sábado, 4 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 20: Nydia Iaggi Martins

 


Mia Couto (Bartolominha e o pelicano)

Vivia em ilha com muito vento, onde mais ninguém havia. Chamava se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel atividade. Esqueceram-se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.

De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.

A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa idosa parente. Quem muito chorava era minha mãe, sua dileta filha. Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?

Desembarcamos com o peito enrodilhado, olhando com medo os recantos do sítio. Suspiramos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana*, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falamos em sair dali, ela se contrafez. Minai, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão desprovido de gente. Meu tio falou que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.

Bartolominha respondeu, sem palavras, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhamos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:

— Quem lhe arranja sustento?

Nos mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se alimentar.

—Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagrecer este farol.

Regressamos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento remoendo-me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.

E voltei a visitar a ilha. Demorei-me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.

—Só quero viajar quando for completamente cega.

Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:

—É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.

Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.

Nessa noite, jantamos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava-se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.

— Uma dessas tardes vou com ele, por esse mundo a fora.

Deitei-me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um teto. Deixei-me adormecer, mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer-me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha profundidade nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um muito volumoso bico.

O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.
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* Capulana é o nome que se dá, no Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para cingir o corpo, e por vezes a cabeça, fazendo também de saia, podendo ainda cobrir o tronco, o seu uso também vai muito além da moda: o tecido é usado pelas mulheres para carregar os seus filhos nas costas, para carregar trouxas, para inúmeras funções, como toalha, cortina, pano de mesa, etc (wikipedia)
Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 7 –

51.
0 uso inteligente do Discurso Direto, isto é, de um DIÁLOGO em que se reproduzem as frases exatamente como foram ditas, é um excelente recurso para valorizar a agilidade da comunicação e aumentar o efeito humorístico nas trovas desta modalidade.

Vejamos, nas trovas abaixo, premiadas em Nova Friburgo, como este recurso foi extremamente positivo para o resultado final obtido, ou seja, fazer rir.

- Me empresta cem? - Nem por alto!
- Vinte! - Eu já disse: Não tem!
- PASSE A GRANA: isto é um assalto!
- OK, eu te empresto os cem!

José Ouverney

Ao chegar à grande estreia:
— A senha para ingressar?!
— Não faço a menor ideia!
— Isso mesmo, pode entrar!

Renata Paccola


52.
O ACHADO é aquele "algo diferente", aquela ideia inusitada, aquele recurso linguístico especial que faz com que a trova valha a pena ter sido escrita. 0 ACHADO pode estar, por exemplo, num jogo de palavras, numa abordagem criativa do tema, na forma de colocar as ideias, fugindo do lugar comum

Nesta primorosa trova do mestre Izo Goldman a beleza do achado está na inteligente manipulação das variantes semânticas do vocábulo "pena", formando um jogo de palavras bem interessante.

Que pena que as minhas penas
não te causem pena alguma,
e, sem pena, eu seja apenas,
entre as penas... só mais uma!

Izo Goldman

53.
A finalidade precípua da trova de humor é fazer rir. No entanto, seu conteúdo deve ser trabalhado com o mesmo esmero que dedicamos a qualquer outra modalidade. Assim, um trabalho meticuloso na sintaxe das frases, coloca a trova humorística em pé de igualdade com líricas ou filosóficas.

Reparem como, na construção do 2° verso desta primorosa trova, o emprego da palavra "Amor" como vocativo (entre vírgulas) possibilitou, na flexão verbal de 2a. pessoa, uma rima rica para "primas", ficando também destacado o excelente achado humorístico: "vigia da fechadura", no 3o. verso.

Uma outra curiosidade na construção desta trova é que ela começa liricamente nos dois primeiros versos, mudando o tom para o desfecho humorístico a partir do 3o. verso.

Eu era, na infância dura
Quando, Amor, tudo sublimas,
vigia da fechadura
do quarto das minhas primas.

Sérgio Fonseca

54.
0 que distingue um texto literário de um texto meramente informativo é que o texto literário privilegia o uso da linguagem figurada e imagens cuja finalidade é criar emoção e beleza estética. Nos dois casos as palavras são as mesmas disponíveis no vocabulário comum da língua, mas o seu emprego no texto literário deve ser assim: diferente, inusitado, metafórico.

