terça-feira, 24 de agosto de 2021

Varal de Trovas n. 521

 

Humberto de Campos (O Leilão)

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no meio de um sono agitado:

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:

- Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!

- Hein? Hein? Que é? Que é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando os olhos com as mãos.

- Estás com pesadelo? - indagou o marido.

- Não! Era um sonho... Por que?

- Estavas para aí fazendo leilão...

- Ahn! - exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...

- Conta! Quero saber o que era! - pediu o esposo; enciumado.

- Não vale a pena, Alfredo!

- Conta! - exigiu o Otelo.

D. Belita agasalhou a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:

- Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando tu me despertaste.

Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:

- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...

Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:

- E eu, não estava lá, não?

- Você? Não vi.

- Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?

D. Belita sorriu, e, esfregando os olhos:

- Você?

E com desprezo, rindo:

- Como você havia lá às dúzias, a cinquenta mil réis, e ninguém queria!

E virou-se para o outro lado, roncando...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 
Publicado originalmente em 1925.

Mário Quintana em Prosa e Verso – 17 –

 Espelho Mágico I

DA OBSERVAÇÃO

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

DO ESTILO

Fere de leve a frase...
E esquece...
Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

DAS BELAS FRASES

Frases felizes... Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacóvios bem vestidos.

DO CUIDADO DA FORMA

Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amalga, enrija. pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!

DOS MUNDOS

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

DAS CORCUNDAS


As costas de Polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! Quem sabe não serão as asas
De um Anjo, sob as vestes escondidas...

DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

DOS MILAGRES

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

DAS ILUSÕES

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!

DOS NOSSOS MALES


A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...

DA ETERNA PROCURA

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

DO PRANTO

Não tentes consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tirares por fim do seu estado,
Que outra consolação lhe restará?

DO SABOR DAS COISAS

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

DOS SISTEMAS

Já trazes, ao nascer, tua filosofia.
As razões? Essas vêm posteriormente,
Tal como escolhes, na chapelaria,
A forma que mais te assente...

DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA
 
Como o burrico mourejando a nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...

Fonte:
Mário Quintana. Espelho Mágico. 
Publicado originalmente em 1951.

Rachel de Queiroz (Cabeça-Rosilha)

Esporte sertanejo que vai rareando são as brigas de touro. De primeiro, ainda me lembro, esperavam-se meses pelo encontro de dois campeões. Havia brigas — quando os touros eram de briga mesmo — que varavam dias seguidos. Na fazenda Junco havia um touro preto, por nome Carnaúba, que era capaz de lutar três noites com três dias e mais até, se lhe dessem tempo para beber. E podia mudar o adversário, ele é que não mudava, olho de fogo, a venta chamejante, a perna fina, a aspa aguda, preto como o Cão, valente como o anjo Gabriel. Depois de velho, talvez caduco, ficou tão feroz que não podia passar mulher nem menino por perto dele, à distância de menos de vinte braças. Por isso foi pego à força bruta, laçado ao mourão, reduzido a chamurro. Só assim o venceram, mas ainda rosnava. Acabou vendido a uns tangerinos.

No Junco também teve o touro Xuíte, que, como o nome está dizendo, era de raça taurina, o pescoço um tronco, mas as armas curtas, valente que era doido e de gênio ruim. Um dia atacou um trem que diminuía a marcha para entrar nas agulhas. O maquinista de começo riu, pensando que o touro velho ia se estrepar todo, ao se chocar com a máquina; e, para debochar mais, soltou um jato de vapor quente. O Xuíte aí se enfezou, meteu o chifre naqueles canos de cobre que correm pela barriga da locomotiva, arrancou tudo, como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A máquina rodou mais um pouquinho, foi gemendo, estacando e parou mesmo, ali, em cima das agulhas. Então quem teve medo foi o maquinista, com a locomotiva enguiçada e o touro bravo em redor, cismado, furioso.

Na fazenda Califórnia, que era de minha avó, se conta muita história de touro. Tem, por exemplo, o caso da briga de dois tourinhos, um chamado Caçote e o outro com nome ainda mais besta — chamavam o touro de Banana. Mas nome não é documento, porque esses dois touros pegaram uma briga que começou no sangradouro do açude e continuou, hora atrás de hora; e quando se viu, os dois já estavam para as bandas do cemitério, a uns quinhentos metros além; justo ao pé da casa do Ferreiro Velho, que era vizinho mesmo do campo-santo.

O Ferreiro Velho já dormia, deitado numa rede atravessada na sala. Quando deu fé, a porta vinha abaixo num estrondo. Mal teve ele tempo de saltar no chão: era o touro Caçote que entrava de costas, lascou a rede no meio como se fosse papel, e o outro touro pegado com ele, e assim atravessaram a casa, quebrando pote, fogão e tudo. Foram bater no quintal, arrasaram o jirau dos coentros e só saíram dali, derrubando a cerca, a poder do ferrão dos homens.

Foi também na Califórnia que sucedeu outro caso de touro, e essa é uma história bonita. O touro Cabeça-Rosilha era dono do curral fazia anos quando, de repente, lhe apareceu um tourinho novo, vindo de fazenda vizinha, não se sabia qual. O nome dele também não era certo — Cachalote ou Chamalote, parece; só sei que era azeitão-escuro com o lombo branco, muito bonito e fogoso e com uma natureza tão danada que logo se botou ao velho Cabeça-Rosilha, como se fosse um veterano igual a ele.

Pegada a briga, depressa se viu que o Cabeça-Rosilha não era mais o que fora dantes. Senão, teria acabado com a vida do tal Cachalote, logo na primeira noite. Mas qual, amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. As vacas saíram para o pasto, os dois ficaram brigando. Tinham quebrado a porteira e saído para o pátio, o chão já estava todo riscado de regos fundos só de eles cavarem a terra; e havia tanto mata-pasto acamado por onde eles pisavam que era aquele balseiro, como se por ali houvesse passado uma enchente.

A cabeça do Cachalote estava coberta de um beiju preto de sangue; e nas costas do Cabeça-Rosilha viam-se os lanhos que o outro lhe abrira no couro com as aspas finas.

De vez em quando eles paravam um pouco, como se escutassem o gongo, recuavam, tomavam fôlego; mas daí a um instante recomeçavam o gaiteado, cada um insultando o outro como podia. O urro do Cabeça-Rosilha era fundo, grave como um ronco de onça; o do Cachalote era mais franzino e mais rouco — que o canto do galo novo não se assemelha ao clarim do galo velho. E outra vez se encontravam e as armas se chocavam umas nas outras e até parecia que tiravam fogo.

O povo já tinha perdido a conta de quanto tempo durava a briga quando de repente os touros cruzaram as armas, entrançando os chifres. Não se viu como foi aquilo, só sei que se escutou um estalo, como um pau quebrado; e o Cabeça-Rosilha recuou, com um berro — estava com o chifre esquerdo arrancado. Arrancado mesmo, ficando só o sabugo.

