terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Contos do Oriente (O Amestrador de Tigres)

Um dos melhores amestradores da China chamava-se Liang Yang. Ele treinava qualquer tipo de animal, de lobos a tigres, de águias a serpentes. Mas Liang Yang estava envelhecendo e, caso morresse, não haveria ninguém para substituí-lo. O rei Xuan ordenou então que Mao Qiuyuan aprendesse com ele suas habilidades de amestrador.

— Eu não tenho nada para lhe ensinar — disse Liang Yang — Acontece que se você disser isso ao rei, ele vai achar que estou de má vontade.

Mao Qiuyuan escutou em silêncio o que lhe dizia Liang Yang. Começou então a observar como o amestrador entrava na jaula do leão, acariciava sua juba durante algum tempo e saía logo depois. Nesse momento, a pantera negra urrou debaixo de uma figueira. Liang Yang aproximou-se dela, os dois observaram-se durante algum tempo, até que Liang Yang pareceu lembrar-se de que Mao Qiyuan ainda o esperava.

— E então? — Quis saber Mao Qiyuan.

— Eu vou te falar um pouco sobre cuidados que você tem de ter. Alguns animais ficam muito bravos quando são desobedecidos. Cuidado com eles! Um amestrador, por exemplo, não ousa dar ao tigre animais vivos para comer, pois logo eles ficam bravos e impacientes. Não se pode também dar aos tigres um animal inteiro. Os tigres não gostam. Preferem a comida dada aos poucos. Além disso, um amestrador tem de saber quando o animal está faminto e o que pode irritá-lo. Embora tigres e homens sejam de espécies diferentes, os tigres vivem muito bem com seus criadores porque esses amestradores conhecem bem a vontade dos tigres e nunca os desobedecem.

´Eu nunca desobedeci meus tigres, deixando-os furiosos ou agradei-os, com obediência em demasia. Freqüentes alegrias são seguidas de repetidas fúrias e repetidas fúrias de alegrias: nenhuma dessas situações pode ser boa. Sendo assim, fico calmo e tranqüilo e nunca sou obediente ou irritante em excesso. Nos olhos dos animais e dos pássaros, somos da mesma espécie. Eles vivem no meu pátio como se ele fosse deles, nunca sentindo saudade da floresta, do mar, da montanha ou do vale.


Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos)


DEDICATÓRIA

Se acaso uma alma se fotografasse
De sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando — deste grupo bem no meio —

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.
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DANTON

Parece-me que o vejo iluminado.
Erguendo delirante a grande fronte
— De um povo inteiro o fúlgido horizonte
Cheio de luz, de idéias constelado!

De seu crânio vulcão — a rubra lava
Foi que gerou essa sublime aurora
— Noventa e três — e a levantou sonora
Na fronte audaz da populaça brava!

Olhando para a história — um século e a lente
Que mostra-me o seu crânio resplandente
Do passado através o véu profundo...

Há muito que tombou, mas inquebrável
De sua voz o eco formidável
Estruge ainda na razão do mundo!
__________________

MARAT

Foi a alma cruel das barricadas!...
Misto de luz e lama!... se ele ria,
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono, se dava gargalhadas!...

Fanático da luz... porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas.
Armava, à noite, aos corações ciladas,
Batia o despotismo à luz do dia.

No seu cérebro tremente negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As idéias mais bravas e brilhantes.

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio.
Passou... deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes.
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ROBESPIERRE

Alma inquebrável — bravo sonhador
De um fim brilhante, de um poder ingente,
De seu cérebro audaz, a luz ardente
É que gerava a treva do Terror!

Embuçado num lívido fulgor
Su'alma colossal, cruel, potente,
Rompe as idades, lúgubre, tremente,
Cheia de glórias, maldições e dor!

Há muito que, soberba, ess'alma ardida
Afogou-se cruenta e destemida
— Num dilúvio de luz: Noventa e três...

