bem
De tão doce açucarou

Você disse que sou bonita
Mais bonito é seu cabelo
Cada cacho vale um conto
Cada conto vale um selo

Um coqueiro de tão alto
Pôs a rama na Bahia
Onde tem moço solteiro
Casado não tem valia

Lá no céu tem nuvem
Mas não é para chover
Antes de chegar domingo
Meu benzinho vem cá me ver

Sete cravos sete rosas
Na ponta de um alfinete
Meu benzinho está no meio
Servindo de ramalhete

Toda vez que o galo canta
No retiro onde moro
Me lembro do meu benzinho
Saio do terreiro e choro

Lá no céu está trovejando
Mas não é para chover
Meu benzinho está doente
Mas não é para morrer

Sete e sete são quatorze
Com mais sete vinte e um
Eu tenho sete namorados
Mas eu gosto é só de um

Sexta-feira faz um ano
Que meu coração fechou
Quem morava dentro dele
Tirou a chave e levou

Joguei o branco n’água
O moreno no jardim
Quem quiser o branco eu dou
O moreno é só para mim

Eu tenho um vestidinho
Todo cheio de babado
Toda vez que visto ele
Quarenta e cinco namorado

Em cima daquela serra
Tem um pé de papaconha
Tira a folha e lava a cara
Descarado sem vergonha

Em cima daquela serra
Tem dois pilãozinhos de ferro
Um bate, outro responde
Meu bem está no inferno

Ante-ontem à meia-noite
Saiu faca da bainha
Estão querendo me matar
Sabendo que a roxa é minha

O padre quando namora
Passa a mão pela coroa
Namora, padre, namora
Namorar é coisa boa

Menina não veste curto
Se tens a perna roliça
O padre da freguesia
Tudo que vê cobiça

Não me chame boiadeiro
Não sou boiadeiro não
Sou tocador de boiada
Boiadeiro é meu patrão

Quem tiver o segredo
Não conte à mulher casada
A mulher conta ao marido
O marido à rapaziada

Se eu soubesse da certeza
Que meu bem vinha cá hoje
Eu varria a casa cedo
Semeava pó de arroz

Amanhã eu vou-me embora
É mentira não vou não
Quem vai embora é meu corpo
Mas não vai meu coraçao

Em cima daquela serra
Tem um banco de areia
Onde assenta mulher velha
Pra falar da vida alheia

Esta noite eu tive um sonho
Mas, ó que sonho atrevido
Sonhei que estava abraçado
Com a forma de seu vestido

Esta noite eu tive um sonho
Um sonho todo de louco
Abraçado com uma pedra
Dando bicota num toco

Quem me dera estar agora
Lá no mato, no sertão
Onde está minha saudade
Onde está meu coração

Joguei meu chapéu pra cima
Para ver onde caía
Caiu no colo da velha
Cruz em credo, Ave Maria!

Adeus plantas, adeus rios,
Adeus gente do lugar
Vou partindo, vou chorando
Com vontade de voltar

Quando vim de minha terra
Muita gente lá chorou
Só uma velha muito velha
Muita praga me rogou

Quem inventou a partida
Não entendia de amor
Quem parte, parte chorando
Quem fica, morre de dor

Oh! linda Pirapora
Lugar de ganhar dinheiro
Vou ganhar mil e quinhentos
Na turma dos engenheiros

Marmelo é fruta gostosa
Onde dá na ponta da vara
Mulhe que chora por homem
Não tem vergonha na cara

Mamãe me chamou de feia
Ela só quer ser formosa
Ela vai ser roseira
Eu vou ser botão de rosa

Não tenho medo do homem
Nem do ronco que ele tem
O besouro também ronca
Vai se vê, não é ninguém

Em cima daquela serra
Tem um velho fogueteiro
Quando vê moça bonita
Fica todo regateiro

Você de lá e eu de cá
Ribeirão passa no meio
Você de lá dá um suspiro
Eu de cá, suspiro e meio

Eu pus minha mão na sua
Você a sua na minha
Ficou uma coisa justa
Como faca na bainha

Você ontem me falou
Que não anda nem passeia
Como é que hoje cedinho
Eu vi seu rastro na areia?

