Eles estão lá em cima tirando a roupa e fazendo graça. Se fosse o casal que mora no apartamento diretamente superior ao meu não me incomodaria em absoluto. Mas não: são os dois astronautas norte-americanos. Um deles espirrou no cosmos, da terra alguém no controle de comunicações exclamou: “Saúde!" Ou, mais possivelmente, “Gesundheit”! E comentou: “Acho que você contraiu o primeiro resfriado do espaço”! Não acho correto. Não que o camarada aqui em baixo tenha sido educado. Mas a leveza com que tratam o assunto todo. Sei lá: um homem no cosmos é um homem no cosmos. Está cercado, embora no imponderável, de gravidade por todos os lados. Ou deveria estar. Agora ficam os dois lá se rindo e se cutucando: “Êta, nós, hein?”, parecem dizer. Acho a coisa séria. Nada mais sério do que o espaço, nada mais sério do que estar no espaço. Eu ficaria inteiramente abobalhado e dificilmente daria uma informação coerente a alguma mesa de controle aqui da terra.
Também não chegaria ao extremo daquele russo que berrava: “Eu sou uma águia! Eu sou uma águia” dentro de toda aquela complicada roupagem espacial. Mas prenderia, tendo certeza, o espirro. E se tirasse a roupa, não avisaria o mundo inteiro: “Olha aí, eu vou tirar a roupa!”, numa espécie de exibicionismo cósmico, difícil de ser ultrapassado (as senhoras todas fechando as janelas e mandando as filhas para a cama: “Tem um homem nu lá em cima, meu anjo, vá se deitar!”). Mas se o presidente Johnson andou mostrando sua cicatriz a três por dois, como quem exibisse um peixe fabuloso recém fisgado, porque que o rapaz lá em cima não haveria de tirar a roupa?
Mais chocante ainda é o fato de dormirem sete saudáveis horas seguidas. Não é possível, deve haver alguma coisa de errado com eles. Se a gente não consegue dormir com uma lâmpada acesa na rua, como é que eles ferram no sono com a terra inteira brilhando (terra brilha?) na escotilha?
Deveriam manter um silêncio cósmico e quando se dirigissem à terra o fizessem com voz grave e apenas para repetir informações essenciais e de difícil compreensão para os leigos: “Alô, XK-102, Gemini-7 para a terra. Fase 3 encerrada. Iniciada fase 4”. Coisas assim.
Mas no domingo vai subir a segunda cápsula. No alto se encontrarão. Os americanos tinham que escolher o domingo. Dia de visita, sentar na varanda e pedir à mulher que prepare um jarro de limonada, bater papo. Só podia ser no domingo. E vão, de tardinha tenho a certeza, uma vez completada a missão, perguntar quem ganhou o jogo de baseball.
Posso estar errado, mas não confio no homem que vai ao cosmos como quem vai à esquina; no homem que no cosmos quer saber quem ganhou o jogo; que no cosmos não se esquece da terra e leva a terra com ele. Se há uma oportunidade de se começar de novo é lá em cima. Se um dia nossos filhos andarem pela lua não gostaria que, no mar de Copérnico, encontrassem uma goma de mascar usada, chapinha de refresco. Que encontrem apenas ‒ isso é importante ‒ um punhado inteiramente novo de terra.
Fonte:
Diário Carioca. RJ: 11 dez 1965.
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