sábado, 28 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 452

 


Malba Tahan (O Herdeiro Legítimo)


Um israelita rico, que vivia em sua bela propriedade, para além de Ascalon, muito longe de Jerusalém, tinha um filho único, que mandou para a Cidade Santa a fim de se educar. Durante a ausência do jovem, o pai adoeceu repentinamente. Vendo a morte aproximar-se, fez o seu testamento pelo qual instituiu como seu universal herdeiro a um escravo ascalonita, de sua confiança, com a cláusula que a seu filho seria permitido escolher da rica propriedade uma coisa, e uma coisa só, que ele quisesse.

Assim que o seu senhor e dono morreu, o escravo, exultando de alegria, por se sentir proprietário das casas, terras e rebanhos, correu a Jerusalém para informar o filho do que se tinha passado, e mostrar-lhe o testamento. O jovem israelita ficou possuído do maior desgosto ao ouvir essa notícia inesperada, rasgou o fato, pôs cinzas na cabeça e chorou a morte do pai, que amava ternamente, e cuja memória ainda respeitava.

Quando os primeiros arrebatamentos de sua dor tinham passado e os dias de luto acabaram, o jovem encarou seriamente a situação em que se encontrava. Nascido na opulência e criado na expectativa de receber, pela morte do pai, as propriedades a que tinha direito, viu ou imaginou ver as suas esperanças perdidas e as suas perspectivas malogradas. Nesse estado de espírito, foi ter com o seu professor, um rabi afamado pela sua piedade e sabedoria, deu-lhe a conhecer a causa de sua aflição e fê-lo ler o testamento; e na amargura do seu desgosto atreveu-se a desabafar os seus pensamentos — que o pai, fazendo tal testamento, e dispondo tão singularmente de seus bens, não tinha mostrado bom senso nem amizade pelo filho.

— Não digas nada contra teu pai, meu jovem amigo — declarou o piedoso rabi — teu pai era ao mesmo tempo um homem dotado de grande sabedoria e a ti, especialmente, de uma dedicação sem limites. A prova mais evidente é este admirável testamento.

— Este testamento! — exclamou o jovem torcendo os lábios em expressão de amargura. — Este deplorável testamento! Convencido estou, ó rabi!, de que não falas agora com o discernimento de um homem esclarecido. Praticou meu pai uma injustiça. Não vejo sabedoria em conferir os seus bens a um escravo, nem amizade em despojar seu filho único dos seus direitos legítimos, de acordo com o Torah.

— Teu pai nada disso fez! — rebateu com segurança o Mestre — Mas, como pai justo e afetuoso, garantiu-te, nos termos deste testamento a propriedade plena de tudo, casas, terras e rebanhos, se tiveres o bom senso de interpretar com acerto as cláusulas testamentárias.

— Como? Como? — perguntou o jovem, com o maior espanto. — Como é isso? Cabe-me a propriedade integral? Na verdade, não compreendo!

— Escuta, então — acudiu o rabi. — Escuta, meu filho, e terás muito para admirar a prudência de teu pai. E no coração do prudente repousa a sabedoria. Quando viu teu bondoso pai a morte aproximar-se, e certo de que teria de seguir o caminho que todos seguem mais cedo ou mais tarde, pensou de si para consigo: “Hei de morrer; meu filho está longe demais para tomar posse imediata de minha propriedade; os meus escravos, assim que se certificarem de minha morte, saquearão a minha casa e, para evitar serem descobertos, hão de esconder a minha morte a meu querido filho e, assim, privá-lo até da triste consolação de chorar por mim”.

— Para evitar que a propriedade sofresse dano — prosseguiu o rabi — teve teu saudoso pai uma ideia genial. Deixou todos os bens a um escravo, que, decerto, teria o maior interesse em tomar conta de tudo e zelar pela segurança de todos os bens. Para evitar que o escravo, homem de sua confiança, conservasse, em sigilo, a morte do amo, estabeleceu a condição que poderias escolher qualquer coisa da propriedade. O escravo, pensou ele, para assegurar o seu, aparentemente legítimo direito, não deixaria de te informar, como de fato ele o fez, do que acontecera.

— Mas, então — teimou o jovem, um pouco impaciente — que proveito tirarei de tudo isso? Qual é a vantagem que poderá resultar para mim? O escravo ascalonita não me restituirá, com certeza, a propriedade de que tão injustamente fui despojado! Ficará, como determinou meu pai, dono das terras e dos rebanhos.

O judicioso rabi respondeu com serenidade:

— Vejo que a Sabedoria reside apenas nos espíritos amadurecidos pela idade. Sabes que tudo quanto um escravo possui pertence ao seu dono legítimo? E teu pai não te deu a faculdade de escolher, dos seus bens, isto é, da herança, qualquer coisa que quisesses? O que te impede de escolher aquele próprio escravo ascalonita como parte que te pertence? E possuindo-o, terás, de acordo com a Lei, pleno direito à propriedade toda. Sem dúvida era esta a intenção de teu pai.

O jovem israelita, admirando a prudência e a sabedoria do pai, tanto como a argúcia e a ciência do seu Mestre, aprovou a ideia. Nos termos do testamento, e na presença de um juiz, escolheu o escravo como sua parte e tomou posse imediata de toda a herança. Depois do que, concedeu liberdade ao escravo, que foi, além disso, agraciado com rico presente.

E assim podemos ler entre os provérbios que figuram no Livro Santo:

“A Sabedoria vale mais do que as pérolas e jóia alguma a pode igualar”.

E mais:

“Quem acha a Sabedoria encontra a vida e alcança o favor do Senhor”.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 3

AMOR  FELINO


 O gato chegou de esguelha, moroso, amorado.
Chegou, gateou, miou um miado de desejo.
Derramou um olhar de sultão, anunciando volúpia.
Palmeou o terreno, miou afinado,
saracoteou  exibindo  felinidade.
Agradou, submeteu-se.
A lua romântica prateou o gato, o miado se alongou,
 se perdeu nas barreiras da noite.
E o gato se afastou  molengamente
tomado  por aquela frouxidão  aconchegante
que se sucede depois do amor.
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AUSÊNCIA

Pássaro amigo, cessa  teu canto
que  por  enquanto, não quero ouvir.
Não cantes mais, quero o  silêncio
para  sonhar, para dormir.
Teu canto é  belo, mas  eu  não  quero
ouvi-lo  assim.
Deixa- me agora   e sem demora
leva  contigo, pássaro amigo,
toda  a tristeza que  há  em  mim.
E se voltares  traga em teu canto
o  doce encanto de uma presença.
Mesmo volátil, em  gaze fluida,
mesmo  num  quase, mesmo em essência!
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DESVARIO

 Hoje se apoderou de mim
um espírito de criança.
Menina arteira, eu virei bicho,
pastei  grama, uivei,  esgravatei o chão,
pulei  corda e despetalei um malmequer
para tirar a  sorte.
Escarranchei sobre minha janela
e aspirei o perfume das rosas
 que  há quarenta anos se esparramavam sobre ela.
Ali  foi o meu canto de silêncio,
 meus  momentos de diálogos  introspectivos.
Foi tudo perfeito, até que fosse desfeito o  sonho
e acabasse a doideira.
Depois, só lonjura!
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DISFARCES

Reinvento-me  para fugir de uma angústia  flácida,
velha  angústia  que se fez platônica
e  deixou n´alma uma ferida crônica
um  não sei quê de uma dor semântica.

 Reinvento auroras se a noite é sólida,
se  a solidão  acena e o silêncio é frêmito.
Invento trilhas pra minha alma em trânsito
se  a chuva cai e me impede o tráfego.

 Engulo  seco e contenho  as  lágrimas,
reinvento  passos se o andar  é trôpego,
pinto  as  faces  e disfarço o pálido,
engano o tempo que me bebe sôfrego.

 Faço da vida o meu tema único,
sou  a invenção de um poeta cômico.
Faço das letras um poema bêbado
que impulsiona o meu corpo em êxodo.