O Cachalote ainda quis atacar, mas o touro velho pela primeira vez negou combate. Igual a um novilhote que apanha a sua primeira surra dum touro criado, recuou, recuou, bruscamente deu meia-volta, desceu ligeiro em procura do riacho do sangradouro e foi sumir na caatinga.

Isso aconteceu pelo começo do inverno, no mês de fevereiro. Todo o resto do tempo de chuva ninguém soube notícias do velho Cabeça-Rosilha, escondido na sua vergonha. Chegou o verão, as águas da caatinga secaram, mas em vão se esperou que ele viesse beber no açude, junto com o resto do gado. Os donos deram o touro velho por morto, decerto de alguma bicheira arruinada, no sabugo do chifre.

Os vaqueiros ficaram botando sentido para ver se levantavam urubus, contudo nenhum sinal apareceu.

Findou o verão, passaram Finados, as festas de Natal e Ano-bom. Começou a chover em janeiro. O Cachalote era agora o dono do curral. Não tinha quem se metesse com ele, acho que a história da derrota do Cabeça-Rosilha se espalhara entre os pretendentes.

Mas quando veio o começo do mês de fevereiro, um ano contado depois da grande briga, certa tarde estava já o gado recolhido ao curral, o Cachalote malhado no enxuto, remoendo, muito soberbo — escutou-se de repente, lá no alto do rio velho, um gaiteado conhecido.

Ninguém acreditava. Teve quem pensasse em assombração, visagem do touro morto. Mas que morto nem nada. Era mesmo o Cabeça-Rosilha que voltara vivo, depois do seu retiro de um ano. Fora se esconder na Serra Azul, bebia não se sabe onde, enquanto o sabugo encourava; e ele o ia afiando pacientemente nas cascas de pau, até o botar duro como ferro, mais duro que o próprio chifre.

O gaiteado foi crescendo, ficando perto. E então se viu o Cabeça-Rosilha se mostrar de corpo inteiro, bem no cabeço do alto. Reforçado, lustroso e com os chifres polidos que era ver duas espadas.

No curral, o Cachalote se levantou, como se não acreditasse. Afinal respondeu com o seu gaiteado novo, grosso, soprando e cavando. Ligeiro, parando só para dar os seus urros de desafio e raspar o chão com tanta força que a terra voava a duas braças de altura, o Cabeça-Rosilha se aproximava. Parece até que caprichava em voltar no mesmo chouto com que saíra — então corrido e sangrento, agora limpo e sedento de briga.

Cada um dos brutos de um lado da porteira, não esperaram que ninguém a abrisse. Meteram os ombros, voou pau para todo lado, e foi de novo dentro do curral que a briga começou.

Dessa vez, porém, não virou a noite até o outro dia. Ainda bem não havia escurecido direito, de repente se ouviu um urro de touro apanhado. Era o Cabeça-Rosilha que tinha levantado nas armas o Cachalote, como se levantasse um gato; ergueu nos ares aquelas quarenta arrobas de touro vivo e arremessou tudo por cima da cerca.

Foi aí que o Cachalote berrou como bezerro, levantou-se trôpego — e dessa vez foi ele que desceu o riacho, correndo, e sumiu no mato, dentro da noite escura.

Também, depois desse dia, nunca mais Cabeça-Rosilha o viu.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

Estante de Livros (O Garatuja, de José de Alencar)


Uma das obras-primas menos conhecidas de Alencar, a novela O Garatuja, escrita no esteio de grande polêmica entre a Igreja Católica e a Maçonaria, mostra como o país, no que dizia respeito a arenga entre o poder eclesiástico e o poder civil, não evoluíra em nada em duzentos anos de história. Saiu publicada junto com outras duas histórias breves, A Alma do Lázaro e O Ermitão da Glória.

Em 1848, com 19 anos, José de Alencar apresentava os primeiros sintomas de tuberculose. A doença obrigou-o a retornar da faculdade de Olinda para o Rio de Janeiro. Trazia na mala, o esboço de duas novelas escritas em Pernambuco, "mas que só seriam publicadas, com alguns retoques, cerca de 25 anos depois, enfeixados em um único volume, intitulado Alfarrábios. As duas histórias, [...] falavam de personagens atormentados pela solidão e apartados da vida em sociedade. [...] Se as duas histórias, com enredos tão bizarros, ainda revelavam certa dívida do aspirante a escritor em relação aos dramalhões lidos na infância, uma coisa também era evidente [...] revelam muito da personalidade de seu próprio criador."

O romance transcorre na “leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em meados do século XVIII (1659), quando a cidade sequer era capital, e tem por pano de fundo um conflito entre a Igreja (mais especificamente, o prelado Doutor Manuel de Sousa e Almada) e a administração colonial que resulta na excomunhão do ouvidor, gerando um grande alvoroço. O personagem central, Ivo do Val, é um enjeitado, “filho de criação” da “donzela recatada” Rosalina das Neves, que o teria “achado uma noite à porta da casa, onde morava então com sua família”, mas segundo as más línguas – das quais a mais ferina era da Pôncia, que gostava de “espreitar por detrás da rótula o que ia pela rua, para enredar os vizinhos e falar mal da vida alheia” – “fruto dos amores da donzela com um alferes”. Ivo recebe a alcunha de Garatuja devido à mania, como um precursor dos grafiteiros atuais, de “trocar as pernas pelas ruas de São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caía debaixo do carvão”.

Ivo torna-se aprendiz do pintor de casas Belmiro Crespo, onde “passava o melhor de seu tempo, a ajudar os vários misteres da pintura, no que se foi tornando perito”. Um belo dia, achando-se numa encruzilhada na área que hoje corresponde à Lapa, “apareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca [...] com os cabelos ao vento, e a saia rocegada por causa do orvalho”, chamada Marta. Ao vê-lo, Marta assusta-se (“ – Senhora mãe, um caipora!”). Ela é filha do tabelião Sebastião Ferreira Freire, dono de cartório. Atraído pela menina (“Tudo lhe servia de pretexto para [...] fincar-se horas e horas, como um mastro de Natal, em frente à porta do tabelião”), desenha um Cupido “brincalhão e gentil [...] em ação de brandir uma seta, cuja ponta embebia na luz de uma estrela radiante em céu azul, para cravar um coração caído por terra”.

Rosalina, cujo sonho era ver o filho "adotivo" admitido no cartório de Sebastião, confundindo o Cupido com o Menino Jesus, decide levar a imagem a Romana Mência, uma devota perdida por tudo quanto era santo e coisa de beatice, que era sogra do tabelião. Depois disso, Rosalina leva Ivo à casa da velha Romana, onde naquela noite rezava-se a novena. “Colocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Marta, oculto sob o capuz da mantilha.”

O rapaz acaba sendo admitido no cartório. Um dia, ao escrever um edital que começava por M., inicial de Marta, enfeitou a letra com tantos “emblemas de amor” – anjinhos, flores, colibris – que foi mandado embora do cartório. Mas continuava se encontrando furtivamente com Marta.

