sábado, 28 de novembro de 2020

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 3

AMOR  FELINO


 O gato chegou de esguelha, moroso, amorado.
Chegou, gateou, miou um miado de desejo.
Derramou um olhar de sultão, anunciando volúpia.
Palmeou o terreno, miou afinado,
saracoteou  exibindo  felinidade.
Agradou, submeteu-se.
A lua romântica prateou o gato, o miado se alongou,
 se perdeu nas barreiras da noite.
E o gato se afastou  molengamente
tomado  por aquela frouxidão  aconchegante
que se sucede depois do amor.
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AUSÊNCIA

Pássaro amigo, cessa  teu canto
que  por  enquanto, não quero ouvir.
Não cantes mais, quero o  silêncio
para  sonhar, para dormir.
Teu canto é  belo, mas  eu  não  quero
ouvi-lo  assim.
Deixa- me agora   e sem demora
leva  contigo, pássaro amigo,
toda  a tristeza que  há  em  mim.
E se voltares  traga em teu canto
o  doce encanto de uma presença.
Mesmo volátil, em  gaze fluida,
mesmo  num  quase, mesmo em essência!
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DESVARIO

 Hoje se apoderou de mim
um espírito de criança.
Menina arteira, eu virei bicho,
pastei  grama, uivei,  esgravatei o chão,
pulei  corda e despetalei um malmequer
para tirar a  sorte.
Escarranchei sobre minha janela
e aspirei o perfume das rosas
 que  há quarenta anos se esparramavam sobre ela.
Ali  foi o meu canto de silêncio,
 meus  momentos de diálogos  introspectivos.
Foi tudo perfeito, até que fosse desfeito o  sonho
e acabasse a doideira.
Depois, só lonjura!
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DISFARCES

Reinvento-me  para fugir de uma angústia  flácida,
velha  angústia  que se fez platônica
e  deixou n´alma uma ferida crônica
um  não sei quê de uma dor semântica.

 Reinvento auroras se a noite é sólida,
se  a solidão  acena e o silêncio é frêmito.
Invento trilhas pra minha alma em trânsito
se  a chuva cai e me impede o tráfego.

 Engulo  seco e contenho  as  lágrimas,
reinvento  passos se o andar  é trôpego,
pinto  as  faces  e disfarço o pálido,
engano o tempo que me bebe sôfrego.

 Faço da vida o meu tema único,
sou  a invenção de um poeta cômico.
Faço das letras um poema bêbado
que impulsiona o meu corpo em êxodo.

 Sou a vítima, sou disfarce, sou inquérito,
sou a vida questionada nas linhas do pretérito.
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ESTIAGEM

 Ando de um lado para outro dentro de mim
e não me alcanço.
Distancio das minhas carências
enquanto  me preparo para o amor.
Sou semente à espera das tuas águas,
sou  terra seca à espera do teu frescor.
Deixa que me venham os teus rios
e  eu te farei pescador de mim .
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MOMENTO
   
Na bica de água fresca me debruço.
Bebo o tempo e a longa espera.
Me farto de renovo.
Foi então que colhi gotas d‘água
e com elas quis fazer uma represa,
eternizar  o  momento.
Mas elas não se represaram em meu corpo,
gasto  pelo áspero clima de outras paisagens.
Foi aí que meu chão empedrou, ficou  cinzento
e minha alma passou a sofrer de cascalho.
Só na poesia me despedro e me desbravo.
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RECURSOS POÉTICOS I
 
Não escrevo por mim,
 a vida me propôs usar esse recurso.
Escrevo para eternizar a palavra
que é mais forte  diante do eu que em mim habita.
Escrevo para me enganar
de que o viver não me amedronta.
O tempo passa, mas a palavra resiste.
Minha voz se cala, mas o som de cada  palavra
eterniza  meus hiatos e interrogações sem respostas.
A palavra se encarrega de preservar meus sentimentos,
a palavra me conduz, enquanto ser humano..
O resto é engano.
Ave, Palavra!
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SOLIDÃO

 Sonho-te e te reconstruo.
Recrio a tua imagem, vulto intocável,
volátil   presença  que se evapora dentro da noite
para o desconsolo da minha ilusão.                                                                   
Pudesse eu te tocar, pediria que  ficasses
e  bebesses do meu cálice o amargo vinho
 que  transborda da minha taça de solidão.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.

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