Há muito já que emudeceu na história
Mas ainda hoje a sua atroz memória
É o pesadelo mais cruel dos reis!...
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COMPARAÇÃO

"Eu sou fraca e pequena..."
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:

Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto — é um mundo!
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AMOR ALGÉBRICO

Acabo de estudar — da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz — sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou — a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X.
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SAINT-JUST

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,
— Ao forte impulso das paixões audazes
Ardente o lábio de terríveis frases
E a luz do gênio em seu olhar fulgindo,

A tirania estremeceu nas bases,
De um rei na fronte ressumou, pungindo,
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesãos sequazes -

Uma alma nova ergueu-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança,
De um sono acordou, firme, o Direito -

E a Europa - o mundo -  mais que o mundo, a França -
Sentiu numa hora sob o verbo seu
As comoções que em séculos não sofreu!
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A FLOR DO CÁRCERE

Nascera ali — no limo viridente
Dos muros da prisão — como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola —
Aquela flor imaculada e olente...

E ele que fôra um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!...

E — ele — que sofre e para a dor existe —
Quantas vezes no peito o pranto estanca!..
Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!...
— Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma...
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RIMAS

Ontem — quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão — louca — suprema
E no teu lábio, essa rósea algema,
A minha vida — gélida — prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...

Hoje, que vivo desse amor ansioso
E és minha — és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!

E tremo e choro — pressentindo — forte,
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida — que é a morte...
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D. QUIXOTE

Assim à aldeia volta o da "triste figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcabouço dobrado — um grande desalento,
No entristecido olhar — uns laivos de loucura...

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões — e não se ficar louco!
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PÁGINA VAZIA

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora.

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse
Perguntaria: "Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Antonio Brás Constante (O Céu e o Inferno por Telefone)

No decorrer da história, o homem conseguiu desenvolver ideias maravilhosas, em contrapartida também concebeu outras horríveis. Entre a lista das coisas existentes que odiamos podemos citar: as propagandas políticas, as musiquinhas que os caminhões de gás tocam pelas ruas, a broca do dentista, e é claro: o telemarketing.

O telemarketing é um conceito de comerciais por telefone. Onde ligam para nós geralmente nos momentos em que tudo o que não gostaríamos de fazer era atendê-los. Testando nossa paciência. Pondo em cheque a nossa educação para com o próximo.

Acredito que existam pessoas que já estejam tão influenciadas pelas ligações diárias que vivem recebendo, que caso houvesse uma greve das operadoras de telemarketing, elas acabariam sofrendo uma espécie de crise de abstinência pela falta de suas ligações.

No primeiro dia estranhariam um pouco a calma em seu lar. No segundo dia, começariam a pensar no que teria ocorrido para não ligarem mais. Afinal, eles sempre lhes diziam que eram clientes especiais e de muita sorte, por terem sido escolhidos em meio a milhares de outras pessoas para possuir aquele produto.

Começariam a desconfiar que talvez seu poder econômico tivesse finalmente descido abaixo da linha que separa os possíveis clientes viáveis dos inviáveis. Ou pior, talvez eles soubessem de algo que a pessoa ainda não sabia sobre si mesma. A partir daí, passaria a imaginar teorias da conspiração. A desejar que o telefone tocasse para se desculpar por todos os “não” que já dissera. O telefone enfim toca, a pessoa corre para atendê-lo, e para seu desespero, a ligação era apenas a sua mãe dizendo que estava com saudades.

Pensa em ligar para alguma operadora de cartões e ver o que acontece. Para não parecer que está interessada em adquirir algo, quando atenderem pedirá uma pizza, como se tivesse ligado para o número errado.

Ao se ligar para uma operadora de telemarketing tem-se que ter em mente que ao lhe atenderem, farão uma pergunta que determinará se você será encaminhado ao céu ou ao inferno por telefone. Ou seja, vão lhe perguntar se quer comprar algo ou fazer alguma reclamação.