Uns minoritas (religiosos da Ordem de São Francisco) fâmulos do prelado Almada perturbam a vida da família do tabelião, e Ivo prega-lhes peças. O tabelião queixa-se ao Ouvidor Geral, que abre uma devassa. No dia em que o ouvidor partiria em viagem ao Espírito Santo, o prelado, em represália, excomunga-o em público com toda a solenidade do latim: te excommunicamus... O ouvidor leva o caso (“grave atentado cometido contra a majestade de El-Rei, nosso senhor, e sua autoridade que a todos nós fiéis súditos, cumpre defender”) ao Senado da Câmara.

Ivo organiza um motim de estudantes e em plena noite a população, desperta por um sino e atraída por um clarão ao Rossio do Carmo (atual Praça XV), depara, no alto do pelourinho, como uma alegoria ou caricatura que debochava do prelado e da fradaria, pintada por Ivo.

A população está revoltada com as arbitrariedades do prelado e, para apaziguá-la, um moleque e um caboclo acabam servindo de bodes expiatórios para as estripulias dos minoritas. O tabelião flagra Ivo surrupiando um beijo de Marta e leva o casal ao cartório para casá-los. A condição: que Ivo abandone a pintura.

"Desenha-se, portanto, em O Garatuja, a cidade colonial de São Sebastião, com figuras reais e inventadas, exibindo costumes, trajes, modismos de linguagem, amores, encontros e revolução. Nesta volta ao passado, em fatos e linguagem, a leitura torna-se a aventura de reconhecer o Rio de hoje no referenciado, do século XVII, procurando sacudir o 'mofo literário' e entender, sobretudo, a imagem da cidade e de seu povo.”

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 2

 

Renato Benvindo Frata (Soneto de Despedida)

No Soneto de Despedida, Vinícius de Morais cantou a lua e a mulher amada. Ambas nuas, uma no céu e outra na terra, igualmente formosas a mexer com a sua alma irrequieta como são as de quem ama. Mulher e lua, portanto, serviram de inspiração e o fizeram suar em gotas gigantes o sentimento a que se dá o nome amor.
 
Sua inspiração boêmia fê-lo "o poetinha do Brasil", na acepção mais carinhosa do termo; e nos legou frases, poemas e canções lindas extraídas - como ele próprio confessou do seu âmago anestesiado pelo fumo e uísque.

O verbo despedir, de certa forma, soa tristeza: tanto na sua forma transitiva direta que significa "terminar unilateralmente", como adeus, não quero mais, ou para mim basta!, ou como enquanto verbo pronominal quando alguém diz palavras de despedida no momento da sua saída: -"vou-me embora... pra Pasárgada" como o disse Bandeira, numa alusão a um suposto amigo que o esperava.
 
Quando se termina algo é sinal que chegou o fim; e, como fim a conclusão de qualquer coisa, daí o questionamento; o fim existe?
Ouso dizer que materialmente sim, como o construtor quando acaba de vez um trabalho, ou o artista quando dá a última pincelada de tinta em seu quadro. Mas, no sentido imaterial, é possível afirmar que o fim existe?
 
Cora Coralina versejou que "o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher." Acreditando nesse conceito, quando se tem o que colher não aconteceu o fim propriamente dito, mas apenas e tão somente uma leve parada. Um repouso para ganhar força e continuar como faz a flor que morre para deixar a semente, mas não antes de atrair com seu perfume abelhas, borboletas e passarinhos com o propósito de deixar que misturem o androceu com o gineceu que carrega em seu seio e possibilitam a fecundação, e de distribuir sua continuidade pela natureza através do pólen que os insetos e animais (e o próprio vento) arrastam em seus corpos, pernas, bicos e do vai e vem das brisas.
 
Sábio como a flor que renasce em cada semente, Vinícius com seu Soneto de Despedida não se despediu; apenas engoliu mais um copo e mais outros, fumou uma série de carteiras de cigarro que lhe alimentavam a inspiração e, depois a cada intervalo, curado dos porres, retornou a compor novos sonetos, a ruminar novos versos, trovas e cantigas a várias e diferentes musas terrenas, porque sua alma de poeta era tão volátil quanto a nuvem passageira que apenas rabisca momentaneamente o céu na sua passagem sem lhe deixar marcas perenes.
 
Aliás, a nuvem não deixa nem um traço em sua passagem, pois o dia seguinte será sempre outro dia, cuja noite envergará no céu a mesma e linda lua de sempre, em qualquer das fases, com o mesmo poder de atração e sedução a retirar dos amantes palavras torneadas pela paixão e gestadas pelo entusiasmo. E de colocá-las no papel para o deleite de todos como o fez o "poetinha".

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. 
Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVII

“CAMINHO A TEU LADO MUDO”

 
Caminho a teu lado mudo
Sentes-me, vês-me alheado...
Perguntas: Sim... Não... Não sei...
Tenho saudades de tudo...
Até, porque está passado,
Do próprio mal que passei.

Sim, hoje é um dia feliz.
Será, não será, por certo
Num princípio não sei que
Há um sentido que me diz
Que isto — o céu longe e nós perto
É só a sombra do que é...

E lembro-me em meia-amargura
Do passado, do distante,
E tudo me é solidão...
Que fui nessa morte escura?
Quem sou neste morto instante?
Não perguntes... Tudo é vão.
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“CANSADO ATÉ OS DEUSES QUE NÃO SÃO”
 
Cansado até os deuses que não são...
Ideais, sonhos... Como o sol é real
E na objetiva coisa universal
Não há o meu coração...
Eu ergo a mão.

Olho-a de vis, e o que ela é não sou eu.
Entre mim e o que sou há a escuridão.
Mas o que são isto a terra e o céu?

Houvesse ao menos, visto que a verdade
É falsa, qualquer coisa verdadeira
De outra maneira
Que a impossível  certeza ou realidade.

Houvesse ao menos, som o sol do mundo,
Qualquer  postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo,
Crível talvez, mas tenho coração.

Mas não há nada, salvo tudo sem mim.
Crível por fora da razão, mas sem
Que a razão acordasse e visse bem;
Real com o coração, inda que...
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“CANTA ONDE NADA EXISTE”
 
Canta onde nada existe
O rouxinol para seu bem,
Ouço-o, cismo, fico triste
E a minha tristeza também.

Janela aberta, para onde
Campos de não haver são
O onde a dríade se esconde
Sem ser imaginação.

Quem me dera que a poesia
Fosse mais do que a escrever!
Canta agora a cotovia
Sem se lembrar de viver…
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CEIFEIRA
 
Mas não, é abstrata, é uma ave
De som volteando no ar do ar,
E a alma canta sem entrave
Pois que o canto é que faz cantar.
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“CHEGUEI À JANELA”
 
Cheguei à janela,
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
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“CHOVE. QUE FIZ EU DA VIDA?”
 
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

Fernando Sabino (Sem tirar patente)

Estou convencido de que errei de profissão, ao escolher a literatura. O que eu sou mesmo é inventor. E um grande inventor. Com o auxílio de minha filha Mariana, que rima com bacana, inventei o telefone portátil, a televisão de bolso, o rádio de pulso e a bicicleta voadora. Só não inventei o pó de pirlimpimpim.

