As palavras com *, há um glossário ao final do texto
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O NOVO PROFESSOR DE FILOSOFIA entra na sala, dá uma boa noite a todos, vai até o quadro negro e escreve seu nome em letras garrafais. Os quase quarenta alunos trocam olhares silenciosos entre si, mas nada comentam. Abrem os cadernos e esperam ansiosos, pelo começo da aula.
— Antes de entrarmos no assunto que me trouxe até aqui — fala como se estivesse propelido a rude sacrifício — devo esclarecer a vocês, um ponto muito importante. Como podem ver, coloquei na lousa o meu nome. Sou, portanto, o professor Barata e estou substituindo, por tempo indeterminado, seu antigo mestre, o meu ilustre e querido amigo Gracindo Januário, que, infelizmente, se encontra acamado. Não sei como ele agia em suas aulas, no tocante às matérias ministradas, quando algum dos senhores e senhoritas o interrompiam para esclarecer dúvidas concernentes ao assunto que estava sendo ventilado. O que pretendo e vou deixar claro, é o seguinte. Quem desejar fazer perguntas, dentro dos tópicos que aqui trarei a partir de hoje, para cada um de nossos encontros, deverá proceder da seguinte forma. Levantar a mão, pedir licença, dirigir-se a mim — professor Barata, meu nome é fulano de tal ou Sicrana da Silva e eu gostaria que o senhor explicasse novamente sobre tal assunto. Não tolerarei ser molestado se não for dessa maneira. Fui claro?
Como não houve resposta, continua taciturno:
— Passemos então ao tema de nossa aula inaugural. Asseguro aos presentes que este assunto é rico em surpresas, e, por ser abastado em sua essência, de nuances os mais variados, com certeza envolverá a todos com uma magia inebriante. Alguma pergunta?
O silêncio segue denso e pesado.
— Ok. Então vamos começar. Iniciaremos a nossa conversa discorrendo sobre os conflitos diatópicos intercerebrais.
Um aluno, logo de supetão, levanta o braço:
— Pois não?
— Eu gostaria que...
O professor cala precipitadamente o rapaz antes que ele termine:
— Você sabe ler?
— Sei professor.
— De onde está consegue distinguir o que escrevi na lousa?
— Sim, seu nome!
— E qual é por gentileza?
— Barata.
— Quer repetir, por favor, para que os demais colegas seus tomem ciência?
— Claro. Professor Barata.
— Perfeito. Barata. Professor Barata. Repetindo o que acabei de falar. Quero deixar claro, e, agora, essa interferência abrupta do seu colega ali atrás que fique de uma vez para sempre carimbada como exemplo. Qualquer dos senhores e senhoras que quiserem interagir, devem se dirigir a mim desta forma: professor Barata meu nome é fulano de tal. Eu gostaria de etc. etc. etc... Vamos tentar?
— Com licença —, repete o aluno em tom de acanhamento. — Professor Barata, boa noite. Meu nome é Euclides. Gostaria que o senhor explicasse melhor essa coisa de conflitos diatópicos intercerebrais.
O professor bate palmas em sinal de aprovação.
— Muito bem. Isso que acabei de fazer com seu colega Euclides, repetindo, novamente, para que não haja dúvidas depois, vale para todos aqui presentes. Sempre que quiserem saber alguma coisa, tirar aquelas minhoquinhas chatas, esclarecer pontos obscuros, essa é a maneira correta de como se dirigirem a minha pessoa. Estamos conversados?
Todos a uma só voz concordam gritando um sim não muito entusiasmado.
— Respondendo, pois, sem mais delongas ao jovem Euclides. Conflitos diatópicos intercerebrais que nem comecei a explicar e já causou todo esse rebuliço desnecessário, são aqueles que se externam diante das intercorrências intrapessoais que extrapolam e ultrapassam as psicossomias pessoais*...
— Professor Barata — Estica a mão, desta vez, uma aluna. Meu nome é Giovanna. Eu gostaria que o senhor explicasse intercorrências intrapessoais.
