terça-feira, 10 de novembro de 2020

Rachel de Queiróz (Dona Noca)


Quem me apresentou a dona Noca foi dona Inês Corrêa de Araújo, pernambucana de velha estirpe, mulher de cultura que — coisa rara — tem sabido dar oportunidade a essa cultura; career-woman de vontade férrea e tremenda capacidade de trabalho, muito bem disfarçadas, entretanto, sob o seu agradabilíssimo exterior de grande dama. Pois foi dona Inês que me apresentou à maranhense dona Noca, — aliás dona Joana Rocha dos Santos — que é prefeita municipal da cidade de São João dos Patos, no seu Estado, desde o ano de 1934.

O encontro se deu numa confeitaria; e senti que o pouco tempo, naquela tarde apressada, não nos permitisse uma conversa mais longa e mais íntima. Porque a verdade é que dona Noca me fascinou, como antes já havia fascinado a minha amiga pernambucana.

É mulher que já deixou de ser jovem, que se veste e se porta como uma matrona discreta. E sabendo-a solteira, a gente logo se lembra dessas priorezas de convento — a autoridade escondida em brandura, sem precisar jamais de levantar o timbre da voz branda, chegando a provocar em quem não a conhece direito a impressão de que até é tímida. Tem a fala suave, a expressão preciosa, como frequentemente acontece com a gente do Maranhão, que fala como se escrevesse — e escrevesse bem. Não sofre daquele desalinho de linguagem a que estamos acostumados no Nordeste, o que admira, pois São João dos Patos já é quase Nordeste, é cidade fronteiriça, a apenas 30 quilômetros do rio Parnaíba.

Aos poucos é que se vai descobrindo nela a mulher excepcional, o temperamento singular que a distingue no seu meio, — e aliás em qualquer meio. Vez por outra, dentro daquela brandura, aponta uma palavra ou uma história que trai a consciência que tem dona Noca da sua força e o quanto ela sabe usar dessa força.

E enquanto ela fala, e responde às nossas perguntas, a gente fica pensando em quem é — se é uma rainha ou uma princesa — cuja lembrança dona Noca nos sugere. De repente sei quem é: é a maharani* de um principado hindu que vi representada no cinema pela falecida e admirável Maria Ouspenskaia. A altivez encoberta pela doçura firme. A consciência da sua hierarquia. A coragem pessoal. Até as preciosas joias antigas que dona Noca traz nos dedos e no colo, e o pente de ouro, — sim, de ouro puro — que lhe segura na cabeça o coque discreto, fazem parte da sua pessoa, tal como o grande brilhante da testa fazia parte da pessoa da maharani.

Contou-nos parte da sua vida. Desde menina vem aprendendo a mandar, a tomar decisões e a fazer escolhas. O pai negociante forte no Maranhão, era daqueles provincianos de ideias largas que não se intimidam com o meio estreito onde vivem; este acreditava em liberdade feminina, em igualdade entre os sexos e criou a filha de acordo com o que pensava. Menina de dezesseis anos, trazia-a aqui, para o Rio, apresentava-a aos seus fornecedores atacadistas e entregava à filha as encomendas e as transações com bancos e armazéns. Ensinou-a a tratar com gente importante, a defender direitos dos pobres, a se interessar pela coisa pública. Morreu o velho, já agora chefe político no sertão, e dona Noca, naturalmente, ficou no lugar dele. Um belo dia, lá por 1934, foi reclamar junto ao governo contra certa situação política impossível criada pelo potentado local, em São João dos Patos. O interventor ouviu-a, sindicou, descobriu que a moça tinha razão e fez uma coisa estranha que surpreendeu a todos, e mormente a dona Noca: nomeou-a prefeita de São João dos Patos, para que ela própria pusesse cobro aos abusos. Pois dona Noca consertou o errado. E fez o que não se fazia, abriu estradas, limpou a cidade, fomentou a instrução, melhorou as ruas, ergueu prédios. Tão forte é o seu prestígio naquela terra, que de 1934 para cá podem mudar as situações políticas do país e do Estado, mas dona Noca não muda. Continua na chefia do município inalteravelmente.

Contou-me ela que quando acha que vai debilitando a sua energia, deixando que a natureza fraca de mulher a domine mais do que o permitido, faz qualquer coisa que os outros acham maluca — manda selar o cavalo, parte sozinha, apenas com um pajem, em viagens de muitas léguas, noite a dentro, cortando o sertão bravo. Talvez um inimigo — (quem não os tem, e por que não os teria essa mulher forte?) talvez um inimigo lhe prepare um tiro à tocaia. Talvez uma onça lhe mate o cavalo e a ataque a ela própria. Talvez se perca, na escuridão. Pois é disso que ela sente que precisa, para endurecer outra vez. Regressa da cavalgata retemperada, com energia nova. E paga com redobrado carinho a São João dos Patos o que a sua cidade lhe dá em prestígio e gratidão.
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* Maharani – Maha quer dizer grande e rani quer dizer rainha, portanto maharani é uma rainha. Assim eram chamadas as esposas dos marajás que antes de 1947 governavam um terço do território da Índia atual que, além das colônias britânicas, portuguesas (Goa Damao e Diu) e francesa (Ponticherry), incluía 565 reinados. Essas Maharanis viviam nesses reinos, como em verdadeiros contos de fadas, em palácios maravilhosos, com manadas de elefantes, vagões luxuosos, carros chiques, muitas joias e festas indescritíveis. Quando uma mulher é bonita, fina, educada, enfim, tem muitos atributos, os indianos costumam chamá-la de maharani como um valioso elogio. (fonte: Caminho das Índias, in Globo – Gshow)

Fonte:
O Cruzeiro. RJ. 17 junho 1950.

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