Antes que esta crônica entre em colapso, num delírio de paranoia, e eu me diga inventor da luz elétrica e Pai da Aviação (embora não negue que tenha parte na invenção do zepelim), deixa eu dizer que minha inventiva não voa a tais alturas, nem sustento ter-me chamado Edson, Marconi ou Santos Dumont, noutras encarnações.

Apenas lamento que invenções um pouco menos espetaculares, como as que citei, custem tanto a ser produzidas.

Outras já o foram, antecipando-se à patente que delas eu deveria ter tirado. Há anos, por exemplo, que amaldiçoo essa invenção diabólica usada para tirar cópia, chamada papel carbono: amarrota-se com facilidade, suja a ponta dos dedos e as demais folhas de papel em branco, resiste ao uso da borracha, acaba produzindo cópias manchadas ou ilegíveis. Não se falando na sua intolerável propensão a colocar-se invertida entre as folhas de papel, produzindo ao fim uma belíssima cópia, mas para ser lida ao espelho, nas costas do original. Sempre desejei que existisse um carbono resistente, com tinta indelével como a das próprias fitas de máquina.

Pois finalmente aqui está o carbono de plástico, que dá cópias iguais ao original, e que alguém chamado Burroughs patenteou antes de mim, sob o n.° 876.854.

Em compensação, e ainda nos domínios da máquina de escrever, continuo esperando que industrializem o dispositivo que inventei para corrigir no papel os erros datilográficos. Um espertinho quis se antecipar e me apareceu no mercado com uma tirinha de papel carbono branco, do tamanho de um band-aid (extraordinária invenção!), a ser inserida entre a fita e o papel, para apagar as letras erradas, batendo-as novamente.

O processo, em si, é correto, mas minha invenção é melhor. E aqui a ofereço gratuitamente ao primeiro aventureiro que quiser lançar mão dela, o tal Burroughs, por exemplo: a própria fita da máquina deveria ter uma faixa de tinta branca, sobre a qual reescreveríamos o que deve ser apagado.

Outras invenções me fazem ferver a cuca, e vivo encafifado pelo fato de não virem logo à luz do dia. As que me inspiram os objetos de dar corda, como os antigos fonógrafos, por exemplo: se existem relógios e brinquedos de corda, por que não podem existir, baseados em igual sistema, motores de verdade, até mesmo de automóvel?

Antes que acabe descobrindo o moto-contínuo, detenho-me diante daquele menino da anedota, que dizia aos pais ter descoberto numa loja de antiguidades uma vitrola maravilhosa, que funcionava sem corrente elétrica, sem pilha, sem nada.

E está certo o diabo do menino. Nada mais prático foi até hoje inventado, para resolver o problema infernal de um automóvel com bateria descarregada, que aquele ferro torto com o qual se punha antigamente o motor em funcionamento, e que se chamava manícula. Manícula! Com nome tão fabuloso, só podia ser mesmo uma grande invenção.

Outras grandes invenções, como a caneta esferográfica, o saca-rolhas de ar comprimido ou a sandália japonesa, enchem-me de inveja por não terem nascido antes de minha poderosa imaginação criadora. Tão poderosa, que já concebeu a simbiose do bidê e do vaso sanitário, com chuveirinho regulável, e descobriu que a serra de pão é o melhor instrumento para descascar abacaxi.

Não se falando no aperfeiçoamento introduzido numa das mais prodigiosas criações de nosso tempo, que reconheço não ter sido minha, e a cujo inventor rendo aqui minhas homenagens: o fecho eclair. Para ser perfeito, sem risco de enguiçar a todo momento ou, quando na roupa, beliscar a pele do freguês, não deveria ser de dentes de metal, mas de trilhos de plásticos fechados sob pressão. Quando vi pela primeira e única vez a moderna versão que inventei, no fecho de uma pasta que a Varig me deu, entre as lembranças que costuma oferecer aos seus passageiros em viagem internacional, maravilhado exclamei: o que é a Natureza! E vi reafirmada a minha crença no progresso da Humanidade.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Estante de Livros (Livros de André Vianco)

A CASA


Em A Casa você encontrará quatro pessoas com os corações atormentados em busca de perdão. Aprenderá que o perdão é o sentimento mais nobre em nosso caráter e tão poderoso que poderá unir os que estão do lado de cá com os que já foram para o lado de lá.. Descubra um romance delicioso, afetivo, que trata de sentimentos e vida após a morte.
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O CAMINHO DO POÇO DAS LÁGRIMAS

Jonas viajava com os filhos Ingrid e Bosco por uma estrada escura. De repente os três adormecem e, quando acordam, depois de muitos sonhos agitados, se dão conta de que estão em um vasto campo verde. O carro em que viajavam desapareceu e a única saída daquele campo é um caminho formado por pedras justapostas... é O Caminho do Poço das Lágrimas. Mas para onde os levará esse caminho? Que mistérios e perigos os esperam?

Em seu 13º romance o escritor André Vianco aventura-se através de uma fábula gótica moderna. O Caminho do Poço das Lágrimas é um livro ilustrado, cheio de metáforas, que leva a reflexões acerca da morte, da maneira como levamos a vida nos dias de hoje.

O livro nasceu depois do autor ter se dedicado durante três anos às histórias de terror, envolvendo vampiros. Há algum tempo seus leitores vinham dizendo que estavam com saudades de livros como A Casa por isso, quando a ideia para essa fábula surgiu, ele não conseguiu fazer mais nada direito, até que finalmente a colocou no papel:

"A ideia para escrever O Caminho do Poço das Lágrimas nasceu de uma história de ninar que eu inventei para as minhas filhas. Durante muito tempo essa história ficou remoendo em minha mente, ela se apoderou de mim de uma maneira que eu precisei parar tudo para dar vida a ela.", explica André Vianco.
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O SENHOR DA CHUVA

Um anjo perseguido, para não ser destruído, possui o corpo de um ser humano igualmente agonizante. Assim, o anjo quebra uma regra sagrada que dá aos demônios o direito de evocarem uma guerra desigual que poderá desencadear a destruição de todos os anjos de luz da Terra. Agora, os dois exércitos estão furiosos, transformando as tranquilas pastagens de Belo Verde num funesto campo de batalha onde espadas parecem chamas e olhos parecem brasa. Esta misteriosa aventura sobrenatural estará repleta de batalhas no mundo dos anjos, vampiros... e demônios.
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André Ferreira da Silva, conhecido pelo pseudônimo André Vianco, nasceu em São Paulo, em 1975, mas foi criado em Osasco. É um romancista, roteirista e diretor de cinema e de televisão brasileiro. Especializado em literatura de terror, sobrenatural, de baixa fantasia e vampiresca, alcançou a fama em 1999 com o romance Os Sete, tornando-se um best-seller.

De acordo com dados de 2016, seus livros já venderam mais de um milhão de exemplares. Em 2018 foi considerado, junto a Max Mallmann, Raphael Draccon e Eduardo Spohr, como um dos principais autores brasileiros de fantasia do século XXI. Começou a carreira trabalhando como redator para o departamento de jornalismo da Rádio Jovem Pan, e também tinha um emprego de meio-período em uma empresa de cartões de crédito. Publicou por conta própria seu romance de estreia, O Senhor da Chuva, em 1998.