Uma trova, para ser literária, precisa conter algo novo, criado pela sensibilidade do trovador a partir da imaginação ou da observação da realidade.

Reparem na trova abaixo, como o ruído ritmado de um trem em movimento e o desenho simétrico dos dormentes (como as teclas de um piano) na ferrovia geraram uma belíssima imagem, constituindo um verdadeiro achado poético.

Tu chegavas... e eu ouvia
o trem, em tons comoventes,
tocar canções de alegria
no teclado dos dormentes...

Marina Bruna

Fernando Sabino (A vinda do filho)

José conhecia bem o caminho: mesmo na escuridão subiu o morro com facilidade, as pernas ágeis galgando a trilha estreita e tortuosa. Nem chegou a entrar no barraco — da porta mesmo chamou a mulher:

— Vamos, Maria, tá na hora.

A negra, que já o esperava, agarrou a trouxa, apagou o lampião e se juntou a ele.

— Eu trouxe o que pude — informou, como a se desculpar.

Foram descendo a ladeira, ele na frente, ela um pouco atrás, penosamente. O ventre enorme lhe dificultava os movimentos. Em pouco arfava, detendo-se a cada instante:

— Não posso mais.

— Vamos mulher! — ele insistia: — A batida começa duma hora pra outra.

— Pra onde a gente vai?

Ela não esperava obter resposta. Sabia já o que para ela ia começar de uma hora para outra.

Ele só se deteve quando chegou ao nível da rua. Ficou olhando de um lado para outro, indeciso. A luz do poste na esquina iluminava seu rosto carregado de preocupação. Era um crioulo forte e desempenado, ainda jovem, mas o momento de emoção que vivia o tornava mais velho.

— Não sei: por aí. — respondeu inesperadamente, e pôs-se a caminhar.

Ela o seguiu, submissa. Sentia já as primeiras dores. Para aumentar sua aflição, começou a chover.

— Para onde nós vamos? — ela perguntou novamente, desta vez com decisão:

— Melhor a gente voltar...

— Voltar? Você está ficando doida? — e ele parou, irritado, de novo olhando ao redor.

De novo foram caminhando, agora sob a chuva cada vez mais forte. Logo se viram diante da imensa armação de cimento do viaduto em construção.

— Ali! — apontou ele com decisão.

Chegaram a sorrir quando, molhados e ofegantes, se viram já ao abrigo da chuva, agachados naquela espécie de nicho, sob o viaduto, entre pedaços de tábua e montes de entulho.

— Eu tenho dinheiro aqui. — disse ele apalpando o bolso: — O doutor me pagou hoje o conserto naquele armário.

— Que é que adianta? — ela resmungou, num gemido, já sentada no chão, pernas estendidas, mãos sobre o ventre. — A gente tem de se esconder.

— Vão prender todo mundo. — ele retrucou.

— Que culpa que a gente tem?

— Nenhuma.

Carrancudo, ele parecia ter dado o assunto por encerrado. Ficaram calados algum tempo, dispostos a passar a noite ali. Ela aos poucos começou a contar, em meias palavras, o sonho que tivera na noite anterior: um homem estranho lhe dizia que seu filho ia ser muito importante e que ia nascer na noite de Natal, era para ela botar nele o nome de Jesus. Ele ouvia espantado, tanto mais que, descobria agora, estavam na noite de Natal. Ela ia contando o que o homem dissera.

(O homem só não dissera que um dia o filho ia morrer, não numa cruz, mas crivado de balas numa estrada do Estado do Rio, liquidado pelo Esquadrão da Morte.)

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Adega de Versos 60: Kerlle de Magalhães (Arcoverde/PE)

 

Sammis Reachers (Perseguição perigosa)

Este mesmo motorista, o nosso querido Paulo Paixão, em anos anteriores havia sido cobrador na empresa Fagundes, tendo depois passado para a manobra (a escolinha de motoristas dentro das garagens).