 Sou a vítima, sou disfarce, sou inquérito,
sou a vida questionada nas linhas do pretérito.
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ESTIAGEM

 Ando de um lado para outro dentro de mim
e não me alcanço.
Distancio das minhas carências
enquanto  me preparo para o amor.
Sou semente à espera das tuas águas,
sou  terra seca à espera do teu frescor.
Deixa que me venham os teus rios
e  eu te farei pescador de mim .
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MOMENTO
   
Na bica de água fresca me debruço.
Bebo o tempo e a longa espera.
Me farto de renovo.
Foi então que colhi gotas d‘água
e com elas quis fazer uma represa,
eternizar  o  momento.
Mas elas não se represaram em meu corpo,
gasto  pelo áspero clima de outras paisagens.
Foi aí que meu chão empedrou, ficou  cinzento
e minha alma passou a sofrer de cascalho.
Só na poesia me despedro e me desbravo.
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RECURSOS POÉTICOS I
 
Não escrevo por mim,
 a vida me propôs usar esse recurso.
Escrevo para eternizar a palavra
que é mais forte  diante do eu que em mim habita.
Escrevo para me enganar
de que o viver não me amedronta.
O tempo passa, mas a palavra resiste.
Minha voz se cala, mas o som de cada  palavra
eterniza  meus hiatos e interrogações sem respostas.
A palavra se encarrega de preservar meus sentimentos,
a palavra me conduz, enquanto ser humano..
O resto é engano.
Ave, Palavra!
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SOLIDÃO

 Sonho-te e te reconstruo.
Recrio a tua imagem, vulto intocável,
volátil   presença  que se evapora dentro da noite
para o desconsolo da minha ilusão.                                                                   
Pudesse eu te tocar, pediria que  ficasses
e  bebesses do meu cálice o amargo vinho
 que  transborda da minha taça de solidão.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.

Monteiro Lobato (“Pollice verso”)


Dos dezesseis filhos do Coronel Inácio da Gama cedo revelou o caçula singulares aptidões para médico. Pelo menos assim julgara o pai, como quer que o encontrasse na horta interessadíssimo em destripar um passarinho agonizante.

— Descobri a vocação de Nico — disse o arguto sujeito à mulher. — Dá um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá fora dissecando um sanhaço vivo.

Hão de duvidar os naturalistas estremes que o homem dissesse “dissecando”. Um coronel indígena falar assim com este rigor de glótica é coisa inadmissível aos que avaliam o gênero inteiro pela meia dúzia de pafúncios agaloados do seu conhecimento. Pois disse. Este coronel Gama abria exceção à regra; tinha suas luzes, lia seu jornal, devorara em moço o Rocambole, as Memórias de um médico e acompanhava debates da Câmara com grande admiração por Rui Barbosa, Barbosa Lima, Nilo e outros. Vinha-lhe daí um certo apuro na linguagem, destoante do achavascado ambiente glóssico da fazenda, onde morava.

Quem nada percebeu foi dona Joaquininha, a avaliar pelo ar emparvecido que deu à cara.

— Dissecando — explicou superiormente o marido — quer dizer destripando. — E deixou você que ele cometesse semelhante malvadeza? — exclamou a excelente senhora, compadecida.

— Lá vens com a pieguice!... Deixa-lo brincar, que é da idade, eu em pequeno fazia piores e nem por isso virei nenhum ogre.

(Outra vez! “Ogre”! O homem nascera precioso. Este ogre devia ser reminiscência do Ogre da Córsega, Napoleão chamado. Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia da esposa, cujo vocabulário era dos mais restritos.)

Dona Joaquina fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou do quintal pediu-lhe contas da perversidade, asperamente. O coronel, que nesse momento lia na rede as folhas recém-chegadas, houve por bem interromper a ingestão de um flamante discurso sobre a questão do Amapá para acudir em apoio ao fedelho.

— Uma vez que será médico, não vejo mal em ir-se familiarizando com a anatomia...

— A anatomia está ali! — rematou a encolerizada senhora apontando a vara de marmelo oculta atrás da porta. — Eu que saiba que o senhor me anda com judiarias aos pobres animaizinhos, que te disseco o lombo com aquela anatomia, ouviu, seu carniceiro?

O menino raspou-se; o coronel retomou resignado o fio do discurso; e o caso do sanhaço ficou por ali.

Mas não ficou por ali a malvadez de Nico. Acautelava-se agora. Era às escondidas que “depenava” moscas, brinquedo muito curioso, consistente em arrancar-lhes todas as pernas e asas para gozar o sofrimento dos corpinhos inertes. Aos grilos cortava as saltadeiras, e ria-se de ver os mutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos.

Gatos e cães farejavam-no de longe, aterrorizados. Fora ele quem cortara o rabo ao mísero Joli da agregada Emiliana, e era quem descadeirava todos os gatos da fazenda. Isso, longe. Em casa, um anjinho. E assim, anjo internamente e demônio extramuros, cresceu até à mudança de voz. Entrou nesse período para um colégio, e deste pulou para o Rio, matriculado em medicina.

O emprego que lá deu aos seis anos do curso soube-o ele, os amigos e as amigas. Os pais sempre viveram empulhados, crentes de que o filho era uma águia a plumar-se, futuro Torres Homem de Itaoca, onde, vendida a fazenda, então moravam. Nesta cidade tinham em mente encarreirar o menino, para desbanque dos quatro esculápios locais, uns onagros, dizia o coronel, cuja veterinária rebaixava os itaoquenses à categoria de cavalos.

Pelas férias o doutorando aparecia por lá, cada vez “mais outro”, desempenado, com tiques de carioca, “ss” sibilantes, roupas caras e uns palavreados técnicos de embasbacar.

Quando se formou e veio de vez, estava já definitivo, nos 24 anos. Não se lhe descreve aqui a cara, porque retratos por meio de palavras têm a propriedade de fazer imaginar feições às vezes opostas às descritas. Dir-se-á unicamente que era um rapaz espigado, entre louro e castanho, bonito mas antipático — com o olhar de Stuart Holmes, diziam as meninas doutoras em cinemas. No queixo trazia barba de médico francês, coisa que muito avulta a ciência do proprietário.

Doentes há que entre um doutor barbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam sem tir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor. O doutor Inacinho, entretanto, aborrecia aquele meio acanhado “onde não havia campo”.

“Isto aqui” — contava em carta aos colegas do Rio — “é um puro degredo. Clínica escassa e mal pagante, sem margem para grandes lances, e inda assim repartida por quatro curandeiros que se dizem médicos, perfeitas vacas de Hipócrates, estragadores de pepineira com suas consultinhas de cinco mil réis. O cirurgião da terra é um Doy en de sessenta anos, emérito extrator de bichos-de-pé e cortador de verrugas com fio de linha. Dá iodureto a todo mundo e tem a imbecilidade de arrotar ceticismo, dizendo que o que cura é a natureza. Estes
rábulas é que estragam o negócio” — etc.

Negócio, pepineira, grandes lances — está aqui a psicologia do novo médico. Queria pano verde para as boladas gordas.

“Além disso” — continuava —, “é-me insuportável a ausência da Yvonne e de vocês. Não há cá mulheres, nem gente com quem uma pessoa palestre. Uma pocilga! As boas pândegas do nosso tempo, hein?”

Ora aqui está: Yvonne, os amigos, as pândegas foram o melhor do curso. Com mão diurna e noturna manuseou-os a estes tratadistas de anatomia, da fisiologia, da calaçaria, e agora torturavam-no saudades. Yvonne volta à pátria, deixando cá a meia dúzia de amantes que depenara a morrerem de saudades dos seus encantos. Antes de ir-se deu a cada parvo uma estrelinha do céu, para que, a tantas, se encontrassem nela os amorosos olhares. Os seis idiotas todas as noites ferravam os olhos, um no “Taureau” (ela distribuíra as constelações em francês), outro na “Écrevisse”, outro na “Chevelure de Bérenice”, o quarto, no “Bélier”, o quinto em “Antarés”, e o derradeiro na “Épi de la Vièrge”.

A garota morria de rir no colo dum apache montmartre, contando-lhe a história cômica dos seis parvos brasileiros e das seis constelações respectivas. Liam juntos as seis cartas recebidas a cada vapor, nas quais os protestos amorosos em temperatura de ebulição faziam perdoar a ingramaticalidade do francês antártico. E respondiam de colaboração, em carta circular, onde só variava o nome da estrela e o endereço.

Esta circular era o que havia de terno. Queixava-se a rapariga de saudades, “essa palavra tão poética que fora aprender no Brasil, o belo país das palmeiras, do céu azul, e dos michês”. Acoimava-os de ingratos, já em novos amores, ao passo que a pobrezinha, solitária e triste “comme la juriti”, consagrava os dias a rememorar o doce passado.