— Perfeito. Show de bola! Intercorrências intrapessoais são aquelas, minha cara Giovanna, que envolvem o dualismo individual de cada situação exógena. Antes que alguém interrompa para questionar exógena, vou dizer logo do que se trata. Exógena ou exógeno é algo que cresce exteriormente para fora. Aquilo que está na superfície. No nosso caso, o dualismo nada mais é que a doutrina que, em qualquer ordem, ou ideia, admite a coexistência pacífica de dois princípios irredutíveis, AY e BY. Essas intercorrências se refletem diretamente nos exsudatos furbóticos* das atividades psicossociais das sociedades tribais perfuncturiais*.
Um novo aluno volta a mutilar o pernóstico professor:
— Professor Barata boa noite. Meu nome é Tupinambá. Alcides Tupinambá. Essa parada da qual o senhor está falando ai tem alguma coisa a ver com o iluminismo?
— Por certo. Boa colocação a sua. Não só com o iluminismo, como também com a efervescência grandiloquente, que, por sua vez, foi a precursora de tais fatos. Claro que esta incongruência causou sérias implicações, evidentemente inequívocas naquilo a que denominamos chamar de similitude das situações caróticas...
— E no que consiste exatamente essa tal de similitude das situações caróticas? Aliás, professor, não seria, por acaso, carótidas?
— Quem perguntou?
— Eu professor. Aqui.
— O prezado tem problemas de vista?
— Não que eu saiba...
— Prestou atenção ao que falei no comecinho da aula?
— Sim.
— E o que eu disse exatamente?
— Ah!... Que ao se dirigir a sua pessoa, fazê-lo desta forma. Professor Barata. Meu nome é Ítalo Pereira.
— E por que não agiu dessa forma preestabelecida? Sofre de algum tipo de amnésia?
O infeliz fica desconcertado e cobre o rosto com as mãos.
— Não vou tolerar mais amputações a bel prazer de vocês. É preciso ter norma. Continuando, a similitude das situações consiste no ego pórigo* do épice. Não confundam com ápice. É, na verdade, o todo no complexo. A válvula propulsora, eu diria, da brópise* na sua escala mais elevada. Todavia, as interpelações constantes das dicotomias análogas, vejam bem, análogas, demonstraram e demonstram claramente o profundo grau de submissão clerical dessa situação fundia na hegemonia feudal.
La no fundo outro Zé Mané levanta a mão. Pede um aparte. Parece meio perdido diante de todo aquele linguajar estranho do professor.
— Professor Barata, desculpe ser inconveniente. Meu nome é Afonso e eu confesso que não entendi bem o pórico do épice...
— Vou tentar ser claro, Afonso. Pórigo do épice é o todo no complexo. O complexo no todo. A porta de escape, a textura da filosofia. Trocado em miúdos: a tampa da panela, o sapato faltoso, para o pé descalço, ou o dedo que o Fula gostaria de implantar no lugar do que cortou fora, de sacanagem, para cavar uma aposentadoria. Filosoficamente falando, o pórigo do épice, por favor, pelo amor de Deus, não confundam com ápice, faz parte do rol das transmutações...
— Transmutações ou transmudações? — Grita um abestalhado bem lá dos fundos.
O professor Barata para e perscruta para os confins da sala com a atonia de quem reflete nos olhos a aspereza da indignação. Quer identificar o sujeito que lhe cortara o discurso com sofreguidão, impondo desrespeito a sua ordem expressa de levantar o braço, pedir licença, declinar o nome, e, por fim, bailar a dúvida.
— Não deveria responder, já que o engraçadinho não foi homem suficiente para suspender o braço e mostrar a cara. Apesar dos pesares, além do fato de não possuir a tolerância dos calmos e mansos de espírito, abrirei exceção apenas esta vez. Apenas esta vez. Fui claro? Pois bem. As transmutações, e não transmudações conjuntamente atreladas ao poder exacerbado e a desintegração do passado, suprimiram escatologicamente as falésias morais* ocasionando uma grande e irreparável perda para a idiossincrasia humana... Daí, vir a...