Uma bela tarde, lá vai Paulo para o município de Itaboraí, levando um carro desde a garagem da empresa, que ficava no bairro Laranjal, em São Gonçalo. Após deixar o veículo no destino, Paulo dirigiu-se tranquilamente ao ponto de ônibus para pegar uma viação e voltar para a garagem. Era de tardinha, por volta das três e pouco da tarde.

De repente para ou ancora no ponto, dando uma grande freada, um veículo da empresa Maravilha, lotado até gargalo. Imediatamente, nosso amigo Paulo escutou um grande estouro, parecido com um tiro. E na verdade era mesmo um tiro! As portas do ônibus se abriram, e muitos passageiros saltaram à toda, desesperados.

Todos já engataram a correr, assustados com o que quer que tinha acontecido dentro do ônibus.

O primeiro a descer foi um 'coroa', um idoso aparentando seus sessenta anos.

Paulo, não sabendo o que ocorrera, mas entendendo que coisa boa não fora, resolveu não pagar pra ver e imediatamente pôs-se a correr, acompanhando de perto o tal coroa, e sem olhar pra trás!

À certa altura, um carro encostou numa rua à frente, na direção para onde ambos corriam. O coroa imediatamente entrou no carro, que saiu à toda, cantando pneus.

Paulo, esbaforido, imaginou então que alguma coisa estava errada. Tinha que estar. Olhando para outros que corriam logo atrás dele, perguntou;

- Mas afinal o que houve lá?

Ao que um dos corredores, assustado, respondeu:

- Foi um assalto dentro do ônibus! O cara roubou a bolsa de uma senhora e ainda por cima atirou nela! E aquele coroa com quem você corria era o ladrão! Vocês estavam correndo tão próximos que pensei que você estivesse com ele...

Imagine se o velho ladrão, armado com um belo trabuco, pensasse que o pacato Paulo o estava perseguindo.

Escapou por pouco, o inocente!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (O Lobisomem)

Carolina Ramos 
 
Lobisomem
(Folclore Universal)

Meia noite... sexta-feira...
- Cruiz-credo!... Yaiá escuitô?!
Lá pras banda da portêra,
foi lobisome... que uivô!

- Lobisome, Benedita?!
Yaiá senta alvoroçada
no leito... e a Dita se irrita:
- Tão tarde!... E Yaiá acordada?!

' Calminha... amanhã desconto!...
- Antes do cuco acusar
que são dez horas em ponto,
ninguém venha me acordar!...

- E agora, me conte a história,
meu sono já está no fim...
- Bem... si nun faia a memória,
as coisa cumeça anssim:

Sete fio encarrerado,
mêmo que tenha bom nome,
Ninguém foge do ditado:
- o caçula... é lobisome!

– E... em noite de lua, quando
é sexta-fera, minina,
ôio de brasa... escumando,
num grande cão se acumbina!

- Peludo... as presa arreganha,
assustando bicho e gente!
- E mata... tudo qui apanha...
guardando as sobra nos dente!

- Di manhã... ôtra veiz home,
esquece o que assucedeu
...e, inocente, se consome,
pranteando arguém qui morreu!

- Os home... são sempre os mêmo!
- São mau... sem sabe pruquêl
- Santinhos pur fora... e demo
pur drento! - saiba vancê!

- Pur isso... muita cautela...
num querdite neles, não!...
- Mêmo qui a muié... costela
seje desse tar de Adão!

- Dum hôme se adiscunfia...
tenha inté cara di bôbo...
pois, se alembre, minha fia:
- num zás-trás... si vira in lobo!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O LOBISOMEM

Lobisomem ou licantropo é um ser lendário que é descrito como um humano capaz de se transformar em lobo ou em algo semelhante a um lobo em noites de lua cheia.

Tais lendas são muito antigas e encontram a sua raiz na mitologia grega. Segundo As Metamorfoses de Ovídio, Licaão, o rei da Arcádia, serviu a carne de Árcade a Zeus e este, como castigo, transformou-o em lobo. Uma das personagens mais famosas foi o pugilista arcádio Damarco Parrásio, herói olímpico que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus.

Segundo lendas mais modernas, para matar um lobisomem é preciso acertá-lo com artefatos feitos de prata.

