quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Eduardo Affonso (Muçarela)


Escrevi “cozer”, e não “coser”, num texto. Ninguém reparou – ou, se reparou, ficou sem jeito de avisar.

“Cozer” é cozinhar; costurar é “coser”.

É bom quando alguém aponta um erro, e impede que ele se perpetue.

Mas há casos e casos. Às vezes erro porque quero, porque o errado me soa melhor, e eu o promovo a certo.

Mussarela ou muçarela? O dicionário pode dizer que a grafia correta é a segunda, mas meus olhos, meus ouvidos e meu paladar discordam veementemente.

Se na prateleira houver uma embalagem de mussarela e outra de muçarela, compro a primeira. “Muçarela” não dá pra engolir. Não desce.

Não foi sem resistência que passei a dizer e escrever “caverna” e “cuspe”, em vez de “gaverna” e “guspe”, lá pelo primeiro ano primário. Quem inventou que guspe e gaverna se escreviam com C é porque nunca guspiu ou engatinhou por gavernas no fundo do quintal.

Há “erros” que não são erros: são variantes. Ir “na rua” e “no cinema” é muito diferente de ir “à rua” ou “ao cinema”, o que exigiria tomar banho, pentear o cabelo, botar roupa de domingo.

Andar “de cavalo” e “a cavalo” – tem comparação? Num você monta e vai, no galope; no outro tem que se paramentar todo, e seguir empertigado, como se escoltasse a carruagem real.

Birra com a empregada ou com a tia se faz dizendo “você não manda ni mim”. É nesse “ni” que se peita a meia-autoridade e a gramática de uma vez só. Aí nasce o verdadeiro “cavaleiro que diz ni”, muito superior ao que se sujeita a dizer “em”.

“Nós tudo” é muito mais inclusivo que “todos nós”. “Tudo” não deixa dúvida: somos todos nós e tudo o mais que houver.

Era preciso um dicionário à parte, uma gramática exclusiva para esse idioma no qual o que conta é o valor afetivo (e efetivo), não a etimologia ou o que pontifica aquela senhora chata, a Norma Culta.

D. Norma nunca entendeu que “dê-me um copo d’água” é uma ordem, e “me dá um copo d’água” é um pedido. Se não são a mesma coisa, não podem ser ditos da mesma maneira.

D. Norma não sabe que “eu irei” é coisa de político em cima de palanque, prometendo tudo para um futuro longínquo, hipotético e improvável. O futuro imediato das coisas do mundo real se resolve é no “eu vou ir”. Ou no “vou vim”, que é das locuções mais lindas que o idioma poderia ter inventado.

D. Norma não tem mais o que fazer na vida. Exige que se escreva “maisena” quando qualquer mingau que se preze é feito com Maizena. Não percebe que “peneu” tem mais ar que “pneu”; “tinha chego” é porque estava com tanta pressa que de outra forma não teria chegado; “tinha pego” indica que pegou com mais apego do que se tivesse pegado.

D. Norma não vê isso. Pode até ser culta, mas é cega. E surda.

Se a voz do povo é a voz de Deus, Deus deve de falar assim, deixando cada palavra buscar na língua, no lábio, no palato, a consoante ou a vogal que melhor se encaixe.

Se você se arrepende, arrepia, arredonda, por que vai abrir mão de arreparar, arrepetir, arrenegar?

Pode corrigir sem dó se eu trocar de novo “coser” por “cozer”, “intercessão” por “interseção”, “tachar” por “taxar”. Mas se vir mussarela, cucuruto e mixirica, deixe quieto. Nessa hora eu não aceito argumento e luto até a morte pelo direito inalienável de permanecer errado.

 (publicado originalmente em 17 de abril de 2018)

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/06/28/mucarela/

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