Eis explicada a razão pela qual, nas noites límpidas, ficava Inacinho à janela, pensativo, de olhos postos na “Chevelure de Bérenice”. O sonho do moço era enriquecer às rápidas para reatar a gostosura do idílio interrompido.

— Paris!... — balbuciava à meia-voz nos momentos de devaneio, semicerrando os olhos no antegozo do paraíso. Sonhava-se lá, riquinho, com Yvonne pelo braço, flanando no “Bois”, tal qual nos romances; e a realização deste sonho era o alvo de todos os seus anelos. Jurara à amiga ir ter com ela logo que a prosperidade lhe abastasse meios. O tempo, entretanto, corria sem que nenhuma piabanha de vulto lhe caísse na rede. Tardava a bolada...

Entre os médicos antigos de Itaoca o doutor Inacinho gozava péssimo renome — se renome péssimo pode ser coisa de gozo.

— Uma bestinha! — dizia um. — Eu fico pasmado mas é de saírem da Faculdade cavalgaduras daquele porte! É médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. Fora daí, que cavalo!

— E que topete! — acrescentava outro. — Presumido e pomadista como não há segundo. Não diz “humores” ou “sífilis”; é mal luético. Eu o que queria era pilhá-lo numa conferência, para escachar...

O pai, já viúvo então, esse babava-se de orgulho. Filho médico, e ainda por cima destabocado e bem falante como aquele... Era de moer de inveja aos mais. Enlevava-o, sobretudo, aquele modo alcandorado de exprimir-se. Revia-se no filho, o coronel...

— A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em grego e latim, circunvolve naquela cabecinha — disse ele uma vez ao vigário, que o olhou de revés, por cima dos óculos, ao som daquele mirífico circunvolve.

E assim corria o tempo, entre as diatribes das duas ciências, a moça e a velha, com entremeio dos belos vocábulos que o coronel nunca perdia de meter na falação.

Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com trezentas apólices federais, o Rockefeller de Itaoca. Deu-lhe uma súbita aflição, uma canseira, e a mulher alvoroçou-se.

— Não é nada, isto passa — acalmou ele.

— Passará ou não!... O melhor é chamar um médico.

— Qual, médico! Isto é nada.

Não era tão nada assim, como pretendia. À noite agravou-se-lhe o mal estar, e o velho, apreensivo, cedeu às instâncias da esposa. Chamar a qual deles, porém?

— Pois o Moura — disse a mulher, para quem o da sua confiança era este Moura.

— Deus me livre! — retrucou o doente. — Aquilo é homem mal azarado. Pois não foi quem tratou Zeca, Peixoto, Jerônimo? E não esticaram a canela todos três?

— O doutor Fortunato, então…

— Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por ocasião do júri, o tranca? Cobrar cinquenta mil réis por um atestado falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata...

No doutor Elesbão não se falou: era adversário político.

— Chama-se Galeno...

— É tão mosca-morta Galeno... — gemeu o doente com cara de desconsolo. — Andou anos a tratar Faria do Hotel como diabético, e já o dava por morto quando um curandeiro da roça o pôs saníssimo com um coco-da-baía comido em jejum. Eram solitárias os diabetes do homem... Só se vier o filho de Inácio?!

Aqui foi a mulher quem protestou.

— Eu, a falar a verdade, prefiro a ruindade de Galeno, a má sorte de Moura, e até Elesbão...

— Esse, nunca!... — interrompeu o velho, num assomo de rancor político.

— ... do que a antipatia do tal doutorzinho. Os outros ao menos têm a experiência da vida, ao passo que este...

— Este, quê?

— Este, Mendanha, é moço bonito, que o que quer é dinheiro e pândega, você não vê?

— Qual!... — emberrinchou o teimoso. — Sempre há de saber um pouco mais que os velhos; aprendeu coisas novas. No caso de Nhazinha Leandro, não a pôs boa num ápice?

— Também que doença! Prisão de ventre...

— Seja prisão ou soltura, o caso foi que a curou. Mande chamar o menino.

— Olhe, olhe! Depois não se arrependa!...

— Mande, mande chamá-lo e já, que não me estou sentindo bem.

Inacinho veio. Interrogou detidamente o major, tomou-lhe o pulso, auscultou-o com o semblante carregado e disse, depois de longa pausa:

— Não diagnostico por enquanto, porque não sou leviano como “certos” por aí. Sem auscultação estetoscópica nada posso dizer. Voltarei mais tarde.

— Vê? — disse Mendanha à esposa logo que o moço partiu. — Fosse Moura, ou qualquer dos tais, e já dali da porta vinha berrando que era isto mais aquilo. Este é consciencioso. Quer fazer uma auscultação, quê?

— Estereoscópica, parece.

— Seja o que for. Quer fazer a coisa pelo direito, é o que é.

Voltou o moço logo depois e com grande cerimonial aplicou o instrumento no peito magro do doente. Vincou de novo a fisionomia das rugas da concentração e concluiu com imponente solenidade:

— É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal.

O doente arregalou o olho. Nunca imaginara que dentro de si morassem doenças tão bonitas, embora incompreensíveis.

— E é grave, doutor? — perguntou a mulher, assustada.

— É e não é! — respondeu o sacerdote. — Seria grave se, modéstia de lado, em vez de me chamarem a mim chamassem a um desses mata-sanos que por aí rabulejam. Comigo é diferente. Tive no Rio, na clínica hospitalar, numerosos casos mais graves e a nenhum perdi. Fique descansada que porei o seu marido completamente são dentro de um mês.

— Deus o ouça! — rematou a mulher acompanhando-o até a porta e já meio reconciliada com a “antipatia”.

— Então? — perguntou-lhe o doente. — Fiz ou não fiz bem em chamar este moço?

— Parece... Deus queira tenhamos acertado, porque isto de médicos é sorte.

— Não é tanto assim — reguingou o velho. — Os que sabem, conhecem-se por meia dúzia de palavras, e este moço ou muito me engano ou sabe o que diz. Fosse Fortunato...

E riu-se lá consigo ao imaginar as doencinhas caseiras que Fortunato descobriria nele...

A doença do major Mendanha ninguém soube qual fosse. O lindo diagnóstico de Inacinho não passava de mera sonoridade pelintra. Bacorejara ao moço que o velho tinha o coração fraco e qualquer maromba no fígado. Isto porque lhe doía, a ele, aqui no “vazio”; aquilo por ser natural. Confessá-lo com esta sem-cerimônia, porém, seria fazer clínica à moda de Fortunato, e desmoralizar-se. Além do mais, quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar a doença... Engordar a maquia...

Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas uma bolada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo. A saúde do velho importava-lhe tanto como as estrelas do céu — exceção feita à “Cabeleira de Berenice”. Como desadorasse a medicina, não vendo nela mais que um meio rápido de enriquecer, nem sequer lhe interessava o “caso clínico” em si, como a muitos. Queria dinheiro, porque o dinheiro lhe daria Paris, com Yvonne de lambuja. Ora, o major tinha trezentas apólices... Dependia pois da sua artimanha malabarizar aquele fígado, aquele coração, aquelas palavras gregas e, num prestidigitar manhoso, reduzir tudo a uns tantos contos de réis bem sonantes.

Mandou carta à francesinha: “Os negócios melhoraram. Estou metido em uma empresa que se me afigura rendosa. Saindo tudo a contento, tenho esperanças de inda este ano beijar-te sob a luz da terna confluente dos nossos olhares...”.

O velho piorou com a medicação. Injeções hipodérmicas, cápsulas, pílulas, poções, não houve terapêutica que se não experimentasse desastrosamente.

— É mais grave o caso do que eu supunha — disse o doutor à mulher — e os escrúpulos do meu sacerdócio aconselham-me a pedir conferência médica.

Os colegas da terra são os que a senhora sabe; entretanto, submeto-me a ouvi-los.

— Não, doutor! Mendanha não quer ouvir falar nos seus colegas; só tem confiança no doutor Inácio Gama.

— Nesse caso...

Inacinho voltou para casa esfregando as mãos. Estava só em campo, com todos os ventos favoráveis. Paris corria-lhe ao encontro...

Malgrado seu, na semana seguinte, inesperadamente, o raio do major apresentou melhoras. Sarava, o patife! E a Inácio palpitou que com mais uma quinzena daquela arribação o homem se punha de pé.