Variantes culturais

O Licantropo dos gregos é o mesmo que o Versipélio dos romanos, o Volkodlák dos eslavos, o Werewolf ou Dracopyre dos saxões, o Werwolf dos alemães, o Óboroten dos russos, o Hamtammr dos nórdicos, o Loup-garou dos franceses, o Lobisomem dos brasileiros e da América Central e do Sul, com suas modificações fáceis de Lubiszon, Lobisomem, Lubishome; Luison, pelas tribos guaranis, nas lendas destes povos, trata-se sempre da crença na metamorfose humana em lobo, por um castigo divino.

Lenda brasileira

No Brasil existem muitas versões dessa lenda, variando de acordo com a região. Uma versão diz que a sétima criança em uma sequência de filhos do mesmo sexo tornar-se-á um lobisomem. Outra versão diz o mesmo de um menino nascido após uma sucessão de sete mulheres. Outra, ainda, diz que o oitavo filho se tornará a fera. Outra já diz que é após a morte de um familiar que possuía a aberração e passou de pai para filho, avô para neto e assim por diante.

As pessoas conhecem o licantropo na forma humana através de comportamentos estranhos, como mudança de comportamento, misteriosa e quase sempre com olhos cansados (olheira), o licantropo na forma humana é uma pessoa muito atenta as outras, sempre desconfiando de tudo como por exemplo, tem muito medo de ser descoberta a humanidade que é uma aberração, porém é muito protetora em forma humana.

Em algumas regiões, o Lobisomem se transforma à meia noite de sexta-feira, em uma encruzilhada. Como o nome diz, é metade lobo, metade homem. Depois de transformado, sai à noite procurando sangue, matando ferozmente tudo que se move. Antes do amanhecer, ele procura a mesma encruzilhada para voltar a ser homem.

Em algumas localidades diz-se que eles têm preferência por bebês não batizados. O que faz com que as famílias batizem suas crianças o mais rápido possível. Já em outras diz-se que ele se transforma se espojando onde um jumento se espojou e dizendo algumas palavras do livro de São Cipriano e assim podendo sair transformado comendo porcarias até que quase se amanheça retornando ao local em que se transformou para voltar a ser homem novamente.

No interior do estado de Rondônia, o lobisomem após se transformar, tem de atravessar correndo sete cemitérios até o amanhecer para voltar a ser humano. Caso contrário ficará em forma de besta até a morte.

O escritor brasileiro João Simões Lopes Neto escreveu assim sobre o lobisomem: "Diziam que eram homens que havendo tido relações impuras com as suas comadres, emagreciam; todas as sextas-feiras, alta noite, saíam de suas casas transformados em cachorro ou em porco, e mordiam as pessoas que a tais desoras encontravam; estas, por sua vez, ficavam sujeitas a transformarem-se em Lobisomens…"

Há também quem diga que um oitavo filho que tem sete irmãs mais velhas se torna lobisomem ao completar treze anos. Também dizem que o sétimo filho de um sétimo filho se tornará um lobisomem.

Outra versão porém relata que aquele que é amaldiçoado precisa se espojar nu em um local onde um animal (geralmente jumento) se espojou, enquanto recita palavras do livro de São Cipriano ou reza o credo ao avesso três vezes.

A lenda do lobisomem é muito conhecida no folclore brasileiro, e assim como em todo o mundo, os lobisomens são temidos por quem acredita em sua lenda. Algumas pessoas dizem que além da prata o fogo também pode matar um lobisomem. Outras acreditam que eles se transformam totalmente em lobos e não metade lobo metade homem.

Algumas lendas também dizem que se um ser humano for mordido por um lobisomem, e não encontrar a cura até a 12ª badalada desse mesmo dia, ficará lobisomem para toda a eternidade.

Lenda portuguesa

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no Rifão de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

    Sois danado lobisomem,
    Primo d’Isac nafú;
    Sois por quem disse Jesus
    Preza-me ter feito homem.
(Garcia de Resende, Excertos, por António Feliciano de Castilho, Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1865, p. 24).

É também mencionado no Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau (tomo V, p. 195) e nos sonetos de Bocage:

Profanador do Aónio santuário,
Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,
Até findar no Inferno o teu fadário!
(Bocage, Obras Escolhidas, primeiro volume, p.122).