Publicou, com uma tiragem de mil cópias, aquele que se tornaria seu primeiro best-seller, Os Sete, em 1999. Os Sete foi seguido por Sétimo e pela trilogia O Turno da Noite, e pela prequela em quadrinhos Vampiros do Rio Douro, em dois volumes. Depois de publicar os thrillers sobrenaturais A Casa e Sementes no Gelo em 2002, voltou à ficção vampiresca com Bento em 2003, primeiro livro da série O Vampiro-Rei; foi seguido por A Bruxa Tereza (2004) e Cantarzo (2005), e pela série de prequelas As Crônicas do Fim do Mundo – a primeira parte, A Noite Maldita, foi lançada em 2013; a segunda, À Deriva, foi anunciada por Vianco em seu site oficial em fevereiro de 2019. Em 2010, lançou O Caso Laura, que saiu no ano seguinte, e a série de livros infantis Meus Queridos Monstrinhos, que desde 2014 já tem três volumes. Em 2015 lançou Estrela da Manhã. Em 2016 publicou seu primeiro romance de ficção científica, Dartana. Publicou seu 17. romance (e 23. obra literária como um todo), Penumbra, 2017.


domingo, 22 de agosto de 2021

Arquivo Spina 47: Marilice Cavalli de Oliveira

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Mãe do Ano

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da virgem Maria:
- Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
Barreto Coutinho
Limoeiro/PE, 1893 – 1975, Curitiba/PR


Dona Joaninha recebeu muito comovida o título de “Mãe do Ano”. Dos doze filhos, um compareceu à festa; os demais estavam muito ocupados nos seus que-fazeres: trabalho, estudo, malhação, paquera e outras curtições. Dona Joaninha desculpava. Tadinhos...

Medalha, flores, beijos, discursos. Heroica Joaninha. E por que não se encontrava ali o marido dela? Ocupadíssimo também, viajando, visitando clientes. Ela humildezinha recebendo os elogios, tantos anos de lutas, renúncia total a si mesma, dedicação total à família. Dava para adivinhar que quando morresse entraria direto no céu.

Não, porém, sem antes receber de São Pedro um puxãozinho de orelha por haver criado em sua casa um bando de egoístas. Doando-se inteiramente ao marido e aos filhos, resultou que eles se acostumassem a apenas receber, jamais dar coisa alguma.

Casara-se muito jovem, aos 16 anos. Vida dura no sítio, cozinhando, costurando, lavando, nas horas vagas capinando roça. Os filhos nascendo um atrás de outro. Mingauzinho pra um, troca fralda em outro, cata piolho no mais velho, põe no banho o mais novinho, ajeita as coisas do marido, arruma a casa, mãe extremosa, esposa objeto, máquina de servir...

O marido abriu negócios na cidade, levou a família; os filhos para estudar, Joaninha para trabalhar, ele para nunca mais parar de abrir novos negócios. Ela, a esposa exemplar, cuidando da meninada; ele, o machão formoso, cuidando de aumentar o patrimônio.

Dinheiro não faltava. Joaninha pusesse os meninos em bons colégios, gastasse o que preciso fosse com roupas e outros confortos. Se quisesse, podia até contratar uma, duas, três ajudantes. Só não enchesse o saco dele com probleminhas domésticos.

Joaninha não perturbava ninguém; servia apenas. Habituada ao trabalho, quis somente uma auxiliar para os serviços de limpeza. Para ela nada queria; bastavam os vestidinhos de ir à missa e umas roupinhas caseiras. Nada de salão de beleza nem de enfeites caros.

O marido, quando não estava em viagem, entrava em casa só para comer, dormir, assinar cheques. Nenhum agradinho pra Joaninha, já velhinha e sem encantos. Encantos ele procurava fora. “Tudo bem – dizia ela – homem é assim mesmo, deixe ele se divertir...“

Nos discursos indicaram Dona Joaninha como esposa perfeita e mãe modelo. Dava até para entender, pelo muito que ela sempre amou. Porém seria bem provável que a boa senhora não escapasse mesmo de um puxãozinho de orelha na porta do céu – carinhosa reprimenda por jamais haver tentado disciplinar aquele desaforoso marido; mais ainda por haver estragado os filhos ao aceitar ser escrava deles: aquelas preguiçosas moçonas e aqueles garotões inúteis, incapazes de sequer arrumar as camas onde dormiam.

Dona Joaninha nunca se queixa. Costuma dizer que felicidade de mãe é ver a família feliz. Mãe do Ano...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 5 –

A escuridão, devagar,
faz despertar a estrelinha,
mescla de treva e luar
que ilumina quem caminha.
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Alguém assumindo um posto
nunca o faça por lazer,
pra não carregar no rosto
mais desgosto que prazer.
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A mãe, na velhice implora:
Filho vem me visitar!
E este esquece que ela chora
por não ter com quem falar.
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Ao jogarmos luz e encanto
nunca nos falte a harmonia,
vivendo num dia santo,
sempre, a cada santo dia.
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A persistência consiste
na constância do combate
e no embate quem persiste
não desiste, nem se abate.
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A ti mãe, muito obrigado!
Por ter transmitido a vida.
Perdão por tê-la deixado
sem a atenção merecida.
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A vida fica mais linda
e a amizade rica e bela,
se a felicidade infinda
estiver presente nela.
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A vida só tem sentido
se vivida intensamente
e cada instante vivido
sempre novo e diferente.
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Da flor, às margens da estrada,
brotam as recordações,
mas é da pedra calada
que advêm as lamentações.
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Depois de uma noite fria
e tão densa madrugada,
só nos resta a luz do dia
pra viver nova jornada.
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Enquanto a lágrima escorre
sobre a face do inocente,
tem alguém que ao mal recorre
pra trazer a dor presente.
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Enquanto sonhas em ter
algo que jamais tiveste,
nunca olvides, de antes ver,
se ao teu ser, vida lhe deste.
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Filhos, Mãe só tendes uma,
dai-lhe amparo, como tal!
Não vereis mulher alguma
superior, ou mesmo igual,
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Mesmo em prantos, a sofrer,
o amor recebe outro nome:
A Mãe deixa de comer,
pro filho não passar fome.
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Nada tem de tão distante
que nunca possa alcançar,
siga à luta, sempre avante,
nunca hesite em avançar.
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Nada tem de tão ruim
que não possa piorar,
também de bom, tanto assim,
que não deva melhorar.
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Não desprezes as raízes
pois, delas a essência vem,
fontes de mentes felizes,
frutos que sementes têm.
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Não volte para o passado
no afã de colher seu fruto,
sem antes tê-lo plantado
mesmo em distante reduto
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O homem, muito quer a paz,
para em paz adormecer,
diz fazer, porém não faz,
essa paz acontecer.
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Olhares tristes e amargos
não deixam mentir a idade
e a voz, com alguns embargos,
abala a serenidade.
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O sentido do Natal
o homem quase desconhece,
cresce o valor material
e a essência desaparece.
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Para o progresso existir
e a diferença imperar,
a mudança deve advir
levando algo a prosperar.
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Permanece sempre alerta,
busca a meta sem cansar,
na oportunidade certa
o teu sonho hás de alcançar.
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Se o sinal está vermelho
na rua, nunca atravesse,
seja do outro o próprio espelho
e a observar também comece.
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Temos, no mundo dos vivos,
mortos, mas vivos na mente,
ou porque foram altivos,
ou marcantes, tão somente.
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Toda a pedra rejeitada
poderá se transformar,
dentro da obra projetada,
em grande pedra angular.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (As Histórias do Conselheiro)

– Pois, minha cara senhora, foi assim que se acabou a história...