Fez os cálculos: trinta visitas, trinta injeções e tal e tal: três contos. Uma miséria! Se morresse, já o caso mudava de figura, poderia exigir vinte ou trinta. Era costume dos tempos fazerem-se os médicos herdeiros dos clientes. Serviços pagos em caso de cura aí com centenas de mil-réis, em caso de morte reputavam-se em contos. Se os interessados relutavam no pagamento, a questão subia aos tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros, mestres do mesmo ofício, sustentavam o pedido por coleguismo, dizendo em latim: “Hodie mihi, cras tibi”, cuja tradução médica é: “Prepare-se você para me fazer o mesmo, que também pretendo dar a minha cartada”.

Inácio ponderou tudo isto. Mediu prós e contras. Consultou acórdãos. E tão absorvido no problema andou que à noite se deixava ficar à janela até tarde, mergulhado em cismas, sem erguer os olhos para a Berenice estelar.

O que a sua cabeça pensou ninguém o saberá jamais. Têm as ideias para escondê-las a caixa craniana, o couro cabeludo, a grenha; isso por cima; pela frente têm a mentira do olhar e a hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas, elas, já de si imateriais, ficam inexpugnáveis à argúcia alheia. E vai nisso a pouca de felicidade existente neste mundo sublunar. Fosse possível ler nos cérebros claro como se lê no papel e a humanidade crispar-se-ia de horror ante si própria...

Positivo como era Inacinho, supomos que meteu em equação o problema das duas vidas.

Primeira hipótese:
Cura do major = 3 contos.
Três contos = Itaoca, pasmaceira etc.

Segunda hipótese:
Morte do major = 30 contos.
Trinta contos = Paris, Yvonne, “Bois”...

Depois desta sólida matemática, esta anavalhante filosofia: “A morte é um preconceito. Não há morte. Tudo é vida. Morrer é transitar de um estado para outro. Quem morre, transforma-se. Continua a viver inorganicamente, transmutado em gases e sais, ou organicamente, feito lucílias, necróforas e uma centena de outras vidinhas esvoaçantes. Que importa para a universal harmonia das coisas esta ou aquela forma? Tudo é vida. A vida nasce da morte. Eu preciso, eu ‘quero’viver a minha vida. Há óbices no caminho? Afasto-os...”.

Fiquemos por aqui. Não há tempo para filosofias, porque o major Mendanha piorou subitamente e lá agoniza. Morreu.

O atestado de óbito deu como causa mortis flegmatite complicada com necrose elipsodal. Podia batizá-la de embolia estourada, nó cego na tripa, tuberculose mesentérica, estupor granuloso peristáltico, ou qualquer outro dos cem mil modos de morrer à grega.

Morreu, e está dito tudo. Morreu, e o doutor Inacinho apresentou no inventário uma conta de chegar: 35 contos de réis.

Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da Justiça. Mói-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos romanos. Procede-se ao arbitramento.

Os árbitros são Fortunato e Moura, os quais disseram entre si:

— Que grande velhaco! Mata o homem e ainda por cima quer ficar-se herdeiro! O tratamento, alto e malo, não vale cem mil-réis. Que valha duzentos. Que valha um conto ou três. Mas trinta e cinco? É ser ladrão!...

No laudo, entretanto, acharam relativamente módico o pedido — sem dizer relativo ao quê.

A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, o qual obrigava o espólio a aliviar-se de trinta e cinco contos de réis em proveito do médico, mais as custas da esvurmadela forense. Inacinho, radiante, embolsou os cobres e reconciliou-se com os dois colegas que, afinal de contas, não eram os cretinos que supusera.

— Colegas, o passado, passado; agora, para a vida e para a morte!

— Pois está visto! — disse Fortunato. — Tolo andou você em abrir luta com os que ajudam o negócio. O coleguismo: eis a nossa grande força!...

— Tem razão, tem razão. Criançada minha, ilusões, farofas que a idade cura... Que mais? Que voou a Paris? É claro. Voou e lá está sob o pálio da grenha astral, a passear com a Yvonne no “Bois”.

Ao pai escreveu:

“Isto é que é vida! Que cidade! Que povo! Que civilização! Vou diariamente à Sorbonne ouvir as lições do grande Doyen e opero em três hospitais. Voltarei não sei quando. Fico por cá durante os 35 contos, ou mais, se o pai entender de auxiliar-me neste aperfeiçoamento de estudos.”

A Sorbonne é o apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache de Yvonne o dia da rapariga. Os três hospitais são os três cabarés mais à mão.

Não obstante, o pai cismou naquilo cheio de orgulho, embora pesaroso: não estar viva Joaquininha para ver em que alturas pairava Nico — Nico do sanhaço estripado... Em Paris! Na Sorbonne!... Discípulo querido do Doy en, o grande, o imenso Doy en!...

Mostrou a carta aos médicos reconciliados.

— Isso de hospitais — gemeu o invejoso Fortunato — é uma mina. Dá nome. Para botar nos anúncios é de primeiríssima.

— E o Doy en? — murmurou, baboso, o embevecido pai. — Não há como a gente apropinquar-se das celebridades...

— É isso mesmo — concluiu Moura, relanceando um olhar a Fortunato num comentário mudo àquele mirífico apropinquamento. E os dois enxugaram, a uma, os copos da cerveja comemorativa mandada abrir pelo bem-aventurado coronel.

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. 1916.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 451

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 11 e 12

O SEXTO GATO


Nasceram sete gatinhos da gata siamesa, mas o sétimo era mofino, e a mãe não lhe deu apreço, pelo que o coitado achou de bom aviso raspar-se deste mundo com a maior discrição.

Os restantes cresceram na forma habitual, e à medida que cada um se desenvolvia a gata se considerava quite com ele, dispensando-se de amamentá-lo e lambê-lo. Sabendo que esta é a lei natural, eles saíam muito lampeiros para viver a vida.

O último, porém, não quis desligar-se da proteção materna. Deixar de mamar, ele admitia, mas deixar de ser lambido e de dormir encostado à mãe, isso nunca.

Resultou que a gata, a princípio aborrecida, acabou se conformando com a companhia do gato já florido e maior do que ela, e daí por diante esqueceu as regras da espécie, passando a ser a primeira supermãe felina.

O dono quis separá-los para vender a cria. A mãe ferrou-lhe uma unhada no traseiro, que o fez desistir do negócio.

Mãe e filho, inseparáveis e castos, foram objeto de programas de televisão do Dia das Mães e do Dia dos Gatos, mas queixavam-se da publicidade. Preferiam dormir nessas ocasiões.
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O SOFRIMENTO DE JÓ


Os amigos de Jó, ao fim de certo tempo, acharam que ele se comprazia em sofrer e lamentar-se porque o Senhor o havia abandonado. Sentiam-se enervados com a prantina infindável.

— É preciso dar jeito na vida de Jó — dizia um. — Ninguém mais suporta as suas lamentações. Vamos propor-lhe uma viagem ao país de Tiro, onde ele se deleitará com as coisas belas e agradáveis ofertadas pelo rei Hirão?

Jó recusou o convite, alegando que não tinha amigos, e a proposta visava sua perdição eterna. Trancou a porta a Elifaz, a Baldad e a Sofaz, e continuou a dizer-se o mais desgraçado dos homens. A Morte, que rondava, escutou-o. E sugeriu-lhe:

— Venha comigo. Darei cura total a seus males.

— Muito obrigado — respondeu Jó. — Não posso mais viver sem eles. Desaprendi a alegria e, pensando bem, qualquer estado é sempre o mesmo; todas as coisas são uma só e triste coisa. Deixe-me em paz, isto é, em guerra comigo mesmo.

O Senhor, ouvindo tamanho dislate, apiedou-se de Jó e restituiu-lhe as graças e bens perdidos, mas Jó nunca mais foi o mesmo homem. Conhecera o sofrimento, que lhe voltava em sonho.

Esta versão, que contraria o livro clássico, foi divulgada pela terceira filha de Jó, chamada Cornustíbia, a quem os cronistas da época não concedem maior crédito, alegando que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXIII


MUNDO MAU

MOTE:
Ao ver no meu dia-a-dia
um mundo mau, revoltante,
só no amor e na poesia
sinto um belo fascinante.
Milton Nunes Loureiro
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ


GLOSA:
Ao ver no meu dia-a-dia
tanta tristeza ao redor,
essa visão me angustia,
entra em mim, fica maior.

É um mundo sem emoção!
Um mundo mau, revoltante,
onde a palavra: razão,
não chega a ser importante!

Mas existe uma magia
e o poeta com seu verso
só no amor e na poesia
tenta mudar o universo!

