O SEXTO GATO
Nasceram sete gatinhos da gata siamesa, mas o sétimo era mofino, e a mãe não lhe deu apreço, pelo que o coitado achou de bom aviso raspar-se deste mundo com a maior discrição.
Os restantes cresceram na forma habitual, e à medida que cada um se desenvolvia a gata se considerava quite com ele, dispensando-se de amamentá-lo e lambê-lo. Sabendo que esta é a lei natural, eles saíam muito lampeiros para viver a vida.
O último, porém, não quis desligar-se da proteção materna. Deixar de mamar, ele admitia, mas deixar de ser lambido e de dormir encostado à mãe, isso nunca.
Resultou que a gata, a princípio aborrecida, acabou se conformando com a companhia do gato já florido e maior do que ela, e daí por diante esqueceu as regras da espécie, passando a ser a primeira supermãe felina.
O dono quis separá-los para vender a cria. A mãe ferrou-lhe uma unhada no traseiro, que o fez desistir do negócio.
Mãe e filho, inseparáveis e castos, foram objeto de programas de televisão do Dia das Mães e do Dia dos Gatos, mas queixavam-se da publicidade. Preferiam dormir nessas ocasiões.
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O SOFRIMENTO DE JÓ
Os amigos de Jó, ao fim de certo tempo, acharam que ele se comprazia em sofrer e lamentar-se porque o Senhor o havia abandonado. Sentiam-se enervados com a prantina infindável.
— É preciso dar jeito na vida de Jó — dizia um. — Ninguém mais suporta as suas lamentações. Vamos propor-lhe uma viagem ao país de Tiro, onde ele se deleitará com as coisas belas e agradáveis ofertadas pelo rei Hirão?
Jó recusou o convite, alegando que não tinha amigos, e a proposta visava sua perdição eterna. Trancou a porta a Elifaz, a Baldad e a Sofaz, e continuou a dizer-se o mais desgraçado dos homens. A Morte, que rondava, escutou-o. E sugeriu-lhe:
— Venha comigo. Darei cura total a seus males.
— Muito obrigado — respondeu Jó. — Não posso mais viver sem eles. Desaprendi a alegria e, pensando bem, qualquer estado é sempre o mesmo; todas as coisas são uma só e triste coisa. Deixe-me em paz, isto é, em guerra comigo mesmo.
O Senhor, ouvindo tamanho dislate, apiedou-se de Jó e restituiu-lhe as graças e bens perdidos, mas Jó nunca mais foi o mesmo homem. Conhecera o sofrimento, que lhe voltava em sonho.
Esta versão, que contraria o livro clássico, foi divulgada pela terceira filha de Jó, chamada Cornustíbia, a quem os cronistas da época não concedem maior crédito, alegando que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Nasceram sete gatinhos da gata siamesa, mas o sétimo era mofino, e a mãe não lhe deu apreço, pelo que o coitado achou de bom aviso raspar-se deste mundo com a maior discrição.
Os restantes cresceram na forma habitual, e à medida que cada um se desenvolvia a gata se considerava quite com ele, dispensando-se de amamentá-lo e lambê-lo. Sabendo que esta é a lei natural, eles saíam muito lampeiros para viver a vida.
O último, porém, não quis desligar-se da proteção materna. Deixar de mamar, ele admitia, mas deixar de ser lambido e de dormir encostado à mãe, isso nunca.
Resultou que a gata, a princípio aborrecida, acabou se conformando com a companhia do gato já florido e maior do que ela, e daí por diante esqueceu as regras da espécie, passando a ser a primeira supermãe felina.
O dono quis separá-los para vender a cria. A mãe ferrou-lhe uma unhada no traseiro, que o fez desistir do negócio.
Mãe e filho, inseparáveis e castos, foram objeto de programas de televisão do Dia das Mães e do Dia dos Gatos, mas queixavam-se da publicidade. Preferiam dormir nessas ocasiões.
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O SOFRIMENTO DE JÓ
Os amigos de Jó, ao fim de certo tempo, acharam que ele se comprazia em sofrer e lamentar-se porque o Senhor o havia abandonado. Sentiam-se enervados com a prantina infindável.
— É preciso dar jeito na vida de Jó — dizia um. — Ninguém mais suporta as suas lamentações. Vamos propor-lhe uma viagem ao país de Tiro, onde ele se deleitará com as coisas belas e agradáveis ofertadas pelo rei Hirão?
Jó recusou o convite, alegando que não tinha amigos, e a proposta visava sua perdição eterna. Trancou a porta a Elifaz, a Baldad e a Sofaz, e continuou a dizer-se o mais desgraçado dos homens. A Morte, que rondava, escutou-o. E sugeriu-lhe:
— Venha comigo. Darei cura total a seus males.
— Muito obrigado — respondeu Jó. — Não posso mais viver sem eles. Desaprendi a alegria e, pensando bem, qualquer estado é sempre o mesmo; todas as coisas são uma só e triste coisa. Deixe-me em paz, isto é, em guerra comigo mesmo.
O Senhor, ouvindo tamanho dislate, apiedou-se de Jó e restituiu-lhe as graças e bens perdidos, mas Jó nunca mais foi o mesmo homem. Conhecera o sofrimento, que lhe voltava em sonho.
Esta versão, que contraria o livro clássico, foi divulgada pela terceira filha de Jó, chamada Cornustíbia, a quem os cronistas da época não concedem maior crédito, alegando que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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