Caso escolha “comprar”, imediatamente cairá em um grupo de atendentes com vozes melodiosas e sensuais, que irão brigar entre si pela chance de poder atendê-lo. Elas sussurrarão palavras quase hipnóticas em seu ouvido. Para completar, um som de fundo cheio de mensagens subliminares, fará você se sentir à vontade para gastar todo seu dinheiro ali.

Porém, se resolver ir pelos caminhos das almas torturadas que buscam reclamar de algo, caíra em um calvário sem fim. Será jogado de um atendente para outro, todos parecendo o nosso presidente, dizendo que não sabem nada daquele assunto, e que irão encaminhá-lo para outro setor. Possivelmente você sofrerá longos minutos até a ligação cair, sem que seja atendido. Mas o mais provável é que acabe se irritando e desistindo da reclamação.

Enfim o telemarketing existe, para provar que o homem ainda pode ser o pior inimigo do próprio homem, mesmo que lhe diga por telefone que você é um cliente especial.

Fonte: O Autor

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Olivaldo Júnior (Pierrô)

Começaria o Carnaval sexta-feira, à noite, e só o daria por encerrado ao meio-dia da Quarta-Feira de Cinzas. 

Não tinha como dar errado. Moço ainda, pintou sua cara, vestiu-se à caráter e se fez um Pierrô. Aquela lágrima triste pintada em relevo. "Não, não sei se devo...". Deve. Pinta sua cara, amigo, e que a Colombina o queira! Colombina? Onde estaria ela? Num baile qualquer (no que ele estaria), num filme bem velho, nas ruas antigas, no tempo remoto da delicadeza. Onde o Chico para nos cantar uma marchinha? Não sei. Só sei que o moço sairia logo em busca da flor, da única rosa que o quer bem: a dele. Haveria mesmo essa tal de tampa da panela de que os mais velhos falavam? Hoje há mais tampa que panela, né? 

Bem, ele estava decidido. Vestiu-se todo para isso. Ei! A marchinha ao longe não me deixa mentir! Vai, "menino", vai para o seu sonho! Colombina está na esquina! Arlequim? Sai já de mim! Pega o seu lugar no bloco, desbloqueia a mente e tenha fé. "Quem é você / Adivinha se gosta de mim"... É o Chico, rapaz, vai lá! Que os mascarados sejam por você! Eu, daqui de cima, o vejo ir. Está bonito. Quisera eu ter seu porte alegre, seu compromisso com o próximo beijo, com a próxima lua em seus braços! Palhaço, não achei minha "mina", a Colombina, minha alma, e voo só. Boa sorte, amigo! A noite não é mais uma criança. É uma rua de esperança sob os pés de quem não dança: ama.

Fonte:
O Autor

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Contos do Oriente (O Homem que vendia fantasmas)

Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era um fantasma. 

- "Quem é você ?" perguntou por sua vez o fantasma. 

Tingpo mentiu e respondeu - "Eu também sou um fantasma." 

O fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou - "Estou a caminho para a cidade de Wanshih." 

- "Também vou para lá," afirmou a aparição. 

Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, o fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. 

- "Ótima ideia," achou Tingpo. 

O fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse: - "Você é pesado demais para um fantasma. Tem certeza de que é um fantasma mesmo?" 

Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar o fantasma, mas esse era tão leve que tinha a impressão de não estar carregando nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou ao companheiro qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. 

- "Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana", afirmou o fantasma. 

Assim foram andando, andando até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que o fantasma fosse adiante e observou que ele não fazia barulho algum ao nadar, mas quando ele entrou n’água, o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. 

Tingpo explicou novamente - "Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar a correnteza." 

No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar o fantasma nas costas apertando-o fortemente. O fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo o apertou com mais fôrça ainda. 

Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e o fantasma se transformou num bode. Tingpo cuspiu no animal a fim de que não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos dinheiros e foi para casa. 