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu assim sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

"Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma teimosia mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência". (A. Herculano, Opúsculos, Tomo IX).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo português Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

A representação na figura híbrida de homem e lobo não é alheia ao desassossego que este animal provoca, desde tempos imemoriais, no inconsciente coletivo. Escreve este autor: “As comunidades rurais transmontanas ainda hoje o encaram como um animal cruel, implacável com os seres mais indefesos, inimigo de pastores, dos caminhantes da noite e pesadelo permanente das crianças que habitam nas aldeias mais isoladas. Não se estranha, por isso, que no fabulário popular o lobo apareça como símbolo do mal e que o conceito de lobisomem, enquanto produto da fantasia popular, possa ser considerado como uma tentativa de apresentar uma criatura onde se conjuga a ferocidade maléfica do lobo com as emoções, ora angustiosas, ora igualmente maléficas, do homem”.

PEEIRA

Peeira ou fada dos lobos é o nome que se dá às jovens que se tornam nas guardadoras ou companheiras de lobos. Elas são a versão feminina do lobisomem e fazem parte das lendas de Portugal e da Galiza. A peeira tem o dom de comunicar e controlar alcateias de lobos.

Um extenso relato sobre o lobisomem fêmea português encontra-se nas Travels in Portugal de John Latouche. Camilo Castelo Branco escreveu nos Mistérios de Lisboa: "A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.

CORRILÁRIO

Os corrilários são as almas penadas em figura de cão. Se um lobisomem morre antes de terminar o seu fadário, depois de morto termina os seus dias como corrilário.

Fontes:
– Poema:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.
– Sobre o Lobisomem: Wikipedia

Júlia Lopes de Almeida (O último discurso)

A Coelho Netto


Dr. Paula Guedes, muito velhinho, sumido entre os almofadões do seu grande leito de peroba, com os pés aquecidos por uma botija de água quente, a camisola de flanela bem abotoada no pescoço, delgado e rugoso como um galhinho seco; as mãos mirradas sobre a colcha de lã, a fronte já tocada de uns tons da amarelidão cadavérica, os lábios murchos sob o musgo branco do bigode queimado, as pálpebras descaídas, mal ouviu a neta dizer-lhe que havia ali um ofício dirigido a ele, sentiu logo um calorzinho entrar-lhe na alma fria.

Ainda não tinham esquecido!...

E, com um fio de voz fragilíssimo, reclamou logo:

– Os meus óculos!

Postos os óculos, disse radiante:

– É do Instituto! E apalpava o papel grosso onde o dístico daquela corporação aparecia em letrinhas negras.

A neta, em pé ao lado da cama, observava-lhe com espanto a mudança da fisionomia. As pálpebras até então fechadas numa sonolência que parecia o ensaio para o grande sono, levantavam-se agora, deixando que das pupilas, há pouco amortecidas, saíssem novos lampejos, como mosquinhas loiras bailando no ar.

– Hum... hum! é do Instituto... ainda não me esqueceram... sempre faço alguma falta.

Todo o corpo do doente se movia sob a grande colcha felpuda, onde não faria menos volume o esqueleto de um menino de dez anos.

A neta ofereceu-se para a leitura.

– Não; depois! espera... corre a cortina... a luz está má.

– Assim?

– Assim.

A leitura começada foi logo interrompida.

– Hum!... hum!... abre a janela.

– Vovô, vamos ter chuva; há tanta umidade que nem parece uma manhã de verão.

– Não faz mal, abre a janela.

– Mas... vovô!

O Dr. Paula Guedes, que tomara na véspera os sacramentos, como bom católico apostólico romano, todo purificado pela absolvição, rompendo a inércia dos seus oitenta e três anos e daquela doença que o fazia tiritar de frio em pleno fevereiro, gritou em um falsete irado:

– Abre a janela!

A janela abriu-se. A araucária e os pés de camélia plantados perto de casa gotejavam orvalho; para além nada se via: tudo era branco.

– Aqui na Tijuca estes nevoeiros de verão prognosticam dias formosos, disse o doutor com um sorriso, desdobrando o ofício.