Não dês a ponta do dedo
Que logo te levam a mão
Depois da mão, vai o braço
Vai o peito e o coração

Uma velha muito velha
Mais velha que o meu chapéu
Foi pedida em casamento
Levantou as mãos pro céu

Um surdo disse que ouviu
Um pobre mudo dizer
Que um cego tinha visto
Um aleijado correr

Subi na serra do fogo
Com sapato de algodão
O sapato pegou fogo
E eu voltei de pé no chão

Prima pulga está doente
Taturana está parida
Meu compadre percevejo
Está de espinhela caída

Fonte:
Azevedo,Teófilo de. Literatura popular do norte de Minas: a arte de fazer versos.São Paulo, Global Editora, 1978. Cultura Popular, 3.

Cecília Meirelles (Natal na Ilha do Nanja)


Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu nascimento. Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, como nascem no horizonte, todos os dias e todas as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas. Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. Sofrem doenças, necessidades, desgostos como se andassem sob uma chuva de flores, porque o Natal chega: e, com ele, a esperança, o consolo, a certeza do Bem, da Justiça, do Amor. Na Ilha do Nanja, as pessoas acreditam nessas palavras que antigamente se denominavam “substantivos próprios” e se escreviam com letras maiúsculas. Lá, elas continuam a ser denominadas e escritas assim. Na Ilha do Nanja, pelo Natal, todos vestem uma roupinha nova — mas uma roupinha barata, pois é gente pobre — apenas pelo decoro de participar de uma festa que eles acham ser a maior da humanidade.

Além da roupinha nova, melhoram um pouco a janta, porque nós, humanos, quase sempre associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de doce e um pouco de vinho. Tudo, porém, moderadamente, pois essa gente da Ilha do Nanja é muito sóbria. Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho — antes, todos se saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom celestial: “Boas Festas! Boas Festas!” E ninguém, pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes — mesmo porque se isso acontecesse, Jesus não nasceria. Como podia Jesus nascer num clima de tal sofreguidão? Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe — trata-se de uma ilha, com praias e pescadores ! — uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel...

É como se a Ilha toda fosse um presepio. Há mesmo quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram, certa vez, um raio de sol! Na Ilha de Nanja, passa-se o ano inteiro com o coração repleto das alegrias do Natal. Essas alegrias só esmorecem um pouco pela Semana Santa, quando de repente se fica em dúvida sobre a vitória das Trevas e o fim de Deus. Mas logo rompe a Aleluia, vê-se a luz gloriosa do Céu brilhar de novo, e todos voltam para o seu trabalho a cantar, ainda com lágrimas nos olhos.

Na Ilha do Nanja é assim. Arvores de Natal não existem por lá. As crianças brincam com. pedrinhas, areia, formigas: não sabem que há pistolas, armas nucleares, bombas de 200 megatons. Se soubessem disso, choravam. Lá também ninguém lê histórias em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os mortos vêm cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne, e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa só.

É assim que se pensa na Ilha do Nanja, onde agora se festeja o Natal.

Fonte:
CECÍLIA MEIRELLES. “Quadrante 1”. RJ: Editora do Autor, 1966.

Caravelas da Poesia II


AL BERTO
Acordar tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

ALEXANDRE O'NEILL
Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

ALMEIDA GARRETT
Anjo és

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua frente anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De onde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?

BOCAGE
Apenas vi do dia a luz brilhante

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá em Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte doravante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e em fim meu fado
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

ANTONIO GEDEÃO
Arma secreta

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dipara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

AUGUSTO GIL
Balada da neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

ANTÓNIO NOBRE
Balada do caixão

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mognos, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai a aborrecer,
Fui-me lá, ontem: (Era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
- Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? - Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
- Eis aqui um e bem barato.
- Está na moda? - Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
- Quando posso mandar buscá-lo?
- Ao pôr-do-Sol. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)

Ó meus Amigos! salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! do que eu!