A poetar eu me ponho,
e assim, vou seguindo adiante,
pois mergulhado em meu sonho
sinto um belo fascinante.
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SONHANDO...

MOTE:
Sonhando viver em paz,
vivo num campo de guerra,
onde está sempre em cartaz
toda a pobreza da terra.

Nilton Manoel Teixeira
Ribeirão Preto/SP


GLOSA:
Sonhando viver em paz,
vou fazendo minhas trovas,
pois a trova é que nos traz
muitas esperanças novas!

Sofre nosso mundo inteiro...
Vivo num campo de guerra,
não nasci pra ser guerreiro;
guerra, só tristeza encerra!

Ser feliz, como me apraz,
sei que é difícil de ser,
onde está sempre em cartaz
o que eu quisera esquecer!

Esse cartaz que estou vendo,
que muita angústia descerra,
vai aos poucos descrevendo
toda a pobreza da terra.
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QUANDO CHEGAR A PAZ!

MOTE:
E quando chegar a paz
com alicerces de amor,
qualquer um vai ser capaz,
de suas armas depor.

Oefe Souza
Ribeirão Preto/SP


GLOSA:
E quando chegar a paz
se conscientizando o mundo,
deixaremos para trás
todo esse sofrer profundo!

Se protegermos as bases
com alicerces de amor,
abrandaremos as fazes
ruins e que tragam dor!

O amor – o que é mau, desfaz,
sempre trazendo a alegria,
qualquer um vai ser capaz,
de atingir sua utopia!

Diante do amor – as maldades
perderão a força e a cor,
e terão a sobriedade,
de suas armas depor.
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OCASO SEM TI...

MOTE:
O sol no ocaso não viste,
porque o dia foi covarde,
e chorou quando partiste
chovendo no fim da tarde.

Otavio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019, Nova Friburgo/RJ


GLOSA:

O sol no ocaso não viste,
pois a tarde, em seus segredos,
fingindo que nada existe,
tenta esconder os seus medos!

Foi muito grande a tristeza,
porque o dia foi covarde,
e escondeu toda a beleza,
terminando sem alarde!

Nunca vi dia mais triste!
O Sol se tornou cinzento
e chorou quando partiste,
gemendo na voz do vento!

Tenho triste o coração!
Em pranto o Sol já não arde,
e chora a sua emoção
chovendo no fim da tarde.
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SIGO EM FRENTE

MOTE:
Sem que a vida me amedronte
sigo em frente, cumpro a meta,
buscando além do horizonte
a luz que me faz poeta!

Rita Marciano Mourão
Ribeirão Preto/SP

GLOSA:

Sem que a vida me amedronte
e sem ter medo da morte,
não deixo que ela me afronte.
O meu caminho é de sorte!

Com a sorte sempre ao meu lado,
sigo em frente, cumpro a meta,
é para mim, um achado
a coragem que me aquieta!

Eu bebo a água da fonte
que me dá muita alegria,
buscando além do horizonte
todo um caudal de poesia!

Vivo com grande emoção
e minha alma, então, decreta
que nasça em meu coração
a luz que me faz poeta!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Contos e Lendas do Mundo (Como o Pescoço do Avestruz ficou Comprido)


Antigamente, o avestruz tinha o pescoço curto, como todas as aves.

Naqueles dias, ele queria mais que tudo ficar amigo do crocodilo. Todos os pássaros avisaram que estava cometendo um grande erro.

- Você não pode confiar no crocodilo - disse o macaco - ele é malvado, mal-educado, e espanta todos os animais para longe do rio.

- E, além disso, é preguiçoso - disse o gnu - não faz nada o dia inteiro, fica só deitado, esperando aparecer algum almoço.

- E só pensa nele mesmo - acrescentou o elefante - é só você virar as costas que ele lhe dá uma mordida. Não, não dá para confiar no crocodilo.

Mas o avestruz nem ligava, insistindo em querer brincar com o crocodilo.

Um dia, o crocodilo estava especialmente faminto, pois ficara sem o desjejum. Assim, disse para o avestruz:

- Meu bom amigo, estou com uma terrível dor de dentes! Você se incomodaria de enfiar a cabeça na minha boca, para ver o que há de errado?

E escancarou bem as mandíbulas.

- Ora, é claro, querido crocodilo! - disse o avestruz.

E chegou a cabeça bem perto.

- Mas você tem tantos dentes! - gritou o avestruz - qual é o que está doendo?

- É um lá atrás - disse o crocodilo - olhe bem lá atrás!

E o avestruz enfiou a cabeça lá dentro.

- Está muito escuro aqui dentro - gritou - e são tantos dentes! Ainda não vi qual é o que dói.

E o avestruz enfiou ainda mais a cabeça.

- É este? - gritou.

- É isto! - o crocodilo gritou de volta. E fechou a bocarra, prendendo a cabeça do pobre avestruz.

- Socorro! - gritava, puxando para trás com o corpo, tentando retirar a cabeça.

Mas o crocodilo puxava para o outro lado, segurando firme. A ave puxava para um lado, ele puxava para o outro. E o pescoço do avestruz foi esticando.

Ficaram se puxando o dia inteiro, e o pescoço do avestruz esticava cada vez mais. Deve ter doído bastante, mas o avestruz continuava puxando, pois não queria perder a cabeça.

Por fim, o crocodilo ficou cansado de puxar e largou. O avestruz pulou para trás e saiu correndo do rio o mais rápido que podia. E até hoje tem o pescoço comprido, para se lembrar de ficar longe de tipos como o crocodilo.

Fonte:
Universo das Fábulas

A Crônica


Na literatura e no jornalismo, uma crônica é uma narração curta, produzida essencialmente para ser veiculada na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas páginas de um jornal ou mesmo na rádio. Possui assim uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem.

ORIGEM

A palavra crônica se origina do latim Chronica e do grego Khrónos (tempo). O significado principal neste tipo de texto é precisamente o conceito de tempo, ou seja, é o relato de um ou mais acontecimentos em um determinado período.

Significava, no início do Cristianismo, o relato de acontecimentos em sua ordem temporal (cronológica). Era, portanto, um registro cronológico de eventos.

A partir do século XV, com Fernão Lopes, a crônica passou a ser uma perspectiva individual ou interpretativa. Até então, resumia-se a relatos de acontecimentos históricos, registrados por ordem cronológica. A crônica de teor crítico surgiu com os periódicos (folhetins e jornais), evoluindo até adentrar de vez ao jornalismo e à literatura. Ela apareceu pela primeira vez em 1799, no Journal des Débats, publicado em Paris.

O número de personagens é reduzido ou até podem não haver personagens. É a narração do cotidiano das pessoas de forma bem humorada, fazendo com que se veja de uma forma diferente aquilo que parece óbvio demais para ser observado.

Uma boa crônica é rica nos detalhes, descritos pelo cronista de forma bem particular, com originalidade.

A crônica literária, surgida a partir do folhetim, na França, tomou características próprias no Brasil.

CARACTERÍSTICAS


A crônica era, primordialmente, um texto escrito para ser publicado em jornais e revistas. Assim o fato de ser publicada nesses meios já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições.

Há semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista se inspira nos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica. Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como: ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém.

Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o jornalismo e a literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia. A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com o leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam.

Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê.

Em resumo, podemos determinar em quatro pontos:

– Seção ou artigo especial sobre literatura, assuntos científicos, esporte etc., em jornal ou outro periódico;

– Pequeno conto que relata de forma artística e pessoal fatos colhidos no noticiário jornalístico e cotidiano;

– Normalmente possui uma crítica indireta;

– Muitas vezes a crônica vem escrita em tom humorístico.

Exemplos de autores deste tipo de crônica no Brasil são Fernando Sabino, Leon Eliachar, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes.

Tipos de crônica

CRÔNICA DESCRITIVA


Ocorre quando uma crônica explora a caracterização de seres animados e inanimados em um espaço vivo como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado.

CRÔNICA NARRATIVA

Baseia-se em uma história, o que a aproxima do conto. Pode ser narrado tanto na 1ª quanto na 3ª pessoa do singular. Texto lírico (poético, mesmo em prosa). Comprometido com fatos cotidianos ("banais", comuns), com personagens, enredo,

CRÔNICA DISSERTATIVA

Opinião explícita, com argumentos mais "sentimentalistas" do que "racionais" (por exemplo, ao invés de se escrever "segundo o IBGE a mortalidade infantil aumenta no Brasil", escreve-se "vejo mais uma vez esses pequenos seres não alimentarem sequer o corpo"). Exposto tanto na 1ª pessoa do singular quanto na do plural.