Eis a razão do ditado de Shih Tsung: "Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos dinheiros.”

Fonte: 

Estante de Livros (Jorge Amado: Tieta do Agreste)

Tieta do Agreste, publicado em 1977, é uma das mais populares obras de Jorge Amado, autor baiano, que criou personagens sensuais engajando criticas politico-sociais sobre o cenário nacional e especial baiano, seja na capital baiana, Salvador, ou no interior do estados nos campos cacaueiros, exportando a cultura nacional, a partir daí considerado ”embaixador simbólico do Brasil”. Tieta tem um enredo divertido e envolvente.

escritor retoma a leitura crítica do regime de exceção governamental, em moda na América Latina, e, particularmente, no solo brasileiro. A história contada em Tieta do Agreste é vivida entre os anos de 1965 e 1966, como claramente expressam trechos textuais, reafirmando ser Amado um contador continuado de histórias datadas.

Antonieta Esteves Cantarelli, apelidada de Tieta, era pastora de cabras quando foi expulsa pelo seu pai e volta ao lar anos depois, em busca de redenção e justiça, para fazer as pazes com a família, incluindo Perpétua, sua irmã gananciosa e beata solteirona.

A chegada de Tieta na pequena cidade de Santana do Agreste vai gerar grande rebuliço, Tieta tem grandes pretensões: levar luz elétrica para a cidade, já que esta era considerável ”viúva” rica vinda de Sampa. No inicio da história Tieta não aparece, na verdade nem se sabe se ela está viva, a curiosidade dos parentes da família Esteves na pequena cidade é grande, como Tieta está? O que aconteceu? E como já não bastasse, uma indústria pretende se fixar na cidade.

Um dos temas fortes no livro é o meio-ambiente e desenvolvimento, em um certo momento da história a Brastânio, uma empresa de dióxido de titânio, ameaça se instalar nos arredores de Mangue Seco (praia próxima à cidade) e destruir os manguezais, a população se divide e discussões politicas começam, retratando as peculiaridades da politica nacional como um todo e em plena ditadura Jorge dá alfinetadas ao regimento militar. 

Existem na pequena comunidade duas facções: a dos que desejam o progresso na localidade, com a atração de turistas, pouco importando com as mudanças de crenças e comportamentos (sob o comando de Ascânio Trindade, responsável pela Prefeitura local), e a dos que preferem manter o lugar protegido, evitando a invasão de turistas com a seguida alteração de crenças e comportamentos (sob o comando do Comandante Dário). Inicialmente, dá-se a oposição de interesses, focada nas alterações na paisagem – a flora e a fauna – de Mangue Seco. A “luta” acontece sob a tutela da multinacional Brastânio, do lado da instalação da fábrica e do progresso turístico, com o apoio direto da Prefeitura; em oposição, os contrários a destruição ambiental, tendo, além do Comandante, dona Carmosina e seu “Areópago”. Do lado da Brastânio, estão em cena viagens, mulheres, farras, dinheiro, interesses políticos e a boa fé de Ascânio Trindade; do outro lado aparecem artigos de jornais, as leituras de dona Carmosina, o conservadorismo do Comandante Dário etc. De um lado, a falta de escrúpulo, a ganância, a usura; de outro lado, a defesa do interesse coletivo, a preservação da ecologia, o princípio igualitário da justiça.

O cotidiano da cidade é nostálgico para quem já morou em cidades interioranas: beatas, meninos travessos, prostitutas, políticos ferrenhos e uma pitada de interesse-na-vida-alheia, ou seja, fofocas, Tieta adicionada à vinda da indústria de titânio é um prato cheio para as línguas afiadas, com um adicional de meia-xícara de romance, romances proibidos, romances líbidos: sexo. As palavras nos livros de Jorge são escolhidas, amaciadas, dançantes, um dialeto que às vezes só se pode entender ao buscar no dicionário, ou para quem vive ou viveu no interior.