– Tem graça! E a rapariga não tornou a aparecer?

– Nunca mais a vi; só sei que o Chim casou...

– Com a tal velha rica?!

– Exatamente!

– Mas é delicioso!

– Teve pilhéria, teve... Realmente, eu tenho presenciado muita coisa!

– Então! sr. conselheiro, enquanto não nos servem o chá, conte-nos um outro caso; este foi de um humor irresistível. Ora, o Chim!

O conselheiro correu o olhar pela assembleia: todos riam. O general limpava uma lágrima, suspirando de alívio, ainda com os lábios distendidos e a mão esquerda comprimindo o ventre. O sobrinho levantara-se e, encostado à janela, assustava as begônias do jardim com o som estrídulo das suas gargalhadas frescas, sonoras, rescendentes de mocidade; a dona da casa sorria agitando a ventarola de seda, e a avó abanava com incredulidade a cabeça branca, perguntando a uma neta, que estava ao seu lado, a conclusão do fato, que não ouvira bem... a neta a cada pergunta renovava o riso, curvando-se muito a esconder o rosto na toalha de linho em que bordava as suas iniciais.

– Vamos, sr. conselheiro, repetiam-lhe, outra história, sim?

Mas o conselheiro, que tinha uma memória de anjo e que cultivava o gênero das narrações, deixou prudentemente voltarem todos à sua costumada placidez; e, depois de pensar um pouco, declarou ter escolhido assunto, igualmente verídico, mas de gênero diferente.

Chegaram-se todos.

Ele começou:

“– Exercia eu o cargo de juiz de direito na pequena comarca de Santa Bárbara, quando me foi apresentado o dr. Lemos, antigo advogado no lugar, homem pacato, idoso, cheio de preconceitos religiosos e sociais, muito boa pessoa mas muito chato também.

“Eu morava sozinho, numa grande casa antiga, de corredores abobadados e de salões sem fim. O homem entendeu que me devia fazer companhia, indo povoar a minha soledade doce e tranquila, com os seus receios e fantasmagorias! Poucos minutos depois de eu ter chegado das sessões do tribunal, era certo, ouvia os passos do meu importuno amigo ecoando como marteladas surdas e compassadas pela escada acima. Entrava para o meu escritório, sempre solene, e, trocadas meia dúzia de palavras, debruçava-se sobre a minha mesa de trabalho, folheava, lia, meditava autos, atrapalhava-me com objeções os processos, declamava contra as acusações dos libelos, para ele sempre pálidos e deficientes, e ali ficava horas inteiras, respirando o veneno da maldita cicuta nascida no mais pestífero dos pântanos – o crime! Como ele costumava dizer na sua implacável retórica!

“Eu às vezes tinha vontade de o mandar de presente ao diabo, e demonstrava-lhe mesmo certo mau modo, que ele, na simplicidade natural dos bons, não compreendia. Mas admirem-se! Aquele homem, que me entediava, estorvava, privando-me da minha liberdade, da minha satisfação, da minha paz concentrada e feliz, aquele homem era-me por fim indispensável, real e positivamente imprescindível! É verdade! Estimei-o; estimei-o é pouco; adorei-o! Se ele tardava, eu ia à janela, olhando impaciente para a longa rua solitária da pobre cidade de província. As galinhas cacarejavam, depenicando nas ervinhas nascidas nas gretas das calçadas, e, num quintalzinho fronteiro, uma cabocla sadia e formosa cantava alto, estendendo roupa no coradouro.

“Era sempre o que eu via àquela hora, até que despontasse na terceira esquina do alto o vulto do dr. Lemos, magro, meio curvado, com uma sobrecasaca comprida, calças escuras e o chapéu de sol aberto, inclinado para o lado do sol. Então eu recomendava à criada que nos preparasse o café, e ia esperá-lo no escritório.

“Lemos contou-me a sua vida; coisa vulgar: sempre com aspirações a fortuna, hoje uma esperança, amanhã um desengano, e o tempo a passar e a velhice a tomar posse dele, com os seus achaques e desilusões! Casara-se: a mulher era um anjo a quem não tinha podido nunca dar sossego de espírito; mas a infeliz morreu cedo, deixando um filho pequeno. Ora, esse filho era então o grande sol, a última e única esperança que restava ao velho! O pobre homem levava-me horas e horas a tecer elogios ao seu portentoso Isidoro, uma verdadeira maravilha de talento e de virtudes. A honra era o grande pedestal de ouro em que nuns entusiasmos arrebatados colocava esse deus, herança de uma mulher amada. Contava coisas do pequeno, exaltando-lhe o caráter; e orgulhava-se dele, do seu juízo, da sua probidade, do seu critério; não falava senão na grande retidão de espírito, de que, desde criança, dera provas; no seu carinho, na bondade natural do seu coração, em mil coisas ternas, enaltecedoras e naturais em um pai. Eu ouvia-o, felicitava-o, e lia de vez em quando uma ou outra carta que o rapaz enviava da corte, onde o padrinho, influência política, o tinha empregado, como caixa de um banco.

“Aquele era o único ponto que o prendia ao mundo. Sem o Isidoro a terra pareceria ao dr. Lemos como que um grande arneiro em que não houvesse um único recanto nemoroso; tudo estéril, frio, chato, insalubre!

“Era aquele filho exemplar, que o céu lhe concedera, quem dava cor às flores, brilho às estrelas, aroma às plantas, doçura ao ar, tranquilidade aos lagos, beleza às aves e harmonia à música! Eu, pobre solteirão, bem colocado, desconhecendo grande parte da vida, a luta da existência a que ele, desde os doze anos de idade, órfão de mãe e pai, se lançara; eu tinha muitas vezes inveja daquele homem, alquebrado de trabalhos e de injustiças, mas sempre honesto e sempre radiante do orgulho que lhe dava o filho! Ah! Quantas vezes eu não suspirava, imaginando a ventura de ter também um Isidoro, forte, espirituoso e, sobretudo, honrado como o do meu amigo! Mas isto são coisas que não vêm ao caso; continuemos. Vivíamos assim seguramente havia uns dois anos, quando recebi uma carta do Rio, pedindo-me que, por ser eu amigo dedicado e reconhecido do dr. Lemos, lhe participasse, como entendesse melhor, que o filho...”

– Morrera? perguntou uma das senhoras, interessada pelo banal enredo.