CRÔNICA NARRATIVO-DESCRITIVA

É quando uma crônica explora a caracterização de seres, descrevendo-os. E, ao mesmo tempo mostra fatos cotidianos ("banais", comuns) no qual pode ser narrado em 1ª ou na 3ª pessoa do singular. Ela é baseada em acontecimentos diários.

CRÔNICA HUMORÍSTICA

Deve ter algo que chame a atenção do leitor assim como um pouco de humor. É sempre bom ter poucos personagens e apresentar tempo e espaços reduzidos. A linguagem é próxima do informal. Visão irônica ou cômica de fatos apresentados

CRÔNICA LÍRICA

Apresenta uma linguagem poética e metafórica. Nela, predominam: emoções, os sentimentos (paixão, nostalgia e saudades ), traduzidos numa atitude poética.

CRÔNICA POÉTICA

Apresenta versos poéticos em forma de crônica, expressando sentimentos e reações de um determinado assunto.

CRÔNICA JORNALÍSTICA

Apresentação de notícias ou fatos baseados no cotidiano. Pode ser policial, desportiva, etc.. Uma forma mais moderna, que não narra e sim disserta, defende ou mostra um ponto de vista diferente do que a maioria enxerga.

CRÔNICA HISTÓRICA

Baseada em fatos reais, ou fatos históricos. Busca sempre relatar a realidade social, política ou cultural, avaliada pelo autor quase sempre com um tom de protesto ou de argumentação.

As semelhanças entre Crônica Narrativa e Jornalística são o caráter social crítico, o humor, a ironia, até mesmo com um tom sarcástico. A crônica conta fatos cotidianos comuns da vida real das pessoas. 
 
Não se deve confundir crônica com conto ou fábula, que contam fatos inusitados e irreais.

Fonte:

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 450

 


Carolina Ramos (O Banquete)


Vitrinas iluminadas. Noite azul, cheia de estrelas. Papai Noel, passos cansados, não tinha pressa nenhuma em voltar para casa.

Aspirou fundo o cheiro peculiar que diferenciava a Noite Santa das outras tantas noites perdidas nos calendários. Varreu com os olhos, pouco interessados, as vitrinas exuberantes e as janelas contornadas de luzes pequeninas, a cintilar como cacos de estrelas caídos do espaço. Era como se o homem, com sua tecnologia lírica, tivesse conseguido transportar para a terra a magia coruscante de um céu natalino.

Nos rumos do ganha-pão, o velho Papai Noel passara por inúmeros lares, arredondando olhos de crianças de tenra idade, felizes por nele acreditarem; olhos que nem o peso do sono conseguia fechar.

Era a figura máxima! Em sua mágica passagem, arrebatara atenções, em detrimento até do Pequenino, adormecido entre as palhas do presépio.

Encantadas, as crianças acreditavam mais na figura palpável do Bom Velhinho, do que no cenário espiritualizado da lapa de Belém, improvisado aos pés da Árvore de Natal — a matéria situando-se acima dos símbolos imponderáveis. A lenda, importada, sobrepondo-se ao misticismo da Fé.

Aquele Bom Velhinho, porém, era humano. Humaníssimo! Sentia a fome roer-lhe as paredes do estômago vazio, e ninguém, ninguém mesmo, lembrara-se de oferecer-lhe um mísero petisco, sequer uma perninha de frango — nem pensar nos perus luzidios, de papo estufado de farofa e sapatos de papel estanho recortado, completamente fora de suas cogitações. Mas, ninguém lhe oferecera uma guloseima, um copo de vinho, um copo de água, sequer!

Denunciado pelo ventre rotundo, ainda que acolchoado de algodão, negava-se ao Papai Noel comilão o direito de matar a fome em público. Seria a desmitificação absoluta! Seria sujeitá-lo a deslizes, ou pior que isso, ao vexame, pondo em risco a estabilidade ou a pulcridade da barba branquinha, que deveria continuar imaculada a qualquer custo, até o fim do desempenho de suas funções.

Bebida, então, nem pensar! Que tal imaginar um Pai Noel etilicamente "alegre", babando champanhe ou de barbas manchadas de vinho?

Degradante! Profundamente degradante! A decepção das crianças que tamanho teria?!

Sóbrio, sedento e faminto, assim teria de ser o Pai Noel que prezasse o nome.

E era sóbrio, sedento, faminto e cansado, que se sentia aquele homem de gorro e roupas vermelhas, botas negras, que trazia no ombro um saco cheio de caixas muito bem embrulhadas e... vazias... tão vazias quanto ele próprio.

Frente à apetitosa vitrina de um restaurante, parou. O pernil à Califórnia, cercado de frutas embebidas em calda e decorado de cerejas, fez-lhe brotar água à boca.

Contou as moedas, aqui e ali, pingadas nas algibeiras. No pernil inteiro, nem pensar! Também, era demasiado grande para o tamanho da fome. Algumas fatias bastavam. E sempre havia algumas delas à espera de comprador modesto.

Ao chegar a casa, o gato, ronronante, como ele, faminto, lustrou-lhe as botas com o pelo macio.

E o Bom Velhinho, cuja presença alegrara tanta gente, livre das botas e do gorro vermelho, dividiu, prazerosa mente com o gato vadio, o seu banquete de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Prof. Garcia (Pantuns) III


PANTUN DA DOCE QUIMERA

Trova tema:
Quem se agarra a uma quimera
quem persegue uma utopia,
age como se soubera
que sem sonhos...morreria!
(Carolina Ramos – SP)

Quem persegue uma utopia,
nunca se engana ao pensar,
que sem sonhos...morreria
um sonhador, sem sonhar.

Nunca se engana ao pensar,
que sem sonho, a vida é um tédio;
um sonhador, sem sonhar,
requer um santo remédio.

Que sem sonho, a vida é um tédio;
a ausência dessa ternura,
requer, um santo remédio,
para um mal quase sem cura.

A ausência dessa ternura,
desfaz tudo que se espera,
para um mal quase sem cura,
quem se agarra a uma quimera!
****************************************

PANTUN DO FILHO QUE ESTUDA

Trova tema:
Filho… Estuda que eu te ajudo,
capricha, porque é na soma,
do esforço e amor pelo estudo,
que se conquista o diploma.
(Ailto Rodrigues – RJ)


Capricha, porque é na soma,
das luzes do conhecer...
que se conquista o diploma
da eterna luz do saber.

Das luzes do conhecer...
há um facho que nos conduz,
da eterna luz do saber
a um mundo cheio de luz.

Há um facho que nos conduz,
entre os velhos rituais,
a um mundo cheio de luz
que não se apaga jamais.

Entre os velhos rituais,
há uma luz em quase tudo
que não se apaga jamais.
Filho... Estuda que eu te ajudo!
****************************************

PANTUN DOS DEDOS NA FOTO

Trova tema:
Passo os dedos sobre a foto...
Naqueles rostos tão lisos
a mocidade então noto
escondida entre os sorrisos...
(Gilvan Carneiro – RJ)

Naqueles rostos tão lisos
da antiga fotografia,
escondida entre os sorrisos...
Sorri a melancolia!

Da antiga fotografia,
em meio a tanta lembrança,
sorri a melancolia
no rosto de uma criança!

Em meio a tanta lembrança,
há saudade, há dissabor;
no rosto de uma criança
um riso triste de amor!

Há saudade, há dissabor,
e ao vê-los, logo que noto
um riso triste de amor,
passo os dedos sobre a foto...
****************************************

PANTUN DOS SONHOS DE RENDA

Trova tema:
Nem mesmo a ilusão remenda,
com seus fios de saudade,
os velhos sonhos de renda
que eu teci na mocidade!
(Elizabeth Souza Cruz – RJ)


Com seus fios de saudade,
velha ilusão me faz crer,
que eu teci na mocidade
os sonhos do meu viver.

Velha ilusão me faz crer,
que em tudo quanto eu já fiz,
os sonhos do meu viver
me deixam bem mais feliz,

Que em tudo quanto eu já fiz,
os remendos que ainda faço,
me deixam bem mais feliz
o que fica em cada traço.

