segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Sete) Foi suicídio


A VELHA E RANZINZA ELIPETA, irmã de minha mulher chegou para mais uma estada de trinta dias em nossa casa. Com ela por perto, os problemas realmente começam a se avolumar e a ficarem visíveis à olho nu. A velhota está bem baqueada. Mais que das vezes em que marcou presença, no ano passado. Além de chata, irritadiça e implicante, ficou duplamente mal-humorada e, para completar o quadro, surda dos dedos dos pés. Ou se fez de, para viver. Creio que a anacusia (perda total ou parcial da audição) dela, tem um nome mais específico: conveniência.

Digo desta forma, porque se o assunto é dinheiro (e desde que ninguém venha lhe pedir algum emprestado), ela se transforma da água para o vinho. Arregala uns olhos deste tamanho que até as rugas em derredor se assustam. Só não saem correndo, em face de usarem bengalas. Em meia dúzia de detalhezinhos ela não mudou os hábitos. No apuro pelas coisas boas. Aprecia o comer bem, e beber, melhor ainda. Gosta de pratos cheios e variados e de um vinho bem geladinho. E, nesse particular, é exigente. De preferência, o mais salgado nos bolsos alheios.

Está para existir criatura mais parecida. “Não gosto de perder tempo comendo muxibas. Traga o melhor corte” — costuma enfatizar com a Cris, nossa empregada — toda vez que a moça vai ao açougue. Exige, na maior cara de pau: “Quero filé... Filé mignon... De verdade. Pelancas, minha prezada, me bastam as que tenho em meu focinho.” Dinheiro para ajudar nas despesas, é mais fácil um avião sem asas voar ou um ventilador sem as pás das hélices fazerem vento em ambientes pegando fogo.

Juquinha, meu primogênito de dez anos, adora esta tia rabugenta que rodou o mundo nos tempos de jovem — como aeromoça da extinta Panair do Brasil voando nos belos e confortáveis Lockheed Constellations L-747. Ela faz questão de enfatizar que a Panair seja escrita com dois enes. Acumulou  fortuna, a danada, verdade seja dita, mas segue a sua vidinha medíocre como uma verdadeira mão de vaca inveterada.

Talvez, por esta razão, para se arrancar uns míseros trocados dela, necessitemos fazer uma série de malabarismos ou, como diz minha esposa, “dar nó em pingo de éter”. Da última vez que passou por aqui, há quatro ou cinco meses atrás, tivemos problemas com quase todos os eletroeletrônicos, notadamente com as televisões.

Sério! Com as duas, diga-se de passagem. O aparelho de 24 polegadas, que temos na sala e o outro, de 14, no quarto do Juquinha, ficaram desligados o tempo todo. Segundo ela, nos filmes de violência que eu e meu filho sentávamos para assistir, enquanto comíamos pipocas e tomávamos refrigerantes, mocinhos e bandidos trocavam tiros o tempo inteiro.

Tia Elipeta me segredou que temia ser atingida mortalmente, no peito, ou na cabeça (mesmo acomodada com seus balofos  confortavelmente no sofá de canto da sala) por uma daquelas balas perdidas. Isto quando a poeira levantada pelos cascos dos cavalos não entrava diretamente em seu nariz e a fazia espirrar.

Numa destas vindas aqui para o nosso apartamento, numa torre de vinte andares (moramos no décimo segundo), bem recordo, enquanto aguardávamos pelo final do Fantástico, ela mandou brasa num pote de sorvete de chocolate que eu trouxera do supermercado. Para nós (somos em quatro, contando com a Cris, a nossa secretária do lar), geralmente uma embalagem daquele tamanho, que costumo incluir na lista de compras, dá para uma semana.

Se duvidar, sobra. A velha, todavia, se armou de copo e colher, colocou uma espécie de babador em volta do pescoço, “para não sujar seu vestido de noite”, fechou os olhos e pimba. Não sobrou nada. Até a embalagem de plástico criou perna.

Neste dia, me lembro bem, antes de se recolher, indagou da minha mulher, se não havia um outro sabor, de reserva, escondido dentro do congelador, ou em algum canto amoitado no cafofo da serviçal. Engraçado, mesmo, foi a história do chuveiro. Tia Elipeta encasquetou que o bicho jorrava pouca água, por mais que abrisse a torneira. Que o volume liberado, além de muito quente, caia para os lados, ao invés de bater centrada sobre a cabeça.

Tentou consertar. Tomou um choque violento. Desmaiou. Tivemos que correr com ela para o hospital. Quase deu BO com caixão e cemitério e a espevitada empacotando, de vez, os ossos. Dos males, o pior. Desde então, passei a economizar na conta. Chuveiro, agora, só frio. A tia Elipeta adora ouvir Bach. Mesmo surda, ou se fingindo de... Se deleita com a Ave Maria, ou com a Toccata.

Enquanto o CD gira no aparelho de som, ela se coloca na frente dele, no papel de maestrina, repetindo aqueles gestos engraçados, como se tivesse com uma batuta regendo uma orquestra invisível. Por agora, a uma semana antes da chegada da tia Elipeta, meu Juquinha ganhou da Beatriz (filha de um vizinho nosso, quase porta com porta) um desses cachorrinhos pequenos  —  tão minúsculo que, às vezes, dependendo do lugar em que esteja deitado, corre o risco de ser confundido com uma berinjela.

