quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 7 e 8


A PERFEITA SABEDORIA

A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.

Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de interpretação.

Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.

Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu.

O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.

O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria. Nunca mais foi feliz.
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A SALVAÇÃO DA PÁTRIA

No bar, os bêbados salvaram a pátria. Se os planos eram em forma de chope, a salvação fazia-se tranquila, e o superempréstimo internacional, garantido pela exploração intensiva da Manihot utilissima durante vinte anos, traria o desejado equilíbrio financeiro, social e humano.

Os argumentos revestidos de uísque suscitavam maior debate, diversificando-se de modo a abranger desde o resgate da dívida externa, mediante empréstimo compulsório de mil cruzeiros por cidadão, durante doze meses, até a redistribuição efetiva da renda nacional, fosse qual fosse o per capita, ficando cada brasileiro, daí por diante, pago e quite com o governo, sem direito a reclamar senão votos de boas-festas.

Uma sugestão à base de vodca foi repelida, porque exigia de cada cidadão três horas de serviço braçal pesado em usinas, abertura de estradas, construção de viadutos etc.

O garçom Foguinho, estimado por todos, sugeriu que, à vista de já raiar sanguínea e fresca a madrugada, a salvação da pátria fosse adiada para a noite seguinte. Todos aplaudiram o alvitre e, retirando-se cambaleantes, entraram em acordo, fosse qual fosse o plano a ser adotado. Foguinho foi incumbido de executá-lo, no mais alto posto da nação. Agradeceu a prova de confiança e jurou que, na eventualidade, tudo faria para o bem de todos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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