O romance ficcional “As horas nuas”, de Lygia Fagundes Telles, foi publicado em 1989. É uma narrativa moderna que focaliza atitude e postura do homem comum. Apresenta um enredo fragmentado, retratando ações, comportamentos e costumes dos indivíduos e da sociedade na qual ele está inserido.
A autora dá ênfase ao comportamento das personagens em interação com a sociedade, retratando de forma subjetiva dilemas e contradições da alma humana, que se move entre valores, apelos do mundo social materialista e massificante. Assim ela vai projetando a realidade e enfatizando o seu reflexo na vida do indivíduo.
No romance em estudo, o narrador busca adequar a linguagem ao vai e vem das ações avançando e retrocedendo, confirmando a vitalidade do tempo. Assim o leitor vai sendo introduzido na trama, conhecendo e penetrando de forma sutil na complexidade, que e calcada nos conflitos existenciais das personagens e que se reflete nos problemas atuais da sociedade.
O romance apresenta uma linguagem plurissignificativa fincada nos constantes uso de estrangeirismos “Hasta siempre”, ”illustration”. “Formes et couleurs”, nas figuras de linguagem:
Metáforas, “fecho meus olhos e vejo minha filha boiando no rio do supérfluo”;
Personificação presente na figura do gato;
Eufemismo “idade da madureza”;
E na intertextualidade que aparece no saudosismo da infância de Rosa, onde esta lembra do clássico “João e Maria”, nas cirandas “O cravo e a rosa”, nas lembranças da “antiga Praça da República transformada pelo crescimento desordenado da cidade”, em trechos retirados dos mandamentos bíblicos “não julgueis e não sereis julgados” e na literatura de ficção policial “É elementar, meu caro Watson”.
PERSONAGENS PRINCIPAIS
ROSA AMBRÓSIO = protagonista da narrativa, é uma atriz que vive remoendo lembranças de uma infância e adolescência infeliz. Rememora o auge da decadente carreira de atriz e na ânsia para fugir da realidade afoga-se no alcoolismo. Oscila entre momento de delírios, luxúria e lucidez. A atriz foi uma pessoa muito machucada pela vida. Ferida e desconfiada, foi abandonada pelo pai logo cedo e perde o primeiro e grande amor da sua vida, o primo Miguel. A partir de então, busca consolo no ombro amigo de um até então desconhecido, Gregório, que logo viria se tornar pai da sua única filha. Mãe relapsa, Rosa Ambrósio mantém um relacionamento meio conturbado e preconceituoso com a filha, da qual sente ciúmes. Ela inveja a juventude e o bom relacionamento da filha com o pai. Só e infeliz procura consolo nos braços do secretário e amante, Diogo. Passa então a arcar com as extravagâncias deste e aturar suas loucuras, assumindo assim uma postura masoquista. Temendo a velhice que prefere chamar de “idade da madureza”, ela procura refúgio também nas sessões de análise e na solidariedade da governanta Dionísia. A atriz apresenta um comportamento ambíguo: apesar de viver de modo desregrado, critica as futilidade da humanidade, chegando a ponto de por em cheque valores éticos e morais, os modismos imposto pela mídia e sua repercussão no modo de vida da sociedade. A personagem não foi sempre rica; muda de vida quando recebe uma herança da tia.
RAHUL (o gato) = também protagonista, é uma personagem personificada. Ele pensa, age, e se comporta quase como humano contando reminiscências, fazendo reflexões sobre o que acontece. Tem uma relação estranha com a atriz Rosa Medrado, a que ele chama de Rosona. Demonstra verdadeira adoração por Gregório, falecido marido de Rosa e desprezo por Diogo, o amante. Parece viver na esperança de que o falecido volte. Tanto é que consegue vê-lo passeando pela casa. Rahul vive momentos de lembranças fugazes, nos quais ele acredita ter vivido outras vidas.
ANTAGONISTA = É a crise existencial vivida pela atriz Rosa Ambrósio.