Antonieta criou um próprio personagem para a sua vida, viúva rica, enquanto na verdade é dona de um bordel, moral vs realidade, ela precisa desse disfarce para se aproximar de sua família, se adequando às commodities sociais para se encaixar ou sofrerá a irá de seu pai novamente, uma das criticas de Jorge quanto a auto-aceitação.

O ciclo narrativo das peripécias aventureiras da personagem central encerra-se com a volta às propostas do exórdio, inscrito no final do primeiro capítulo, quando o narrador supostamente dialoga com seu provável leitor, dando mostra da longa e constante produção que lhe aguarda, ambiguamente carnavalizada: “Agradecerei a quem me elucidar quando juntos chegarmos ao fim, à moral da história. Se moral houver, do que duvido”

Fontes:
http://www.torredevigilancia.com/resenha-tieta-do-agreste/
excertos de Benedito Veiga em http://www.filologia.org.br/ixcnlf/7/09.htm

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular)


A caixa que não tem tampa 
fica sempre destampada.
Dá-me um sorriso dos teus, 
porque não quero mais nada. 

Adivinhei o que pensas 
só por saber que não era 
qualquer das coisas imensas 
que a minh'alma sempre espera. 

A rosa que se não colhe 
nem por isso tem mais vida. 
Ninguém há que te não olhe 
que te não queira colhida. 

A terra é sem vida, e nada 
vive mais que o coração... 
E envolve-te a terra fria 
e a minha saudade não! 

Cantigas de portugueses 
são como barcos no mar — 
vão de uma alma para outra 
com riscos de naufragar. 

Deixa que um momento pense 
que ainda vives ao meu lado... 
Triste de quem por si mesmo 
precisa ser enganado! 

Depois do dia vem noite, 
depois da noite vem dia, 
e depois de ter saudades, 
vêm as saudades que havia. 

Dias são dias, e noites 
são noites e não dormi... 
Os dias a não te ver, 
as noites pensando em ti. 

Duas horas te esperei, 
dois anos te esperaria. 
Dize: – Devo esperar mais? 
Ou não vens porque inda é dia? 

Em vez da saia de chita 
tens uma saia melhor. 
De qualquer modo és bonita, 
e o bonita é o pior. 

Entreguei-te o coração, 
e que tratos tu lhe deste! 
É talvez por 'star estragado 
que ainda não mo devolveste ... 

Eu tenho um colar de pérolas 
enfiado para te dar: 
– As per'las são os meus beijos, 
o fio é o meu penar. 

Fomos passear na quinta, 
fomos à quinta em passeio. 
Não há nada que eu não sinta 
que me não faça um enleio. 

Levas chinelas que batem 
no chão com o calcanhar. 
Antes quero que me matem 
que ouvir esse som parar. 

Levas uma rosa ao peito 
e tens um andar que é teu... 
Antes tivesses o jeito 
de amar alguém, que sou eu. 

Morto, hei de estar ao teu lado 
sem o sentir nem saber... 
Mesmo assim, isso me basta 
p'ra ver um bem em morrer. 

Não digas mal de ninguém 
que é de ti que dizes mal. 
Quando dizes mal de alguém 
tudo no mundo é igual. 

Não sei se a alma no Além vive... 
Morreste!  E eu quero morrer! 
Se vive, ver-te-ei; se não, 
só assim te posso esquecer. 

No baile em que dançam todos 
alguém fica sem dançar. 
Melhor é não ir ao baile 
do que estar lá sem lá estar. 

Nunca dizes se gostaste 
daquilo que te calei. 
Sei bem que o adivinhaste. 
O que pensaste não sei. 

Ó minha menina loura, 
Ó minha loura menina, 
dize a quem te vê agora 
que já foste pequenina ... 

Ouvi-te cantar de dia. 
de noite te ouvi cantar. 
Ai de mim, se é de alegria! 
Ai de mim, se é de penar! 

