texto de Claudia Sousa Dias*
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O romance póstumo de Eça de Queirós – mantido “na gaveta” durante décadas quer pela delicadeza do tema tratado – um incesto entre mãe e filho, fato que chocaria de sobremaneira a sociedade portuguesa -, quer pela crueza das situações e realismo com que dotou algumas das principais personagens fazem deste romance um dos mais vanguardistas da época. Trata-se, nitidamente de uma versão mais realista de Os Maias. Esse realismo encontra-se, simultaneamente, expresso tanto na crueza da linguagem, como no tom amargo e cético contido nas entrelinhas do discurso. A semelhança entre as personagens principais é mais do que evidente, o que nos dá a sensação de que Os Maias são a versão adocicada e idealizada deste romance, mais cru e muito ao estilo balzaquiano.
Algumas personagens mantém-se, como é o caso do Dâmaso que, para além do nome, conserva a figura, a boçalidade nos modos e no vocabulário, a personalidade mesquinha e o desejo de mostrar o “chique” que não tem. Mais velho, independente e abastado que em Os Maias, a constância nas atitudes é tal, que tudo indica tratar-se de uma personagem inspirada num indivíduo ou num grupo de pessoas com quem o autor convivia diariamente pela abundância de pormenores com que é caracterizado.
Outras personagens sofrem ligeiras alterações quanto à sua situação socio-económica ou de temperamento mas mantêm, essencialmente, o seu papel na trama.
Genoveva é muito semelhante, mas ao mesmo tempo, muito mais credível do que Maria Eduarda Maia, a típica heroína romântica. A protagonista de A Tragédia da Rua das Flores é, pelo contrário, uma mercenária que não hesita em prostituir-se com o objetivo único e simples de “cardar” um pedante Dâmaso. Ao contrário da imagem de estátua grega de Maria Eduarda, a beleza loura de Genoveva tem algo de ave de rapina, acentuada pelo perfil aquilino que o autor lhe confere. Trata-se de uma mulher dura, profundamente egoísta, colérica e cínica, cujas atitudes não granjeiam a simpatia do público, sobretudo na época em que foi escrito o romance (finais do sec. XIX). A manifestação do lado mais obscuro do seu caráter só é atenuada quando se apaixona por Vítor uma vez que, para conquistá-lo, tem de adocicar a sua forma de ser.
Vítor é a versão plebeia de Carlos da Maia. Menos sofisticado, mais romântico e sentimental está mais limitado devido à sua situação financeira pouco desafogada.
Timóteo é o tio abastado de Vítor, um Afonso da Maia mais brusco, menos cavalheiresco, menos britânico, mas igualmente inflexível e puritano quanto às características daquela que julga ser a esposa ideal para o seu único herdeiro. Um autêntico Armand de A Dama das Camélias.
O pintor Camilo Gorjão tem o discurso escabroso de João da Ega, com o mesmo diletantismo ideológico que tanto num personagem como no outro os impedem de escolher um estilo ou um tema e desenvolvê-lo. Ambos manifestam, também, o desânimo perante o fato de não terem um público à altura das suas criações excepcionais. Contudo, Camilo Gorjão, é desprovido da jovialidade de Ega, acomoda-se durante um largo período de tempo à sua situação, apesar de insatisfeito. Camilo é, sobretudo, um esteta que ainda não encontrou a sua identidade como pintor. Sem conseguir decidir-se entre a arte apolínea (sóbria, sem excessos, típica dos clássicos gregos, preocupada com as proporções e a harmonia estética) e a arte dionisíaca, a sua verdadeira tendência – orientada para o excesso nas cores nas forma e nas atitudes, que é a atitude que orienta a sua vida privada.
Joana, a mulher do pintor, é de uma beleza escultural e rosto romano, por quem Vítor sente como que uma atração irresistível e animal. Joana é uma personagem cuja alma se encontra nos antípodas de Genoveva. É uma jovem ignorante mas sem o menor vestígio de calculismo e de uma total transparência na fisionomia por onde perpassam todas as emoções. É também diferente de Aninhas, a amante dependente do dinheiro do protetor e da paixão por Vítor. Ambas têm em comum a falta de sofisticação e de requinte, mas esta última é destituída do encanto da simplicidade bravia e inocência de Joana.
Outra personagem de grande interesse é, apesar de periférica, D. João da Maia, proveniente de uma das famílias mais antigas e aristocráticas de Portugal. Ateu e republicano, “de maneiras delicadas, hábitos finos e predileções literárias” é um indivíduo exaltado pela arte, sibarita, mas generoso apesar de empobrecido. Respeitado e amado, ninguém menciona os seus defeitos em voz alta. Com o ar de “príncipe bom rapaz” faz lembrar um Carlos da Maia empobrecido.
Joana Coutinho, uma das frequentadoras das soirées de Genoveva, torna-se amiga íntima de Vítor, depois da morte desta – uma relação intelectual. Trata-se de uma jovem etérea de aparência perfeita, de espírito independente e idealista, um tipo não muito apreciado pelo autor devido à sua aparente frigidez.