ANANTA = Personagem de comportamento estranho, demonstra obsessão por um “homem” que ela diz morar no andar superior. É uma analista e dedica-se também ao trabalho social numa Delegacia de Proteção a Mulher. Ananta demonstra tendência para o mistério. Solitária, a analista mantém um círculo restrito de amizades ( a governanta, os moradores do prédio, e a amiga Flávia), Desaparece misteriosamente sem deixar pistas.
DIOGO = Era secretário de Rosa, e veio se tornar seu amante. Por ser jovem e bonito age como um gigolô, aproveitando-se das fraquezas da atriz para explorá-la, chantageando-a com suas idas e vindas. Viaja e não volta mais.
PERSONAGENS SECUNDÁRIAS
CORDÉLIA = Filha de Rosa e de Gregório, a moça demonstra um personalidade independente e atrevida. Vive a manter relacionamentos amorosos com homens mais velhos, o que choca a mãe. É adepta a modismos e indiferente a crise existencial da mãe, pois se identificava mais com o pai.
GREGÓRIO = Marido de Rosa e pai de Cordélia. Moço educado e professor. Conhece a esposa no dia em que está perde seu grande amor. Gregório a amava a sua maneira, mesmo assim foi traído por Rosa. Ele sabia o que se passava mais fingia ignorar. Tinha um espírito calmo tanto é que morreu quieto para não incomodar ninguém. Só demonstrava luta para defender os menos favorecidos. Foi exilado e torturado. Antecipa a morte. Sofria de mal de Parkinson.
DIONÍSIA ─ É mais que uma simples empregada. É também confidente e amiga. É aquela que busca conforto na fé, para aturar as insanidades de Rosa.
MIGUEL─ Primo de Rosa, foi o primeiro e grande amor da vida da atriz. Ela jamais conseguiu esquecê-lo. Garoto mimado e acostumado à boa vida dos endinheirados, entra no mundo das drogas e morre de overdose.
RENATO MEDRADO ─ Aparece quase no final da trama como primo da analista. É uma personagem suspeita no caso do desaparecimento de Ananta. É através da sua visão que o leitor pode ter noção sobre a infância desta. Mostra-se bastante interessado em resgatar a amizade da prima, a qual ele demonstrou indiferença até então. Esse seu interesse levanta suspeita. Qual será o real interesse de Renato? Será que ele deseja realmente encontrar a prima Ananta? Ou o seu interesse é pelos bens que ela deixou?
FLÁVIA – Parece ser a única amiga de Ananta, mas nem ela sabe o seu paradeiro.
OUTRAS PERSONAGENS
TIO ANDRÉ – Marido da tia Lucinda.
TIA LUCINDA – Era a mãe de Miguel. Gostava de prestar serviço à comunidade.
TIA ANA – Deixou a herança para Rosa.
LILI – de personalidade extrovertida, aparece de vez em quando na casa de Rosa.
ENREDO
O romance possui uma multiplicidade de narradores, que conta a trama de forma não ordenada. A ação começa em um capítulo, é fragmentada e só após outros capítulos ela vai ser retomada. Os desvios do enredo, embora pareçam romper o ritmo da ação, pelo contrário fazem evoluir a trama, eles são essenciais na trama.
A autora usa uma adequação do elemento linguagem ao vai e vem da trama, avançando e retrocedendo no entrecruzamento dos episódios, para firmar a realidade do tempo.
O enredo é voltado para a problemática da realidade moderna. Os conflitos são vivenciados subjetivamente, mas aparecem objetivamente como indícios da realidade caótica, atuando no desenvolvimento e equilíbrio do ser.
Expresso por uma linguagem plurisignificativa ele revela profunda inquietação existencial da espécie humana. As personagens vão se formando num processo fluido e de metamorfose.
A narrativa é centrada em momentos de vivência interior das personagens, privilegiando a subjetividade. Estas vivem em constante dilema entre o EU e aceitação da sociedade. A linguagem usada pela autora é de fundamental importância para a constituição do enredo. Este se transforma na própria vivência das personagens. È um reflexo dos seus dilemas interiores, onde se encontra uma forte desconexão entre o indivíduo e a sociedade.