— Como o senhor classificaria a idiossincrasia humana...?
O silencio cai geral. Dá para ouvir uma agulha voando.
— Vou avisar pela derradeira vez. Pela derradeira vez vou avisar. Não mais tolerarei ser bruscamente estorvado. Quem quiser fazer pergunta, se manifestar, perquirir, fique a vontade. Estou aqui para isso, esclarecer dúvidas, aparar arestas, os cambaus. Contudo, vocês devem, antes, levantar o braço, berrar o nome e, então, só então, formular a pergunta.
João Cabeludo ouve de novo essa balela toda. Está pê da vida com tanta arrogância e altivez daquele professor metido a besta. Assim, não levanta a mão. Não pede licença. Fica de pé, na cara dura. Encara o sujeito e manda bala, o desejo saliente a avoaçar seu lado animal:
— Amado professor Mafú...
O sisudo mestre Barata dá um murro tão forte na mesa que estronda os vidros das janelas. Culmina a sua ira soltando um berro feroz, bravio e pesadamente perverso:
— Barata, seu imbecil, Barata. De onde foi que você, seu energúmeno, tirou esse tal de Mafú?
O aluno não se faz de rogado diante de toda aquela atitude possessiva. Enfrenta a criatura, a peito aberto, como se fosse dono do pedaço.
— Lá em casa, meu amado, meus pais matam as baratas que aparecem com Mafú.
— Seu descarado. Vadio. Por acaso está me igualando a esses insetos blatídeos, achatados e ovais, de hábitos noturnos, que vivem por ai assustando as mulheres?
— Se a carapuça lhe serviu seu Mafú Barata, não posso fazer nada. Fique sabendo que não sou parente de Bakbarah, aquele personagem de As Mil e Uma Noites, que se submetia a vexames. Não vou abaixar a cabeça para o senhor, nem a crista para nenhum outro girafales de meia tigela, seja por amor ao dinheiro que pago às mensalidades, religiosamente em dia, seja por essa sua droga de aula chata e maçante. E tem mais, meu ilustre. Toda essa papagaiada, toda essa conversa fora de esquadro, esse seu linguajar difícil, complexo, intrincado, essa sua postura de cavalheiro mal nutrido, me enoja, me afronta, me enfeza. E quer saber? — Vá lamber sabão!!!
O insigne professor Barata azeda os ânimos. Em vista disso, não fala mais nada. Vira as costas, passa a mão em suas coisas e, a passo largo voa para a porta. Antes de batê-la, de vez, atrás de si, com força descomunal, sem conseguir suplantar a sua indignação, comunica a galera, à voz embargada pela deliberação enérgica da raiva inqualificável que o domina, a suspensão da sala inteira por uma semana. Ato contínuo, a classe se levanta e aplaude João Cabeludo, pela coragem que ele teve de enfrentar, cara a cara, o excêntrico e esquisito professor.
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Glossário:
Brópise: Uma maneira de se associar a qualquer coisa que ainda não foi descoberta.
Exsudados furbóticos: É uma espécie de sistema de longo alcance para entendimentos considerados difíceis
Falésias morais: Falências morais vista de forma mais severa
Pórigo é o todo no complexo, a válvula propulsora para qualquer coisa tida como amalucada.
Pórigo ou pórico: A grafia certa é pórigo. Pórico foi escrito erradamente propositalmente.
Psicossomias pessoais: loucuras e neurastenias pessoais.
Sociedades tribais perfunctoriais: Sociedade de tribos vindas do imaginoso do professor Barata. Na verdade, segundo ele, indígenas que conhecem além daquilo que nunca ouvimos falar.
ESCLARECIMENTOS AOS LEITORES:
Na verdade, o texto é apenas uma brincadeira, um divertimento, um passatempo. A começar pelas palavras tidas como difíceis. Em resumo, nada tem de filosofia. A ideia do autor foi apenas a de divertir o leitor, descrevendo uma suposta aula de filosofia, onde nada pode ser levado a sério.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.
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