Todos os professores que eu tive desejavam a minha morte. As lembranças que tenho do jardim de infância são vagas: restou apenas uma sensação de ameaça, de medo. Esta, continua nos dois anos seguintes do primário, só que mais nítida. “Eles” já tinham me sacado, haviam percebido o perigo que eu representava, vigiavam-me, apenas não ousando fazer nada devido ao fato de que eu, ao contrário de alguns colegas mais distraídos, notara a manobra. Eu era, pois, tão perigoso para “eles” quanto “eles” para mim. Eu era pequeno, tímido, incapaz ainda de exercer a força de minha individualidade. Mas sabia de tudo. Tentei, uma ou duas vezes, expor a situação em casa. Pouco articulado, sem provas concretas, agravado pelo fato de possuir um passado em que já fora pilhado em algumas mentiras, de nada valeu minha denúncia. Eu teria que me defender sozinho.
Comecei – deve ter sido no segundo ano primário – a armar, ainda que precariamente, já que dispunha de poucos recursos físicos e intelectuais, meu próprio esquema de segurança. Sabia que entre os outros companheiros que se encontravam na mesma situação (não deveríamos, ao todo, ser mais que quatro na sala de aula) também não encontraria boa receptividade. Muito bem. Que assim fosse. Eles que se virassem. Eu não desistiria sem ao menos oferecer uma boa luta. Optei pela saída psicológica. Se eu tomara conhecimento da situação devido a pequenos olhares e gestos, captados aqui e ali, nada de concreto, teria que, pelo mesmo método, enfrentá-los.
Sempre preferi os últimos bancos, hábito que guardo até hoje quando vou ao cinema e ao teatro, ou quando viajo de ônibus, trem e avião. De lá, tenho uma visão mais ampla do terreno, dificilmente posso ser atacado pelas costas. Lá ficava eu, quieto, o olhar fixo na professora (só no ginásio teria que me ver às voltas com o sexo forte, que, embora possa parecer paradoxal, é muito menos perigoso que o chamado “frágil”), dois ou três lápis bem afiados à minha frente, uma caneta pontuda sem a tampa, tudo bem à mostra em cima da carteira escolar. Ela – qual o seu nome mesmo? Arlete? Amanda? Helena? – discorrendo como sempre sobre questões aritméticas, geográficas e ortográficas, utilizando-se enfim de todos os recursos que pudessem desviar minha atenção de seu verdadeiro objetivo: minha morte.
Minha primeira intenção era deixar claro que estava a par de sua sinistra meta. Foi numa aula de trabalhos manuais em que, pela primeira vez, pusemos as cartas na mesa. A classe fora obrigada a montar, com cartolina, goma-arábica e gilete, algumas figuras geométricas. Um cubo, um cone e um cilindro, se é que estou bem lembrado. Nunca tive jeito para essas coisas. Preferia os ditados, o português, as correrias a que chamavam de ginástica, a lidar com objetos inúteis como cubos, cones e cilindros. Eu estava a ponto de recortar na cartolina o desenho esboçado no quadro negro e cuidadosamente copiado a lápis no papel quando ela – acho que era Amanda mesmo – após disfarçar, fingindo que acompanhava os trabalhos da classe, conseguiu se aproximar de mim. Não levantei os olhos. Tomei da Gillette e, embora o desenho ainda não estivesse pronto, comecei a recortá-lo, tratando de segurar a pequena e fatal lâmina de maneira firme mas, com um leve manobrar do pulso, inegavelmente ameaçador. Amanda debruçou-se sobre mim, as duas mãos ocultas de meu ângulo de visão. Atravessei a cartolina de alto a baixo num golpe profundo. Quase que senti e ouvi os músculos de Amanda se retesarem, sua mente dilacerada pelo gesto. Eu deveria estar suando e procurei fazer com que ela não notasse. Ela deveria estar tremendo, mas não deixou transparecer. O chavão se aplica: segundos que duraram uma eternidade. Amanda afastou-se de mim e passou para a carteira do colega ao lado. Estávamos apresentados.
Acredito que os professores, em sua reunião semanal, juntavam-se para discutir estratégias, traçar planos, prestar relatórios sobre as dificuldades apresentadas por este ou aquele elemento. Naquela semana, posso gabar-me de que fui o principal assunto. “Cuidado com aquele” – eu, eu no caso! – devem ter concluído. Juro que concluíram!
Durante alguns meses, vi-me a salvo. Continuava encarando Amanda e, em troco, recebendo seus olhares discretamente malévolos. Mas eu dera meu recado. Ela que se cuidasse. Eles todos que se cuidassem.
Meus sonhos, naquela época, eram povoados de professores. Todos armados. Acordava no meio da noite, suando frio, gritando por socorro. Davam-me chá de flor de laranjeira, acendiam as luzes, diziam que era só um pesadelo. Isso porque não eram obrigados, como eu, a enfrentar, dia após dia, Amanda. Nem tinham pela frente a cruel perspectiva de sei lá quantos anos de constante ameaça às suas integridades físicas.
Os tormentos, as lutas, prosseguiram primário a fora, com vitórias flagrantes minhas, alguns empates, aquele impasse permanente.
A grande batalha, no entanto, deu-se com o professor de matemática do primeiro ano ginasial. Eu já era veterano de alguns anos de confrontos terríveis. Ele, talvez – é a única explicação que encontro – devido à sua extrema crueldade, repugnante até mesmo entre seus companheiros de “ofício”, não estava a par de meu grau de combatividade. Tentou me pegar num dia em que me vi obrigado a ficar de castigo, terminada a aula, resolvendo diabólicas equações. Estávamos os dois sozinhos na classe. Lá fora, apenas a barulheira dos meninos do primário. Acendeu um cigarrinho e veio se aproximando de mim. Não levantei os olhos. Colocou a mão no bolso. Não me mexi. Sacou a mão fora, segurava alguma coisa. Fiquei firme equacionando. Chegou ainda mais perto. Era o momento da verdade. Levantei-me de repente e gritei com toda a força de meus pulmões:
– Mais um passo e você é um homem morto!
Blefava, é claro, já que nada tinha com que me defender a não ser a caneta esferográfica importada, a única aliás de nossa classe. Seus olhos se abriram como se, de repente, de um só lance, todos os logaritmos do mundo tivessem se voltado contra ele, dispostos a matar. Botou a mão no peito, soltou um gemido de paca agonizante e caiu durinho na minha frente.
Acabei meus deveres, juntei minhas coisas e fui embora. Ele foi enterrado no dia seguinte com todos os alunos presentes. Acho que cantamos o hino do colégio. Contritos e nervosos naquela agitação dispersiva das crianças diante da morte. Fiz como todos. Ninguém percebeu nada. Mas, nós – eu e os mestres – sabíamos. Sabíamos que, daquele dia em diante, não haveria mais luta. A coisa poderia acabar nos jornais.
Terminei o clássico, fui trabalhar em publicidade, nunca mais pensei em professor ou professora. De vez em quando, passo por um, na cidade. Fingimos não nos reconhecer. Mas, às vezes, tarde da noite, alguém liga para minha casa e não diz nada. Já senti mais de uma vez mãos tentando me empurrar da calçada enquanto espero o sinal abrir. E no Dia do Professor, todo ano, chegam flores murchas em casa acompanhadas de um cartãozinho em branco. Sempre digo que deve haver algum engano. Mas não há enganos. A vida é isso mesmo. A gente começa a se matar muito cedo.
Fonte:
Diário Carioca. Rio de Janeiro, 15 out 1975.
Nenhum comentário:
Postar um comentário