Confesso, nunca vi meu menino tão próspero e feliz com um presente. Batizou o animalzinho com o nome de Tom. Pediu à mãe que arranjasse uma caixa de sapatos e alguns panos velhos, para transformá-la em cama. E se desfaz, desde então, em mesuras e agrados. De manhã, pula cedo, e antes da escola, leva o Tom para uma curta caminhada ao redor do condomínio. Desce mais a Beatriz (que tem um gato branco e peludo, com um bigode enorme). Bonito parar no corredor e espiar os dois.

Forma meu filho e a Beatriz, um lindo casalzinho. Ambos inocentes, destituídos das maldades dos adultos, compenetrados, sérios, de mãozinhas dadas, tomando o elevador — ele abrindo a porta para ela — “primeiro as damas” — ela gentil, agradecendo: “Obrigada. Você é um cavalheiro.”

Seria um presente divino, confesso, se continuassem assim. Amanhã, quem sabe, casem e nos deem uma penca de netos. Sonhos, sonhos bobos, devaneios malucos... Coisas de pai bobo e coruja, que às vezes viajando na maionese, não consegue segurar a imaginação.

Juquinha, nesta manhã, como passou a fazer, desde que ganhou o bichinho, chegou da rua e colocou o Tom no sofá. Foi até a porta do apartamento levar a Beatriz e seu gato branco peludo, com um bigode enorme. Estão, ambos, apressados.

Em menos de quinze minutos, ele e a jovenzinha, saíram em direção à escola. A Van que os pega na portaria e traz à tarde, chega no horário, nunca atrasa. Neste interregno, a tia vem lá da cozinha, com uma bandeja. Nela traz o seu desjejum. Ao contrário dos demais, a ilustre senhora gosta de tomar seu café sozinha, no sofá da sala. Minha esposa fica braba, mas, levando em consideração a idade da consanguínea... Tira por menos.

Como vem, a adiposa senta com tudo. E hoje, não foi diferente. Desastre. Catastrófico, por sinal. Se ela ouviu, ou deixou de escutar, ninguém, nunca, jamais saberá. O certo é que o Tom soltou um “Auuu...” abafado, e, depois disto, não continuou vivo para contar o resto da história. Elipeta sentiu algo estranho, ao se acomodar. Ou ao desmoronar os mais de 130 quilos de pura banha na poltrona.

Algo que incomodava um pouco o seu traseiro balofo. Com dificuldade, levantou, despregando as gorduras. Viu, então, o pobrezinho — dito de forma diferente — visualizou o que sobrou do desafortunado do Tom. E agora?! Pensou rápido e rasteiro. Nada de cabeça quente. “Calma, muita calma nesta hora”. Esperta, astuta, maquiavélica, a bandida não pensou duas vezes. Tampouco contou até três.

Passou os cinco dedos nos restos mortais do astroso (desventurado), olhou longamente em direção à cozinha. Ninguém por perto. Sem testemunhas. Dito e feito. Agiu rápida e apressurada, silenciosa e ligeira. Caminhou até a varanda e num gesto de impensada violência, atirou os restos mortais do bichinho vitimado prédio abaixo. Uma viagem sem volta, indigesta, de doze andares, até o chão duro e gelado de cimento ao lado da piscina.

Meu filho chega, tranca a porta e volta às carreiras para pegar o animalzinho e colocá-lo na caixinha de sapatos. Dá falta do cachorrinho:

— Tia, cadê o Tom que deixei aqui?

— O quê, meu filho?

— O Tom!

— Que pão?

— Não é pão, tia. É o Tom. Cadê o Tom?

Minha esposa sai correndo da cozinha ao ouvir os gritos de nosso filho. Venho no vácuo do seu encalço. A Cris me acompanha, de carona, logo atrás:

— Mãe, cadê o Tom? Eu botei ele ali...

— Ali onde, meu filho?

— Onde a tia Elipeta está sentada.

Minha mulher se debruça sobre a irmã, e a encara com a aparência fechada, a voz séria:

— Mana, cadê o Tom?

— Quem?

— Não se faça de besta. O Tom.

A descarada da Elipeta se tranca mais carrancuda ainda. O cenho franzido. As rugas faciais sobressaindo. Uma artista nata, a desgranhenta. Por fim, a revelação odiosa que não queríamos, de nenhuma forma, ter ouvido de sua boca:

— Vocês não vão acreditar. Minha irmã, meu cunhado, meu querido sobrinho, meu Deus, como é custoso lembrar. Ele pulou dali, aliás, voou por cima do parapeito. Vai entender os irracionais  numa hora destas! Acho que ele estava com algum problema de cabeça... Sei lá. Depressão. É isto, depressão. Ou ciúme daquele gato aí da sua vizinha. Só vi o momento em que escafedeu daqui de perto de mim, correndo desembestadamente e matou-se, saltando, no ar, em longo e inacreditável suicídio...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo. Comédias da Vida na Privada. RJ: Editora MC Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor.
Imagem = montagem por JGFeldman.

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