TEMPO E ESPAÇO
O tempo e o espaço fundem-se na narrativa moderna. Em “As horas nuas”, o tempo é psicológico e subjetivo acompanhando o viver das personagens, por isso, “onde está o tempo está o drama”. São as vivências das personagens que vão fornecendo ao leitor, um quadro verdadeiro do ser, retratando sua fisionomia interior por meio de um fluxo constante e duradouro da consciência. O tempo e o espaço são construídos de forma dissimulada na própria vivência dos personagens
FOCO NARRATIVO
No romance em estudo, a narrativa apresenta um discurso polifônico.
Logo no início há a presença de um narrador em 1ª pessoa, a personagem Rosa Ambrósio. Num monólogo interior esta mergulha e descreve seu passado de dores e glórias. Ela vive uma crise existencial em busca de sua identidade, negando valores sociais vigentes e não aceitando a velhice e o fim da carreira como atriz.
Entro no quarto, não acendo a luz, quero o escuro. Tropeço no macio e desabo em cima dessa coisa ah! Meu Pai.
Licença Diu, não leve a mal, mas vou ficar um pouco por aqui mesmo...
Traz também a presença de um segundo narrador, o narrador personagem, personificado na figura do gato (Rahul), Ele tece comentários a respeito das personagens, mas seu foco é sobre a figura de Rosa Ambrósio e Gregório, o qual ele demonstra verdadeira adoração ou fixação. A descrição que Rahul faz das personagens é de forma quase doentia. Ele descreve minuciosamente atos peculiares e até mesmo lê o íntimo delas. Ele chega às vezes a dar-lhes voz no discurso indireto livre, revestindo-se assim em um narrador onisciente.
Falsas, pensei. Rosona veio com seu robe d’interieur e seu espelho de aumento que odiava mas não podia ficar sem ele.
Começavam sempre mais ou menos assim as discussões entre os dois e que podiam evoluir rapidamente para os palavrões entremeados de empurrões. Tapas. Ou ter o desfecho na cama.
Os caminhos eram tortos, mas seguidos por eles Rosona acabou por acertar. Gregório escolheu sua morte antes de ser escolhido. Anteviu o que podia ver, futurou e essa futuração deve ter ido além do seu poder de suportar.
No quinto capítulo surge um novo narrador em 3ª pessoa. Este de fora passa a apresentar e descrever minuciosamente a personagem Ananta Medrado, uma analista misteriosa, metódica e de personalidade calma e reservada.
“O consultório de Ananta era de uma profissional sem vaidade”. Disciplinada... A flanela estava dobrada no canto da gaveta. Passou-a nos poucos objetos e nenhum supérfluo.”
– Tenho um Vizinho... Agora não quero pensar no professor com seus teoremas. Era a vez do Vizinho.
Ananta foi até a janela e afastou a cortina para ver o céu... Depois da sessão poderia ir (andando) até a delegacia da mulher. Dessa mulher pela qual pode fazer tão pouco.
No decorrer da trama, outros capítulos são narrados em 3ª pessoa, há mais ações e diálogos. É feita a descrição de ambientes enquanto as cenas se desenrolam. O narrador conta o desaparecimento de Ananta Medrado, a viagem de Diogo, o aparecimento do primo da analista e o internamento de Rosa em uma clínica de recuperação.
Subo na poltrona. O quarto está escuro, mas vejo Rosa Ambrósia... no coração das três mulheres.
Mãe querida, você disse que ia almoçar comigo e não foi, queixou-se Cordélia.
Hoje não acordei brilhante. A Diu leu o horóscopo, tem aí uma conjuntura de astros que é um horror.
“ O delegado da delegacia de pessoas desaparecidas estava tomando café” Renato Medrado parou...
- Não usava joias, se tem alguma deve estar no cofre... Dólar? Não sei dizer. O carro...
Bibliografia
LOBO, Luiza. A ficção impressionista e o fluxo de Consciência (Joyce, V. Woolf, Proust). In: VASSALO, Ligia (Org.). A narrativa ontem e hoje. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
Fontes:
– Gabriela Cabral da Silva Dantas. Análise do romance As Horas Nuas, disponível em Brasil Escola.
– Wikipedia
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