Era um convite. Pediam-lhe que fosse ele o orador na grande solenidade que o Instituto realizaria daí a um mês em homenagem ao tricentenário de Anchieta.

Então é que o enxame das mosquinhas de ouro torvelinhou doidejante. Meu Deus! o Instituto, o centro das grandes capacidades do país, dos nomes mais respeitados e queridos do império e da república, aquele ninho de inteligências perfeitamente dirigidas, de ministros, conselheiros, marechais, historiadores e grandes homens de letras, precisava dele, do apoio da sua voz, do fulgor da sua ilustração? Que honra, que doce consolo aquele que lhe ia bater à porta nas últimas horas da sua vida, exatamente quando ele curtia a amargura de pensar que tinham há muito posto sobre o seu nome uma pedra ainda mais pesada do que a outra que botariam em breve sobre o seu corpo!

Alvoroçado releu o ofício, passou-o à neta, ouviu-o ler de novo; mandou chamar a família inteira, comunicou-lhe o sucesso, com ar rejuvenescido, contente.

Ele faria por aceder ao convite!

Opuseram-se todos. Seria a sua ruína; que dormisse descansado, sem atormentar a imaginação. Que se lembrasse dos conselhos do médico... e que mais isto e que mais aquilo...

Falassem pra ali! Ele já nada ouvia. Escorregou nos seus travesseiros, fincou o olhar na cúpula do cortinado, e nem mais palavra. Fecharam a janela, aconchegaram-lhe ao corpo mirrado as dobras da colcha, cerraram o cortinado e – chut*! – saíram em bicos de pés.

No seu grande leito, o Dr. Paula Guedes, muito branquinho e engelhado, de mãos postas, tal e qual como na véspera, quando a Visita de Deus entrara no seu quarto, via desfilar o cortejo extraordinário dos grandes vultos da história.

Galeras a todo o pano singravam as ondas aniladas com rumo às terras formosas em que soavam a língua dos Tupis e a língua dos Guaranis.

O espírito do velho Dr. Guedes lá se remontou a 1553, sorrindo ao vulto pálido e severo do moço Anchieta, acompanhando-o pelas selvas negras e as montanhas pedregosas, vendo-o escrever os seus versículos sacros e arrebanhar crianças para as procissões.

Começou então a pensar na construção do seu discurso. Dividi--lo-ia em grandes períodos, com toda a sua minúcia e caturrice acadêmica; deveria ser uma peça substanciosa, por vezes anedótica, mas sempre elevada. O seu maior empenho era o de fazer este discurso mais brilhante que todos os outros que tinha deixado atrás de si, espalhados pelas salas, pelas revistas e pelos arquivos. A palavra entontecia-o, arrastava-lhe o pensamento na sua torrente macia, onde as ideias lampejavam como faúlhas imorredouras.

O orador começava a achar intolerável a demora no leito. Veio-lhe a saudade das suas estantes, do conforto da sua biblioteca, da comodidade da larga secretária, tão afeita ao peso do seu braço amigo.

Já não sentia frio, já não lhe doíam os membros lassos, quase inertes; aquele convite do Instituto fora a providência; trouxera-lhe um pouco de mocidade; era uma ressurreição!

Oh! o Instituto não se esquecera... estava tranquilo: deixava um nome, faria falta!

Trouxeram-lhe leite; bebeu-o de um trago e reclamou papel e lápis. Houve rumor em casa. Consultaram-se uns aos outros. Dariam o lápis? Dariam o papel? Uns diziam que sim, outros que não; e entretanto ele, murcho e débil no meio dos seus almofadões, coordenava as suas memórias históricas, organizando uma obra digna do assunto, com um pouco de fantasia que lhe adoçasse a sobriedade dos dizeres clássicos, em português bem literário e castiço como se prezava de escrever.

Trouxeram-lhe afinal o papel e o lápis, e a pouco e pouco foi-se o leito juncando de livros, arquivos, glossários, volumes de história. O Dr. Paula Guedes já não carecia da botija de água a ferver para os pés; um calor confortativo, de vida, alastrava-se por todo ele, em uma febre doce, que punha cada vez mais aceso o enxame de mosquinhas de ouro dos seus olhos encovados.