Apesar de se referir ao romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, A Tragédia da Rua das Flores é mais uma transposição da tragédia de Sófocles, Édipo Rei. O tema do incesto entre mãe e filho, especialmente nos moldes em que foi concebido – Genoveva é uma cocotte venal e não a digna rainha Jocasta – é especialmente provocador para a época, principalmente pela crueza da linguagem e pelo fato de Eça não tentar pintar a personalidade de Genoveva com as cores românticas: enquanto que Maria Eduarda é caracterizada como a mulher ideal, Genoveva nos é mostrada como a típica mulher fatal, produto típico da sociedade mundana da belle époque.
As principais diferenças em relação ao autor clássico, é que a atitude de Vítor não interfere no destino do pai e, além disso, o jovem não chega a ter consciência da transgressão, logo não é afetado pela culpa ou remorso.
ATITUDES, INDÍCIOS E PRESSÁGIOS
Na cena inicial, observamos uma mulher loira e requintada que chama a atenção do público masculino num camarote do Teatro nacional de S. Carlos, contrastando vivamente com o visual das portuguesas típicas da elite lisboeta.
Em seguida, especula-se sobre a sua identidade e origens. Apesar do seu requinte e sofisticação, há algo na sua toilette e comportamento que trai o seu aparente verniz aristocrático: um bracelete em forma de serpente enroscada no braço, lembrando Sarah Bernhardt, com dois coruscantes olhos de rubi a denunciarem o verdadeiro caráter da dona. Por outro lado, a excessiva familiaridade com um homem vulgar, bajulador e fisicamente pouco interessante, eliminam de uma vez por todas a hipótese de tratar-se de uma senhora, ou de uma princesa como inicialmente se chegou a suspeitar. O comportamento é positivamente inadequado. Os gestos são os de uma mulher mundana. Trata-se de alguém cujo encanto provém unicamente do luxo e da sofisticação patentes, respectivamente, no vestuário e nos gestos de sedução estudados até ao mais ínfimo pormenor. Do contato com artistas e intelectuais, limita-se a repetir aquilo que ouviu dizer aos homens considerados então de gênio superior.
A mulher ideal para fascinar um jovem literato romântico, devoto de Byron e Tennyson, com tendência a uma mórbida melancolia.
Vítor avista-a e, a partir de então, os dados estão lançados. A trajetória da fatalidade é impelida como que por uma força física, semelhante à de uma seta disparada por Eros.
Entretanto, há vários tipos de presságios e indícios ao logo da obra que permitem ao leitor mais atento vislumbrar o desvendar da trama. Por exemplo: logo no primeiro capítulo, no teatro nacional de S. Carlos, uma das principais personagens da peça, Sir Galahad, garante estar ali para punir os amores culpados. E, por várias vezes, é também referida alguma vaga semelhança relativamente às feições de Vítor e Genoveva.
Por outro lado, em vários momentos da narrativa, afigura-se a possibilidade de, através de um informador privilegiado, desviar o curso da tragédia, o que devido a uma série de contratempos, acaba por ser frustrado.
A verdade só vem de cima, após o confronto de Genoveva com o Tio Timóteo, altura em que se dá o reconhecimento da fatalidade numa cena que em tudo lembra o segundo ato de La Traviata de Verdi – até pela presença de violetas e camélias nos vasos da sala onde se dá o encontro.
Também na última ida a S. Carlos, Genoveva enverga uma toilette em tons de vermelho e preto, as cores do sangue e da morte. Outro presságio de morte é dado a entender quando Genoveva afasta Vítor da janela em obras à qual foi retirada a varanda, alertando-o para o perigo das vertigens, seguido da afirmação sinistra do carpinteiro “Era um saltozinho bonito…”. E o último beijo trocado entre os dois amantes antes da chegada do tio traduz o sabor da despedida e da saudade antecipada…o toque de romantismo é aplicado a tudo o que se relaciona com a conduta de Vítor.
A Tragédia da Rua das Flores mostra-nos um Eça especialmente corrosivo, num romance que não foi escrito para agradar às audiências. É por isso que as cantoras do S. Carlos são nos dadas a ouvir a “ganir” enquanto o tenor Sarrotini “muge com furor garibaldino”. Genoveva é constantemente tratada de “bêbada” por várias personagens. A palavra “chulo”, tirada diretamente do vernáculo, é várias vezes mencionada em vez do vocábulo de “proxeneta” - mais utilizado no discurso literário clássico e muito menos expressivo. Tal como quando se refere às “atoucinhadas ancas” do Palma.
Uma obra que se torna irresistível pelo fiel retrato de uma época falsamente puritana onde, salvo raríssimas exceções, a mediocridade é elevada à categoria de excelência.
O Eça menos popular. Mas nem, por isso menos acutilante. Um tiro certeiro nos tabus da sociedade lisboeta nas últimas décadas do século XIX.
Fonte:
*Artigo de Cláudia Sousa Dias, no blog Há Sempre um Livro
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