– Não... pior.

– Ora essa; pior do que a morte! Então que era?

– A desonra, minha querida senhora!

E o conselheiro, passando o lenço de seda pela calva, fez uma pausa, premeditada para maior impressão; depois prosseguiu:

“– Comunicavam-me ter o rapaz subtraído ao banco de que era caixa uma grossa quantia, a bagatela de trezentos contos, e ter fugido para a América do Norte! Imaginem o pasmo em que eu caí! Contudo, era preciso reagir, procurar o velho antes que ele me viesse à casa, e dizer-lhe tudo, jeitosamente; se não, poderia antecipar-me alguém de menos caridade, ou mais irreflexão. Como ele costumava ir ler no meu escritório os jornais da corte, escondi-os na gaveta da secretária, bem fechados: podia dar-se o caso de um desencontro; nada mais fácil do que ir eu tomando a esquerda, para a sua casa, e ele vir da direita, para a minha. Saí; fui bater-lhe à porta; ele não estava. Regozijei-me com isso. Voltei mais sossegado até meio caminho; mas depois irritei--me! Poderia estar tudo concluído, e afinal havia ainda de esperar uma ocasião propícia para desfechar tão pavorosa revelação! Quando entrei no meu escritório já lá o encontrei sentado, a ler um grosso volume de Direito, com os óculos encavalgados no nariz, cruzadas as pernas longas e magras, o lenço de rapé sobre o joelho, e os nastros das ceroulas pendentes, a balançarem-se ao contínuo movimento da perna.

“– Então como vai isso? perguntei-lhe na minha prosa de uso ordinário.

“– Menos mal...

“– Bom...

“– Estou aqui a ler os seus livros, já que não encontrei os jornais; dar-se-á caso que não viessem hoje?

“– Sim... é verdade; não vieram hoje!

“– Fazem falta; que diabo, aquilo afinal é o meu vício!...

“Tive um risinho amarelo e pus-me a ler também um infólio, a que não prestava atenção, estudando um meio de contar o caso ao velho. Mas não tive ocasião: pela primeira vez em vinte e sete meses, o dr. Lemos não me falou no seu idolatrado Isidoro!

“E eu à espreita desse momento para aproveitar o ensejo de encaixar o ensaiado discurso! Convidei nesse dia o Lemos para jantar; ele aceitou e eu calculei: “Está direito; à sobremesa conto-lhe tudo!”

“Jantei mal, ele não; comia com vontade, acumulando no prato carne, ervas e arroz, mastigando a côdea do pão, bebendo a grandes goles o meu estimado Collares. Eu, que o sabia sóbrio e que muitas vezes tinha presenciado o seu repasto frugal e mesquinho, admirava-me; e pelas alturas da sobremesa, vendo-o animado, com boa cor, coisa extraordinária nele, habitualmente esverdeado, julguei mais acertado novo adiamento: a ocasião não era azada, com certeza! Lemos cairia morto, fulminado por uma congestão, entre as cadeiras e a mesa, arrastando na queda os despojos dos frangos e as frutas em calda de açúcar! Parecia-me vê-lo, rubro, com os olhos desmedidamente abertos e a mão crispada, tentando num esforço angustiado arrancar ao pescoço a gravata.

“– Em que diabo está o senhor a pensar, perguntou-me ele, que parece tão preocupado! Desembuche, homem!

“– Não penso em nada...

“– Um... enfim, não tenho direitos que justifiquem qualquer insistência; senão havia de confessá-lo!

“– O dr. é que me parece satisfeito, hoje.

“– Assim é! E chegando a cadeira para perto da minha, abriu a carteira e mostrou-me duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho, o seu Isidoro, como lembrança de amizade. Veja o amigo, continuava ele, que excelente rapaz! Quantas economias, quantas horas de trabalho isto não representa! meu pobre filho! Nada fiz por ele, não cursou academias, passou muitas vezes vexames, escondendo as botas rotas e tapando com um lenço o pescoço sem colarinho, tudo isso por eu não ter nunca um emprego, uma colocação, uma causa! E agora aí está... dizia, com os olhos rasos d’água, apontando as notas – como ele me recompensa de tantas vergonhas por que passou! E levantando a carteira beijou com ternura, grata, demoradamente, as duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho.

“Não pude reprimir um movimento de indignação; mas o bom homem, todo embebido na sua ventura, não o percebeu. Ofereci-lhe mais vinho e falei de outra coisa.

“Ele estendeu o copo, sem parecer escutar-me; depois, com um sorriso nos lábios e os olhos ainda úmidos, voltou-se para mim e disse:

“– Vá lá! Quero que o meu amigo me acompanhe num brinde! À saúde do melhor dos filhos, o meu Isidoro!

“Estremeci e hesitei; mas venci depressa a minha grande repugnância e, elevando o cálice, repeti maquinalmente: “À saúde do seu filho Isidoro!...”

“Os nossos olhares encontraram-se; o dele cheio de ternura, transbordante de glória, num grande extravasamento de alegria! O meu refletindo a mais penosa das impressões! Tocamos os copos e, silenciosamente, esgotamos o velho Porto.

“Pois, meus amigos, não só ocultei do desgraçado pai o que sucedera ao filho, como ainda fui bater de porta em porta, recomendando silêncio aos seus poucos amigos! Respeitavam-me muito no lugar, e até a minha partida ninguém ousou dizer-lhe coisa alguma a tal respeito. Mas, desde esse dia, a minha vida tornou-se um martírio em Santa Bárbara.

“Todos os dias decidia falar ao dr. Lemos da situação do filho, e todos os dias transferia a execução do plano! Ao senti-lo na escada escondia à pressa os jornais, cheios do nome de Isidoro! Ouvia-lhe os elogios do filho, como o mais honrado, o mais honestamente bom dos homens, sem demonstrar o desprezo, o ódio, que esse rapaz distante e desconhecido me inspirava!

“Uma tarde resolvi definitivamente contar-lhe tudo, e convidei-o para um passeio. Íamos a pé, devagar, palestrando pachorrentamente; seguimos pelas ruas menos frequentadas, até um campo, onde Lemos parou e, estendendo o braço longo e seco, apontou-me um terreno distante, à esquerda, mais sombreado de árvores, ao pé de uma cascatinha tremeluzente, entre verduras de relvas e manchas claras de pedras:

“– Acolá, disse ele, é que eu desejo e ainda espero ver um chalezinho feito pelo meu Isidoro, onde eu viva ao pé dele, de uma nora sensata e de uns netinhos alegres... Será então, se eu conseguir isso, a minha primeira época de felicidade neste mundo!

“Não respondi, mas, francamente, tive vontade de chorar; a única ambição do desventurado era irrealizável como tantas outras! Não! Eu não lhe diria nunca o que tinha feito o seu honesto Isidoro!

“Voltando para casa requeri ao ministro da justiça “licença para tratar da minha saúde onde me conviesse”.