– Cada louco tem a sua mania; resmungava a família descontente, com medo daquele trabalho penoso para um corpo sem sangue, prestes a cair.

Entretanto o discurso ia indo, caudaloso, nos moldes velhos a que o orador se acostumara e que considerava, como bom retórico, os únicos capazes de bem levantar as almas. O milagre fez-se. O velhinho parecia ter adiado a morte, e levantou-se oito dias antes da grande solenidade, com o seu discurso arquitetado e as mãos cheias de notas que ele coordenou na grande secretária da sua biblioteca.

Tudo concluído, recomendou às filhas que lhe preparassem o terno da casaca, as luvas e a gravata branca, mais as suas comendas que ele, grande respeitador das velhas instituições, usava sempre nas funções solenes.

Naquela febre, todo voltado para o ideal e para a história, o velho Dr. Guedes rejuvenescia, como se mão misteriosa o ajudasse, invisivelmente, a caminhar na vida.

Dias antes da cerimônia quis ensaiar-se e experimentar o seu fato, há tanto tempo guardado no fundo escuro do armário.

Preparou-se; o corpo nadava-lhe dentro do pano preto; e dentro do colarinho engomado o seu pescocinho fino mal parecia dever sustentar-lhe a cabeça branca, recheada de ideias e de imagens gordas.

Para que o ensaio fosse completo abriu-se o salão da frente, acenderam todas as arandelas, e os filhos e netos sentaram-se disseminados, como se com a dispersão parecesse aumentado o auditório.

Dr. Guedes entrou com passo firme, à força de energia, sorriu, fez a mesura do estilo: – “Minhas senhoras! Meus senhores!” – e, folheando os seus manuscritos, começou a falar em voz fraca, espalmando no ar a mão direita, enquanto a esquerda carregava as vinte e seis tiras do papel almaço.

O seu primeiro discurso não o comovera tanto. É que ele agora julgava-se esquecido, perdido da memória dos seus contemporâneos e daquelas gerações que tinham sucedido à sua, com menos brio e piores armas. Agora estava consolado: o Instituto lembrava-se, e o Instituto valia tudo!

Com as condecorações reluzindo-lhe no peito magro e fundo, o Dr. Guedes procurava dar gravidade ao gesto e sonoridade à voz; mas os óculos descaíam-lhe, a vista faltava-lhe e a palavra perdia-se em um som rouco e débil. Ele mal percebia tudo isso, aproximava-se da luz, sustinha com os dedos trêmulos o aro de ouro dos óculos... E as filhas choravam, constrangidas, muito caladas, engolindo as lágrimas.

Quase no fim, em um dos seus melhores períodos, em que ideias e palavras desabavam com fragor de catadupa, ao esboçar um gesto, o doutor Paula Guedes estacou, abriu os dedos e deixou voar para o chão as tiras do seu discurso. Acudiram todos; receberam-no nos braços, deitaram-no no seu grande leito de peroba, e, quando olharam de perto para o seu rostinho lívido, viram que das suas pupilas fundas a última mosquinha de ouro tinha partido, como a última abelha do cálix* de uma flor murcha.

Então, a mais calma das filhas reuniu as tiras esparsas do último discurso do pai, dobrou-as e meteu-as carinhosamente no bolso da casaca, tal e qual como se ele, em vez de ter de ir para o cemitério, tivesse de ir para o Instituto!

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* Vocabulário:
CHUT: Psiu.
CÁLIX: Cálice


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 537


 

Lima Barreto (O Tal negócio de “prestações”)

O sr. José de Andrade era contramestre de uma oficina do Estado, situada nos subúrbios. Era ele o único homem da casa, pois, do seu casamento com d. Conceição, só lhe nasceram filhas, que eram quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.

Era homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família, que ele governava com acerto e honestidade. Só tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso mesmo, não era diariamente; fazia-o de longe em longe.

Um belo dia, ganhou na centena. Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno, em Inhaúma; comprou algumas peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis, igualmente, entre a mulher e as quatro filhas. D. Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.  Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.

Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro adiantamento. Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo. Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o produto de suas costuras.