CESÁRIO VERDE
Cinismos

Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

E eu hei-de, então, soltar uma risada.

DAVID MOURÃO-FERREIRA
Crepúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida, a palavra
despedida.

ARY DOS SANTOS
Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

João do Rio (A Parada da Ilusão)


Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais espertos. Como tinha sido!... O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa-de-meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneários. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir de onde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas, por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.

Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos freqüentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocotes, as cocotes de uma palidez mortal àquela hora... e havia também muita mulher chique, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.

Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois descansar na gerência ia trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.

Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta a um dos quartinhos e uma linda criatura loira chamou:

- O senhor banhista, venha cá.

Nicolau adiantou-se.

- Não, o outro. Sim, você mesmo.

Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço de Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loira estava já vestida para o banho.

- Não quero mais aquele banhista velho. Há cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-se o quarto seco. Não há meio. Veja só. Fica você. Quer?

Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loira abriu a bolsa de prata, tirou uma nota.

- Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.

- Grazzie, signorina...

- Diga: é italiano?

- Io sono venuto da Napoli fa tre anni...

- Ah! bem. E quantos anos tem de idade?

- Vinte e due.

A dama loira olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou:

- Como se chama?

- Túlio.

- Venha dar-me banho.

Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loira, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por um banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loira chegava sempre às seis e meia.

- Então, Túlio, o meu quarto?

- Pronto patroa, prontinho.

No fim do quinto dia ele fazia o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome. Era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.

- Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos...

Ou então:

- Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa!

Ele sorria queria levá-la para longe.

- Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme...

Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho,.

Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisas grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:

- Você, um rapaz inteligente, por que não muda de vida?

- Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer...

- Criança! E não tens aspirações?

- Não, signorina!

- Aposto que nem sabe ler? Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.

- É verdade. Nem sei ler.

- Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!

Os seus olhos nesse dia tornaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uma onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.

No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:

- Ó Túlio, quereria você aprender a ler?

- A signorina paga o professor?

- Ensino eu mesma.

- Então quero. Onde?

- Vá à minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.

Ele arranjara um dólmã de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loira habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.

- Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta... Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se...

Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa, aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.

- Que letra é esta?

Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os loiros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. Às vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro:

- Bom, vai embora.

Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia tocá-la, quando ela chamou:

- Francine, acompanha o Túlio até a porta...

Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição, tomar uma atitude. Mas para quê? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira - aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi esperá-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também amá-lo, porque apareceu de olheiras, com ar fatigado.

- Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.

- Palavra?

- Quer tomar a lição hoje?

- Não, amanhã...

Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.

- Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.

A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nunca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.

- Ah! Túlio...

Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam em outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:

- Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor...

A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução do mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais o incendiava. No banho, ela esperava o momento de apertá-lo, de mordê-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.

Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convencê-la de uma breve separaçào.

- Tu queres, Túlio?

- É para o teu bem.

- Queres mesmo? É o nosso amor que matas...

Eleutério comprara as passagens combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade. Ele ia para o último ato.

Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.

- Meu amor... A última vez!

E deixou-se cair.

- Alda, que é isso? ânimo...

- Lembras-te? Há dois meses!... Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido... Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha ao meu lado, forte, meu fiel... Dize!... Nenhuma outra será como eu. Pois não?

- Mas, Alda...

- Àquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar...

Geraldo viu que era o momento.

- Alda, tenho que te dizer...

- Não digas! não digas nada!

- Não, há um engano; um engano que não pode continuar.

- Não há, Túlio, não há!...

- Há.

- Pois deixa-o!

- Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.

- E não és? És sim, és o meu Túlio.

- Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.

Mas, como Alda recuava, com a fisionomia transmudada, Geraldo teve um resto de piedade.

- Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar...

Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.

- Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.

- Mas a nossa última noite?

- Vai-te.

- Zangaste-te?

- Não, pensei que tinhas mais espírito. Não tens. Eu sabia, ouviste? eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.

Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retornava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o reconhecessem ainda mal vindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pôde chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida - a ilusão…

Fonte:
http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/contosgeral.htm