Por um púcaro de barro 
bebe-se a água mais fria. 
Quem tem tristezas não dorme, 
vela para ter alegria. 

Quando é o tempo do trigo 
é o tempo de trigar, 
a verdade é um postigo 
a que ninguém vem falar. 

Quando olhaste para trás, 
não supus que era por mim. 
Mas sempre olhaste, e isso faz 
que fosse melhor assim. 

Se ontem à tua porta 
mais triste o vento passou — 
Olha: – levava um suspiro... 
Bem sabes quem to mandou... 

Tenho um relógio parado 
por onde sempre me guio. 
O relógio é emprestado 
e tem as horas a fio. 

Tens uma rosa na mão. 
Não sei se é para me dar. 
As rosas que tens na cara, 
essas sabes tu guardar. 

Tens um livro que não lês, 
tens uma flor que desfolhas; 
tens um coração aos pés 
e para ele não olhas. 

Teus brincos dançam se voltas 
a cabeça a perguntar. 
São como andorinhas soltas 
que inda não sabem voar. 

Teus olhos tristes, parados, 
coisa nenhuma a fitar... 
Ah, meu amor, meu amor, 
se eu fora nenhum lugar! 

Tive uma flor para dar 
a quem não ousei dizer 
que lhe queria falar, 
e a flor teve que morrer. 

Toda a noite ouvi no tanque 
a pouca água a pingar. 
Toda a noite ouvi na alma 
que não me podes amar. 

Trazes a rosa na mão 
e colheste-a distraída... 
E que é do meu coração 
que colheste mais sabida? 

Vai alta a nuvem que passa. 
Vai alto o meu pensamento 
que é escravo da tua graça 
como a nuvem o é do vento. 

Vale a pena ser discreto? 
Não sei bem se vale a pena. 
O melhor é estar quieto 
e ter a cara serena.

Antonio Brás Constante (A Armadilha)


   Fim de tarde. Sua namorada lhe convida para passearem juntos. Como é bom namorar. Você caminhando de mãos dadas com seu amor. A cabeça flutuando longe, imaginando uma parada em algum barzinho com sua amada para desfrutarem de um delicioso sorvete, ou quem sabe um chope geladinho. De repente sente a mão dela apertar mais forte a sua, puxando-o, ou melhor, arrastando-o para dentro de uma loja.

     Então era isto. Uma armadilha. Bem que você desconfiou que havia algo errado, quando sugeriu que entrassem em uma lancheria há alguns instantes atrás e ela fez que não lhe escutou. Agora você se encontra ali, no meio de uma infinidade de roupas, parecendo uma ilha perdida. Rodeado de “panos” por todos os lados.

     Nessas horas sentimos uma certa fragilidade em nossos bolsos. Um calafrio que percorre a espinha indo parar dentro de nossa carteira, que fica acuada entre todos aqueles preços, códigos de barras e placas de ofertas.

     Antes mesmo que se recupere do trauma inicial, sua companheira se aproxima de você. Umas três peças de roupa quase idênticas nas mãos. Mudando no máximo a nuance de cores entre tons pasteis e pastosos. Ela lhe olha com um olhar doce e pergunta se a primeira peça combina com uma das sandálias dela.

      Você procurando ser prático responde “aham”. Tem-se que ter muito cuidado ao se responder sobre algo a uma mulher que faz compras. Deve-se evitar polêmicas desnecessárias que fatalmente tornariam sua permanência ali ainda mais demorada e em muitos casos poderiam abalar a harmonia entre os dois.

      A melhor resposta nesses momentos delicados é um sonoro “aham”. Ela continua lhe mostrando roupas e mais roupas, e você se mantendo firme em suas afirmações, continua emitindo o seu bom e velho “aham”.

      Lá pelo décimo “aham” ela estoura. As mulheres são mesmo imprevisíveis. Você o tempo todo tentando ser gentil, concordando com ela e agora tem uma fera indomável na sua frente. Vociferando coisas sobre insensibilidade e incompreensão.