“Felizmente fui atendido; o despacho não se fez esperar muito. Em uma manhã chuvosa parti de Santa Bárbara. Lemos foi dizer-me adeus à estação; parece-me que o estou a ver, fugindo da lama, a saltar de pedra em pedra, com o chapéu de chuva aberto, as calças arregaçadas, o sobretudo abotoado e um lenço de seda enrolado no pescoço.

“Eu já estava no vagão, ele encostou-se ao comboio e segurou--me as mãos com amizade, pedindo-me que, de passagem pelo Rio, visitasse o seu filho.

“Prometi-lhe isso e desci; abraçamo-nos; vi-lhe, através dos óculos, as lágrimas tremerem-lhe presas às pestanas ralas e curtas... Meu pobre amigo... Ao primeiro silvo e à primeira oscilação do trem, entrei à pressa; um empregado fechou com estrondo a porta; Lemos, recuando muito pálido, fixava-me com ternura; mais um segundo e o comboio partiu; debrucei-me na janela; lá ficava sozinho o dr. Lemos, agitando melancolicamente o seu lenço branco.

“Escrevi-lhe do Rio, mas não obtive resposta.

“Soube mais tarde, por uma carta do promotor público, que o velho estava louco; disseram-lhe tudo no próprio dia da minha partida; aquela boa gente arrebentaria de impaciência se o não fizesse! Ora, aí está, meus senhores, como se acabou esta segunda história...”

– Decididamente, sr. conselheiro, achei muito melhor a primeira...

– Deveras, minha senhora?

– Sou da mesma opinião, confirmou o general.

– E eu, e eu, disseram outras vozes.

– Pois, meus amigos, entre todos os fatos da minha vida, foi este o que maior impressão me deixou! Sempre que me lembro do infeliz pai...

– Bem, interrompeu a dona da casa, disfarçando um bocejo: vamos agora ao chá?

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. 
Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (Trilogia “Tibor Lobato”, de Gustavo Rosseb)


“Tibor Lobato” é ótima mistura de Percy Jackson e folclore brasileiro (artigo por Matheus Mans)


Cuca, Saci-Pererê, mula sem cabeça, Boitatá, Curupira. Esses personagens, tão vivos na memória do País, integram um folclore riquíssimo e cheio de cor, vida, natureza e, claro, brasilidade. No entanto, desde Monteiro Lobato e o Sítio do Pica-Pau Amarelo, não era possível encontrar tais figuras no meio literário. Elas acabaram sobrepujadas por outras linhas narrativas, outras fantasias. Infelizmente, ficou pra escanteio. Mas só por um tempo.

Todo esse folclore, adormecido e esquecido nas aventuras do sítio de Dona Benta, ganharam novos traços. Dessa vez, porém, não pela imaginação de Monteiro Lobato, mas de Gustavo Rosseb. Paulista de 33 anos, o autor juntou essas figuras folclóricas na trilogia de livros de Tibor Lobato - formada por O Oitavo Vilarejo, A Guardiã de Muiraquitãs e A Carruagem da Morte​ - para celebrar a cultura brasileira e se aproximar dos mais jovens.

O resultado, sem dúvidas, é louvável. Com uma narrativa simples, acessível e que traz as figuras folclóricas para um patamar mais humano e real, As Aventuras de Tibor Lobato acerta por não ter medo de experimentar. Mistura muito bem feita de Percy Jackson, Harry Potter e um pouquinho de Desventuras em Série, a obra trafega entre o que faz sucesso entre o público infantojuvenil hoje, mas sem esquecer de tradições e raízes.

Para isso, Rosseb cria uma história interessantíssimas. Dois irmãos (Tibor e Sátir) perdem os pais num incêndio e ficam sem ter para onde ir - lembra da trajetória dos irmãos Baudelaire? Depois de muito tempo vagando entre orfanatos, eles acabam encontrando refúgio na casa da avó, uma senhora que mora em um afastado vilarejo do interior. Lá, então, eles acabam sendo confrontados por várias criaturas míticas do nosso folclore.

Sem meandros, o autor vai levando o leitor por uma jornada fantasiosa e cheia de grandes momentos, como há muito não se via na literatura folclórica nacional. Há as homenagens ao que Monteiro Lobato fez e criou - não é à toa o nome do protagonista, é claro - e há muitos elementos da literatura de fantasia recente, como as já citadas tramas de Percy Jackson e Harry Potter. É uma literatura de fantasia jovem, brasileira e responsável.

A inserção de elementos folclóricos é, porém, o ponto alto de Tibor Lobato. Tudo é feito de maneira muito natural, ordenada e inteligente. As figuras mitológicas não entram nas páginas e na história apenas para fazer volume. Há sempre um motivo, uma trama ou um sentimento por trás. A melhor sacada, porém, é a entrada do Saci-Pererê, figura de grande importância na narrativa brasileira de fantasia e que, aqui, possui um papel bem interessante.

A jornada de Tibor, Sátir e da avó também é interessante, bem pensada e inteligente. Ao contrário do que poderia acontecer, Rosseb decide não seguir a fórmula já batida de Rick Riordan e afins. Ele vai por um caminho próprio, brasileiro e muito solar. Mostra como a literatura de fantasia tem espaço e força dentro do Brasil, assim como tantos outros nomes que estão por aí, como Cristina Pezel, Douglas MCT e tantos outros. É pra aplaudir de pé.

Os livros de Tibor Lobato, então, constituem um ponto interessantíssimo na literatura de fantasia brasileira, onde se prova que é possível fazer boa literatura a partir das figuras de nosso folclore - seja para o público infantil, juvenil ou adulto. Basta querer, ter uma boa ideia e perseverança. Rosseb teve. E o resultado são esses livros que merecem um lugar na sua estante.
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GUSTAVO ROSSEB é um nerd que nasceu em São Paulo em 1985. Formado em Rádio e TV, trabalha em vários ramos artísticos. É músico e compositor de música brasileira, com discos e diversos videoclipes lançados. Já se apresentou em grandes festivais como Rock in Rio e SXSW (EUA). Também é roteirista. Em seu currículo estão trabalhos publicitários e autorais. Dos autorais destacam-se o longa-metragem O Segredo de Davi, que ganhou as telas de todo o Brasil e tem Gustavo Rosseb assinando o roteiro ao lado do diretor, além da canção-tema do filme, e a adaptação para os cinemas de seu primeiro livro, O Oitavo Vilarejo.

Como um bom descendente de mineiros, adora pão de queijo, queijo branco com goiabada e, também, ouvir histórias de assombração. Já viajou para diversos cantos do país coletando contos e causos, histórias de nossos pais e avós, para transformá-los em aventuras para seus personagens.

Recentemente, o autor foi citado no livro Fantástico Brasileiro – O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo como um novo fôlego para o folclore nacional. Depois de completar a trilogia As Aventuras de Tibor Lobato (O Oitavo Vilarejo – A Guardiã de Muiraquitãs – A Carruagem da Morte), todos lançados pela Editora Jangada, o autor nos apresenta uma expansão de seu universo.


Fontes:
Esquina da Cultura. Texto de Matheus Mans: “Tibor Lobato' é ótima mistura de Percy Jackson e folclore brasileiro”
Tibor Lobato