segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Treze) Né?


texto integrante do livro "Comédias da Vida na Privada".
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AS DUAS AMIGAS CONVERSAM animadamente numa das salas da excêntrica milionária Elena de Castro Y Castro Aparecido, enquanto tomam chá servido por uma serviçal toda meticulosa, metida num aventalzinho cor de abóbora. Elena é alta, morena clara, aparenta ter 25 anos. E tem. A visitante é Liliane, uma loirinha simpática e faladeira, que fazia as unhas de Elena nos tempos em que ela costumava frequentar um sofisticadíssimo e caro salão do shopping. As duas se tornaram amigas. Em vista disso, a ricaça deixou de marcar presença no local e, por essa razão, duas vezes na semana, Elena convida Liliane para vir até sua mansão. Ora para jogar conversa fora, ora para fazer as unhas das mãos e pés, o que lhe rende, além do serviço em si, uma gorjeta extra não computada pela patroa e as demais funcionárias.

Liliane é loira de nascença, graciosa, extrovertida e se veste com a simplicidade de uma suburbana de Madureira, embora resida com marido e dois filhos num bairro lá pelos cafundós de Santa Cruz. É de complacência alta e incrivelmente magra como uma dessas hastes de madeira encontradas em mesas de restaurantes para esgaravatar os dentes, após uma suculenta refeição. Olhando para ela, tem-se a impressão de que faz regime constante para se deitar numa agulha e cobrir o corpo com um pedaço de linha. Liliane acabou de completar 27. Mas, pela vida agitada, pelos problemas, aparenta estar beirando os quarenta:

— Eu acho que a Lucinda, né... Ao falar —, se serve de uma torrada oferecida pela amiga. — Acho que ao falar de certas coisas, né —  parece que se perde...

—... Se perde? Como assim?

— Me refiro ao tempo no tempo. No espaço, como diria, ah... Ta. Toda fuc-fuc.

— Toda fuc-fuc Liliane? Explica este termo.

A loira fica um minuto olhando fixamente para um quadro recém colocado na parede. É um legitimo Rembrandt de 1625.  Mas, claro, ela não sabe:

— Fuc-fuc é como misturar alhos com bugalhos, né?

— Alhos com bugalhos?

— Sim.

— E o que tem a ver o fuc-fuc da Lucinda com alhos e bugalhos?

— Assim, amiga. Fuc-fuc é aquela pessoinha toda enrolada, né, toda não sei onde estou como cheguei até aqui, etc. etc. Alhos né, é aquele condimento caseiro que a gente mistura ao óleo, a cebola e aos tomates, para dar um gosto mais apurado nos alimentos, né?

— Não me convenci. Juro que estou no ar, balançando como caniço ao vento.

A loira se limita a uma resposta fria e repetitiva:

— Né...?

E continua fixa no quadro. Seus olhos de um azul profundo se abrem num brilho espetacular:

— Aquele troço que você tem ali naquela parede — as palavras saem de sua boca num fluxo rápido, como a força da água corrente que está represada e finalmente se solta  —.  é do tal “Reibrant?”.

— Quem, amiga? Não entendi. Repita, por favor.

— Né? “Reibrant?”.

— Ah. Você se refere a Rembrandt. Aquele é um legítimo...

— Né?

— Liliane, você está diante do “Martírio de São Estevão”. Uma joia rara desse pintor holandês. Da última vez em que esteve aqui, eu ainda não o tinha na minha coleção. Trouxe de Paris ano passado. Estava na minha mansão lá da Barra da Tijuca.

— Né?... Martírio de quem?

— São Estevão. Rembrandt foi discípulo de Pieter Lastman. Apesar de famoso e conhecido no mundo inteiro, morreu pobre e na miséria. Mas deixa isso para lá. Vamos voltar aos alhos com bugalhos. Disso você entende, não?

— Sim, muito.

— E o que seriam bugalhos?

— Né? Paris... Como?... Bugalhos?

— Perfeito. Bugalhos.

A loira tenta desconversar e sair pela tangente:

— Ontem, né, quando você me mandou aquela mensagem pelo msn, e logo depois repetiu pelo zap, para vir hoje aqui em sua casa, confesso não ter entendido uma palavra que me escreveu...

— Que palavra, amada?

— No final do nosso papo eu “ponhei” assim pra você: “pode deixar minha linda. Amanhã estarei ai pra tomar chá com você. Fique na paz”. Ai você me respondeu. — “Deus te opuça”. O que é opuça?

— Opuça?!

— Sim! Opuça.

Elena de Castro Y Castro Aparecido, polidamente educada, cai numa bela e espontânea gargalhada:

— Só você para me fazer rir. Não seria ouça? Deus te ouça?

— Né..?

A anfitriã volta a se desmanchar num sorriso largo e cativante. Em seguida, num gesto de delicadeza faz um sinal quase imperceptível à serviçal de aventalzinho abóbora para que complete a xícara da amiga que veio em atenção ao seu convite:

— Taninha, por favor, renove as nossas torradas.

A moça serve a bebida, faz uma mesura com a cabeça e se retira, silenciosamente:

— Fique a vontade, Liliane. Você é de casa.

— Não, Elena. Estou satisfeita. Regime. Comer demais vai me tirar de forma, né...?

— Voltando ao opuça, minha amiga querida, às vezes, na pressa, a gente erra. Você mesma, dias atrás, está lembrada, falando de seu marido, disse categoricamente que iria mandá-lo às facvas...

— Eu disse?

— Sim, amiga.

— Mas por que eu mandaria o coitado do Paulinho às facvas? Nem sei o que é isso!

Novos risos:

— Na afoiteza de me escrever, acredito que, no calor da pressa, sabe-se lá, você digitou facvas. Mas eu entendi perfeitamente que me quis dizer favas:

— Ah, tá... Né? Facvas é favas.

— Não, Liliane.  Favas é favas. Facvas foi um cezinho que você colocou a mais. Digitou sem querer. Um errinho insignificante. Acontece!

— Né...?

— Pois bem. Voltando ao nosso papinho tão legal. Nós duas estamos fugindo do assunto. O que seriam bugalhos?

— Bugalhos né...?

— Bugalhos.

Elena encarou Liliane de frente e capturou no fundo da sua alma o ar preocupado que tomou conta da sua expressão:

— Bugalhos, né. Me fale um pouco mais do “Martírio” daquele sujeitinho ali da sua parede. Como é mesmo o nome? Reibrant, Reimplante, Reinante, Kikikikikiki... Sei que é rei. É rei, né...?

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor, de Florianópolis/SC

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