      A raiva logo dá lugar a um choro abafado e triste. Um beicinho de quem teve o coração partido. Tudo muito rápido e intenso. Fazendo-o derreter em remorsos e culpa.

Seguem em silêncio para o caixa. Ela não tem mais dúvidas sobre quais peças levar, pois está com todas elas nas mãos. Você seguindo atrás. Carteira na mão, tentando lembrar a senha do cartão.

       Por fim, seguem os pombinhos felizes para uma praça de alimentação. Ela com o rostinho cintilando de felicidade e você imaginando que no próximo carnaval sairá vestido em uma fantasia que lhe cairá como uma luva. Irá vestido de palhaço.

Fonte: O Autor

Paleta de Versos n. 3

Isabel Furini
(Curitiba/PR)

CABEÇAS DE RELÓGIOS MOLES
(de “Os Relógios de Dali”)

De repente surge uma ideia nas cabeças
(ocas)
de fugir da solidão
do vazio
dos medos criados pela civilização
fazendo selfie
(o celular é a nova magia)

logo é só postar nas redes sociais
(e se for possível nos jornais virtuais
nas portas dos shoppings
nos cartazes dos teatros
ou cinzelar nas estrelas próximas)

deixar as perdas e o amor e a saudade
no mar da Catalunha
e ser fiel às ideias de felicidade
ser fiel ao carrossel do mundo
essa é uma obsessão
(como os passos agitados
que fazem ranger
as tábuas do piso
e da escada de madeira)

ser feliz 24 horas por dia!
ser feliz sem pausa e sem monotonia

nossa civilização de faz de conta
está se derretendo como um relógio mole
nossa civilização
alimenta-se de estranhas utopias
enquanto é devorada pelas formigas
do medo e da obsessão.
_____________________

Ubiratan Lustosa
(Curitiba/PR)

FOLIA

Quis brincar no carnaval,
mas não tinha fantasia,
mesmo assim foi pra folia
e festou a se esbaldar.
Mostrou que pra ser igual
aos que dizem ser felizes
basta esconder cicatrizes
e pular, sorrir, cantar.
________________________

MIFORI
(São José dos Campos/SP)

Pantum:
APRENDER COM O SILÊNCIO 

Olhe suas qualidades,
respeitando a sua vida,
a viver em sociedade,
esse silêncio o convida...

Respeitando a sua vida,
saber ouvir e calar,
esse silêncio o convida:
é preciso meditar!

Saber ouvir e calar,
num silêncio poderoso
é preciso meditar:
o viver é prazeroso!

Num silêncio poderoso
surge a voz da consciência;
o viver é prazeroso
se houver amor e decência.

Surge a voz da consciência
mostra todas as verdades, 
se houver amor e decência, 
olhe suas qualidades.
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Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

ESPER...ÂNSIAS

Ela desenha uma letra... a mão pesa...
o lápis fura a folha lisa do caderno;
a professora a incentiva, o jeito terno
flui no silêncio com a pureza de uma reza.

Ela se esmera, o resultado é perfeito
e apesar de não ter tanta habilidade
com as palavras, é tanta felicidade
no seu olhar, que ela até sorri... sem jeito.

O mal de parkinson inibe o traço certo,
mas ela insiste, pressiona, comprimindo
a trajetória da palavra, no deserto
da folha em branco que o amor vai imprimindo.