Os remendos que ainda faço,
ponho os defeitos na agenda;
o que fica em cada traço,
nem mesmo a ilusão remenda!
****************************************
PANTUN DA VOZ DA ESPERANÇA

Trova tema:
No meu Livro da Lembrança,
ainda sem conclusão,
saudade é aquela esperança
que compôs a introdução...
(Vanda Fagundes Queiroz – PR)

Ainda sem conclusão,
foi alguém sem perceber
que compôs a introdução
do livro do meu viver,

Foi alguém sem perceber
que num impulso infeliz
do livro do meu viver
riscou tudo quanto eu fiz.

Que num impulso infeliz
ou por medo ou por loucura
riscou tudo quanto eu fiz
essa insana criatura.

Ou por medo ou por loucura
eu vou guardar por herança,
essa insana criatura
no meu livro da lembrança.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Conto Fantástico


Conto fantástico é o nome que se dá a uma narrativa curta que apresenta personagens que extrapolam os limites da realidade e/ou fatos igualmente estranhos e inexplicáveis. Esse tipo de literatura está associado a autores estrangeiros, tais como:

    Franz Kafka
    Edgar Allan Poe
    Gabriel García Márquez
    Jorge Luis Borges

Já no Brasil, os autores que dialogaram com o fantástico em suas obras são:

    Machado de Assis
    Erico Verissimo
    Mário de Andrade
    Murilo Rubião

O QUE É CONTO?

O conto é uma narrativa (tipo de texto em que se conta uma história). Ele pode relatar um acontecimento verídico ou ficcional e ser contado de forma oral ou escrita. As narrativas são ações de personagens que ocorrem em determinado espaço e tempo. Elas são contadas por um narrador.

Na literatura, existem outros gêneros de narrativa além do conto, como a novela e o romance. Esses três gêneros possuem as mesmas características apontadas. O que vai fazer a distinção entre eles é o tamanho, as dimensões da obra. Nessa perspectiva, o conto é uma narrativa menos extensa; o romance, uma narrativa mais extensa; já a novela ocupa lugar intermediário no que se refere às suas dimensões.

Segundo a ensaísta Nelly Novaes Coelho:
Desde as origens, o conto é definido, formalmente, pela brevidade: uma narrativa curta e linear, envolvendo poucas personagens; concentrada em uma única ação, de curta duração temporal e situada num só espaço. Dessa necessidade de brevidade, deriva a grande arte do conto que, mais que qualquer outro gênero em prosa, exige que o escritor seja um verdadeiro alquimista na manipulação da palavra.”

No entanto, não há um consenso em relação a essa definição, que, para alguns estudiosos e escritores, parece não ser satisfatória; pois, como afirmou o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), o conto é de
difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário”.

LITERATURA FANTÁSTICA

A literatura fantástica traz elementos que contrariam a noção de realidade. Portanto, apresenta personagens e/ou fatos impossíveis, isto é, em desacordo com as leis que comandam os fenômenos naturais. Como exemplo, podemos citar o livro A metamorfose (1915), de Franz Kafka, em que o protagonista Gregor Samsa transforma-se em um inseto, algo naturalmente impossível.

Para o filósofo Tzvetan Todorov, na literatura fantástica, “é necessário que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados”. Essa vacilação pode permanecer ou ser eliminada quando o leitor decide que os acontecimentos têm relação com a realidade ou são ilusões.

Não há concordância sobre quando surgiu a literatura fantástica. A maioria dos estudiosos defende que seu surgimento ocorreu entre os séculos XVIII e XIX. Segundo Silva e Lourenço*: “O fantástico teve suas origens em romances que exploravam o medo, o susto, porém, ao longo dos séculos, foi se transformando até chegar ao século XX como uma narrativa mais sutil”.

Assim, além de Kafka, outros escritores, em algum momento de suas carreiras, enveredaram pela literatura fantástica, como: o português José Saramago (1922-2010), com Ensaio sobre a cegueira (1995); a britânica Mary Shelley (1797-1851), com Frankenstein; o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), com O médico e o monstro (1886); e o britânico Oscar Wilde (1854-1900), com O retrato de Dorian Gray (1890).

CARACTERÍSTICAS DO CONTO FANTÁSTICO

O conto fantástico é uma narrativa curta, cujos personagens ou fatos estão associados a elementos sobrenaturais ou sem explicação, já que contrariam as leis naturais. Karin Volobuef* afirma que “tal gênero abandonou a sucessão de acontecimentos surpreendentes, assustadores e emocionantes para adentrar esferas temáticas mais complexas. Devido a isso, a narrativa fantástica passou a tratar de assuntos inquietantes para o homem atual: os avanços tecnológicos, as angústias existenciais, a opressão, a burocracia, a desigualdade social”.

Dessa forma, esse gênero de literatura, em primeiro lugar, provoca estranheza nos leitores. Em seguida, pode despertar a emoção durante a leitura ou a reflexão, caso o texto, apesar de extrapolar a realidade, trouxer alguma crítica a ela — o que podemos ver no conto fantástico, de Machado de Assis, O País das Quimeras.

Nessa obra, o narrador conta a história de Tito, um poeta pobre e romântico que abre mão de seus versos por dinheiro. Eles são comprados por um “sujeito rico, maníaco pela fama de poeta”. Além disso, Tito está apaixonado, mas não é correspondido. O poeta vê-se entre dois caminhos possíveis — morrer ou partir —, quando surge “uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas”.

A fada tem asas, pega o poeta nos braços, o teto rasga-se, e eles iniciam o voo: “Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava”.

Por ser um conto fantástico, as leis da natureza não são respeitadas, tudo é possível. Assim, chegam ao País das Quimeras: “País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência”. Nessa ironia, percebemos que o narrador zomba do fato de que a maioria das pessoas não encara a realidade, ou seja, vive no País das Quimeras, do sonho, da fantasia.

Dessa forma, o narrador, com o pretexto de relatar o que acontecia no País das Quimeras, acaba fazendo uma crítica às futilidades do “nosso mundo”, como se pode ver neste trecho: “Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos”.

Após conhecer o País das Quimeras, Tito, de repente, percebe que tudo vai se desfazendo diante de seus olhos — afinal, aquilo não é concreto, é um mundo abstrato —, e o poeta começa a cair, até chegar à Terra. Como se pode observar, a sua queda é contrária às leis da natureza:

    “É a Terra! disse Tito consigo. Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.

Por fim, ao terminar o conto, mais uma vez, o narrador critica aqueles que fogem da realidade: “Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie [ou seja, que traz na cabeça massa quimérica, fantasia]. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções”. Portanto, o narrador declara-se exceção, pois é racional e não empreende a fuga da realidade, isto é, ele é realista.

AUTORES NO MUNDO

Os principais nomes da literatura mundial que produziram um ou mais contos fantásticos são:

– Edgar Allan Poe, americano: o livro Histórias extraordinárias é composto de contos publicados entre 1833 e 1845.

– Gabriel García Márquez, colombiano e Nobel de Literatura: o conto “Maria dos Prazeres”, do livro Doze contos peregrinos (1992).

– Jorge Luis Borges, argentino: o conto “O outro”, de sua obra O livro de areia (1975).

– F. Scott Fitzgerald (1896-1940), americano: o conto “O curioso caso de Benjamin Button”, em Seis contos da era do jazz (1922).

– Oscar Wilde, britânico: o conto “O fantasma de Canterville”, em O crime de lorde Arthur Savile e outras histórias (1887).

Além desses escritores, há também aqueles que produziram contos infantis em que o fantástico está presente, como: os irmãos Grimm — Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) — e Hans Christian Andersen (1805-1875). Andersen é autor, entre outros contos, de A pequena sereia. Já os irmãos Grimm são autores de O rei sapo, além de outras narrativas curtas.

AUTORES NO BRASIL

No Brasil, alguns autores utilizaram elementos fantásticos em suas obras. Podemos citar Érico Verissimo, em seu romance Incidente em Antares (1971); Machado de Assis, em seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881); Mário de Andrade, em sua obra Macunaíma (1928); e Monteiro Lobato (1882-1948), em seus livros infantis.

No entanto, o principal autor de uma literatura fantástica no Brasil é o contista mineiro Murilo Rubião, a quem Antonio Olinto (1919-2009) considerou surrealista e comparou a Franz Kafka. Seus livros são:
    O ex-mágico (1947); A estrela vermelha (1953); Os dragões e outros contos (1965); O pirotécnico Zacarias (1974); O convidado (1974); A Casa do Girassol Vermelho (1978); O homem do boné cinzento (1990)

No conto de Murilo Rubião — “Teleco, o coelhinho” —, do livro Os dragões e outros contos, o narrador está na praia quando alguém lhe pede um cigarro. Esse alguém é um coelhinho cinzento. O narrador convida Teleco, o coelhinho, a morar com ele. Teleco tem a “mania de metamorfosear-se em outros bichos”. Então, transforma-se em uma girafa, e pergunta: “Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?”.