Quando, afinal, a visão fraca está cansada,
ela repousa mansamente e descansa.
Na folha branca, uma palavra está grafada
trêmula, forte e poderosa: e s p e r a n ç a.
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Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)

VERSEJANDO

As palavras me faltam e, sem dizê-las,
A mudez verbaliza o sentimento
Tal a folha já morta entregue ao vento
Tal o céu tão escuro sem estrelas.
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Rubens Jardim
(São Paulo/SP)

O POEMA DO AVESSO

O que há em mim
é a lenta preparação
do que há em ti
sombra segada
sangrada 
e sagrada
até nos olhos dos meninos
que nasceram sem olhos

vidência única
(vide o verso)

visão múltipla
(vede o anverso)

e tudo que está
do outro lado 
do espelho.
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Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

EM DIAS DE SOL E CALOR, EM NOITES DE TEMPESTADE E FRIO 
Para Victória Butler Rodríguez e 
Mari Gomes 

Em dias de sol e calor 
Minha alma serena 
Passeia livremente 
Pela charneca em flor 

Nesses dias de extrema felicidade 
Eu tenho sentimentos bons 
Eu tenho pensamentos probos 
Eu sou uma pessoa feliz 

Minha alma leve 
Navega serenamente 
Pelo mar da tranquilidade 
A brisa matinal oceânica 
Faina o meu negro cabelo 
E beija o meu rosto hialino 
Eu sou feliz 

Em dias de sol e calor 
Minha jovem alma aventureira 
Não conhece mais limites 
Percorre o mundo livremente 
Encontra e abraça a vida 
Aceita o convite dela 
Para um eviterno bailar 
Eu encontrei a felicidade 
Eu sou uma pessoa feliz 

Em noites de tempestade 
E de muito frio 
Minha cansada e sôfrega alma 
Voa perdidamente 
Pela negra noite sem fim 

Em noites de tempestade e frio 
Vagueio solitária e languidamente 
Pelo mítico vergel da solidão 
Choro e sofro 
Todas as dores do mundo 
Pelo amor que se foi 
Por tudo que não veio 
E por tudo que nunca virá 

Em noites 
De fortes ventos intempestivos 
E glaciais 
Minha alma diáfana 
Percorre o deserto dentro de mim 

Na alvorada 
No dilúculo de um novo dia 
A minha crença 
De tê-lo ao meu lado 
Esvaece por fim 

Na aurora de um novo dia 
Vivo sem esperanças alguma 
De viver dias melhores 
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Nei Garcez
(Curitiba/PR)

"Dentro e fora" do Universo, 
em que, aqui, tudo é infinito, 
um só Deus é tão diverso 
sobre tudo... Tenho dito!
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Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú/SC)

BARULHOS

No barulho das ruas
algumas horas
de paz e recolhimento

não há música no ar
nem palavra a ser dita

No barulho das casas
alguns minutos
de repouso e acolhimento

não há discurso
nem a fala do ator

no barulho em geral
instante em que o silêncio
aprofunda o gosto

não há como rasgar a folha
nem recitar a prece.
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João Batista Xavier Oliveira
(Bauru/SP)

O CAMINHO DA ROSA

Se cada um fizer a sua parte
não sobra parte para repartir;
não sobra aparte que preocupe a arte...
mundo destarte só resta sorrir.

Se cada um plantar uma roseira
a vila inteira será um jardim;
não sobra beira à espinhosa asneira...
dessa maneira é sorriso sem fim.

Se cada um olhar-se na verdade
fraternidade romperá vereda;
o pensamento terá mais espaço

e minha parte será rosa e há de
ser a verdade daquele que ceda
do seu caminho todo seu abraço!
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Olivaldo Júnior
(Mogi-Guaçu/SP)

EU MESMO

Pois é,
era uma vez
eu mesmo.

Eu mesmo,
que vou e que venho,
que risco e desenho,
que tenho e mantenho
esta (in)certa
dis - tân - cia.

Pois é,
era uma vez
distância.

Grades feitas de dor,
cola e muito isopor,
tudo que é anti-flor,
anti-sonho, anti-amor.

Pois é, 
era uma vez
o amor.

O amor 
que eu chamo e reclamo,
que eu amo e proclamo
o senhor
de mim mesmo.

Pois é,
era uma vez
eu:
uma vez
eu mesmo.