O narrador responde que não, e vão morar juntos. Até que um dia, Teleco, metamorfoseado em canguru, leva uma mulher para viver com eles. Tereza afirma que o canguru chama-se Barbosa e é um homem. Assim, o conto segue rumo a um final trágico e poético.

Teleco apresenta-se como coelho para o narrador, mas não é possível saber qual é a sua verdadeira identidade.

Nesse conto, o fantástico está presente, pois, em nenhum momento, é dada uma explicação racional para a metamorfose de Teleco, já que ela não é possível. A leitura dá-se na aceitação de que um coelhinho pode falar e transformar-se em outros bichos. Nesse ponto, há uma diferença entre literatura fantástica e de ficção científica, já que, na segunda, há explicações para os acontecimentos estranhos (mesmo que, muitas vezes, elas não possam ser comprovadas).

Assim, segundo Kateřina Novotná, mestre em estudos românicos:
Vários críticos (geralmente da literatura fantástica) incluem nele [no maravilhoso] também a ficção científica. No entanto, as características da FC [Ficção Científica] estão em oposição direta com o maravilhoso [...]”.

E ainda: “Obviamente, é muito simplista dizer que a FC é uma narrativa baseada na ciência, mas não deixa de ser verdade. Sem a ciência, a narrativa seria só uma ficção como qualquer outra. Ao mesmo tempo, a ciência sem ficção seria só o manual científico.

EXEMPLO DE CONTO FANTÁSTICO: SOMBRA - UMA PARÁBOLA, de EDGAR ALLAN POE

O conto “Sombra — uma parábola” (1835), do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe, é o registro de um narrador-personagem, da Antiguidade, que parece escrever conscientemente para leitores do futuro. Ele narra sobre uma “orgia-velório”, em que surge uma sombra que não é divina nem humana. A parábola, isto é, a narrativa alegórica, finaliza-se quando os convivas percebem que, na voz dessa sombra, há uma “multidão de seres” mortos.

Dessa maneira, o fantástico dessa história de terror, típica de Poe, reside no fato de que não há explicações sobre o que é a Sombra, apesar de concluirmos que ela é a Morte personificada. Um dos motivos que nos levam a essa conclusão é a epígrafe que encabeça o conto: “Sim! Embora eu caminhe pelo vale da Sombra” (Salmo de Davi), que, no texto bíblico, é o “vale da sombra da morte”.

No conto de Poe, a Sombra é a personificação da Morte.

Então, vamos ler o conto, na íntegra:

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro.

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.

Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo — que era histérico —, e cantávamos as canções de Anacreonte — que são doidas —, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da Grécia, de deus da Caldeia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.

__________________
* Luis Cláudio Ferreira Silva e Daiane da Silva Lourenço, ambos da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

* Karin Volobuef é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).


Fonte:
Warley Souza. "Conto fantástico". Disponível em Brasil Escola:  Acesso em 14 de novembro de 2020.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 6: Sobrevivência


O GATO PRETO estava com uma fome tremenda. Uma fome de três dias ou mais. De repente, viu seu almoço suculento em forma de passarinho. Era um desses caseiros que, fora da gaiola, não enxergam um palmo adiante do bico.

Esfomeado, armou o bote para pegá-lo. Calculou milimetricamente o pulo.

Chuapppp...

Entretanto, ao tentar abocanha-lo, outro bichano, de pelos brancos, igualmente espreitava a mesma iguaria. E o gato preto, não o vira. Foi seu erro. Mais safo e despachado, o malandro miador chegou de mansinho. Veio em sentido contrario e, num salto certeiro, se adiantou.

 Chuapppp...

Arrebatou, vitorioso,  o saboroso almoço  quentinho do dia.

O gato preto, coitado, ao se deparar com esse imprevisto, arregalou os olhos e ficou a ver a gaiola vazia. Não só isso. Seu almoço tomando outro rumo na boca sorridente de um desconhecido companheiro de desdita. A maldita fome, nessa hora, como por desencanto, aumentou mais.  Além de crescer, passou a doer com mais insistência.  

Do outro lado, longe de outros predadores da mesma consanguinidade, seguro de si, protegido por alto beiral de uma casa antiga, realizado e feliz, pomposo e dono da situação o incogitado amigo de pelos brancos (amigo da onça) se banqueteava em saborosas dentadas, a desditosa avezinha.

MORAL SEM MORAL DA HISTÓRIA:

O gato preto ficou cabisbaixo, vencido.  Limitou a afagar o desequilíbrio da turbulenta roncação da barriga vazia, em face do naco deleitável, do regalado cobiçável que lhe escapara, incontinente, das humildes garras.

Resumindo: também no mundo animal, vale a inteligência do mais esperto.

Fonte:
texto enviado pelo autor.
Imagem = montagem por JGFeldman

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 449

 


Stanislaw Ponte Preta (Inferno Nacional)


A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto para o Inferno. Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e perguntou: — Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.

Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de zero até as três horas, e voltar ao forno de duzentos graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de duzentos graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de zero pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

— Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de trinta e cinco graus por dia.

— E as quinhentas chibatadas?
— perguntou o falecido.

A... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Célia Cerqueira Cavalcanti (Poemas Avulsos)

AO MEU PAI


Após tanto sofrer, deixaste a vida,
és decerto feliz na eternidade.
Que não me vejas, pai, de alma sentida,
sob o peso da cruz desta saudade.

Lembro tanto de ti, de fronte erguida,
relevando, de quantos, a maldade;
e tua voz há de ser por mim ouvida,
aconselhando sempre a caridade.

Possa um dia rever-te noutro mundo,
sob um céu diferente e iluminado,
onde o bem é maior e mais fecundo...

E que sintas, então, que foste amado,
na extensão filial do amor profundo
de um coração agora amargurado.
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DEUS

Eu Vos amo, Senhor, que Sois a vida,
o renascer da luz de cada dia.
Eu Vos amo. Senhor, e a Maria,
a Virgem pura e Mãe estremecida.

E crendo em Vós, Senhor, contemplo a vida,
o renascer da luz de cada dia...
Em Vós confio, Pai, na nostalgia
da saudade ou na dor mais desvalida.

Porque tudo o que existe sobre a terra,
nos altos céus, ou pelo mar profundo,
o mistério que a morte nos descerra,

o próprio olhar aflito de quem erra,
tudo é Vosso, Senhor, autor do mundo,
e Vós, o eterno amor que a vida encerra.
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DIVINDADE PAGÃ

A lenda conta que existiu um deus,
pequenino, travesso e delicado,
dentre os deuses talvez o mais lembrado,
quer dos mais crentes, quer dos mais ateus.

Dominou os egípcios e os hebreus;
Grécia e Roma o tiveram consagrado,
e Cupido, esse deus mimoso e alado,
conquista os corações com os dardos seus.

De cada vez a luta é mais renhida,
mais intensa e falaz se torna então.
Hoje, amanhã, depois, por toda a vida,

há de o amor, sem piedade ou compaixão,
abrir, em cada peito, uma ferida,
sangrar, em cada peito, um coração,
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TEUS OLHOS

Teus olhos, mãe, vi risonhos,
cheios de luz, a brilhar...
Vi-os tristes, apagados,
como as noites sem luar.

Cheios de luz e de encanto,
eram tão belos teus olhos,
dois faróis que iluminavam
minha vida entre os abrolhos,

Teus olhos. . . Suponho vê-los,
quando a noite estende o véu,
transformados nas estrelas
mais brilhantes lá do céu.

Nunca mais esquecerei
os queridos olhos teus,
refletindo-se em minha alma,
são a luz dos olhos meus.
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UM DIA…

Um dia, serei livre e leve qual o vento,
seguindo pelo espaço azul meu pensamento.
 
E o corpo deixarei, num sono sempre igual,
indiferente à luz das tochas de cristal.

Sem forma definida... sol de primavera,
ou clarão de luar. Talvez uma quimera…
 
Decerto um sonho bom, feliz, há de levar
minha alma pelo espaço, em rápido passar,
 
em busca da verdade, pura, indecifrável,
do mistério do além da morte, do insondável.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.