Loló, essa gostava de joias e vivia sonhando com um relogiozinho - pulseira que o Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló. Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que logo se desarranjou. Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.

Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas para esse negócio de prestações; mas o exemplo das irmãs animou-as.

Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera no mês passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era branca. Queria uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que lhe não deixava a porta, tinha uma em condições, e magnífica.

Ficou com ela; e a sua contribuição era modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai lhe daria certamente.

Lili, a mais moça, não tendo ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à fascinação de obter um adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais. Guardou, durante uma semana, os vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão, pela primeira vez, um vendedor ambulante de joias, a prestações; e ela, dando-lhe o dinheiro, que tinha reservado, fez-se dona de umas “africanas” com a promessa de pagar dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síky.

Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte do que ganhava.

O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta etc. D. Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e, finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita lhe dava.

No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim, Sárak, Nicolau, Ivã, José Síky, a cobrar as prestações de d. Conceição, de Vivi, de Loló, de Ceci e de Lili. Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.

No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam. Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar aos russos [sic] das prestações. Não ficaram estes contentes e procuraram indagar quem era o dono da casa.

José de Andrade não sabia da história de prestações e ficou espantado quando eles o procuraram, para a cobrança. No começo pensou que era só um; mas quando viu que eram cinco, e que as prestações alcançavam a respeitável soma de cinquenta e nove mil-réis, o pobre homem quase ficou louco. Ainda quis restituir os objetos; mas as peças de vestuário estavam usadas, o relógio desarranjado e até as “africanas” precisavam de consertos no fecho.

Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:

— Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir o “bicho” que é coisa inocente.

Fonte:
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) IX

AMOR E LÁGRIMAS

(Oferecida ao amigo e colega Manoel Bernardino Bolivar)

Se fosse possível na minha alma
Amanhecer um dia da ventura,
Corado por um beijo de donzela
Ao despontar d’aurora...

Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
Sorrindo, pelo céu jurasse a bela
Fazer-me cada vez por novos beijos
Mais rubra a cor do dia...

Se fiel companheira em toda parte
Quisesse me seguir, presa comigo,
Como um raio celeste preso a um astro
A iluminar-lhe o curso...

Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
Só por ter-me, deixá-los e contente
A gabar-me o sabor do pão grosseiro
Que me alimenta a vida...

Não a crera; e talvez que até julgasse
Tantas provas de amor atroz perfídia,
Se amor me não brilhasse nos seus olhos
No centro de uma lágrima.

Amor é fogo; o coração que ama
Todo nas suas chamas se evapora,
No rosto se condensa, e chega aos olhos
Em água convertido.

Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita
De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes
Sustento de lascívia.

Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando,
Filho de um doce afeto que se apura
Nos cadinhos da dor, é batizado,
Num batismo de prantos.

É belo ver-se uns olhos cintilantes,
Acesos em vulcões de fogo ignoto,
A dardejar faíscas invisíveis
Que os corações abrasam:

É belo ver-se um rosto nacarado
No carmim do prazer: é belo ver-se
Partir fino coral de rubros lábios
Um sim d’alma saído:

Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade
É escárnio do crente.

Quereis vê-lo sincero? Observai-o
N’açucena de um rosto desmaiado,
Entre os lírios de uns lábios que roxeiam
Suspiros de agonia:

Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
Entre a neve das lágrimas, pareça
Revérbero da lâmpada mortiça
Do templo da saudade.

Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
Seu voo ao céu dirige
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NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,
Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado
Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede
Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.
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O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludibrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Hans Christian Andersen (O Boneco de neve)


– Está tão deliciosamente frio que meu corpo até estala. – disse o Boneco de Neve – Este é o tipo de vento que sopra vida para dentro de uma pessoa. Mas como aquela coisa vermelha grande está me encarando! – Ele estava falando do Sol, que estava se pondo – Não vai conseguir me fazer piscar, e eu vou conseguir segurar todas as partes.

O Boneco de Neve tinha duas telhas triangulares em lugar dos olhos; a boca era feita com um ancinho e, portanto, tinha dentes. Ele havia sido montado em meio aos gritos alegres dos meninos, o tilintar dos sinos de trenós e o estalar de chicotes.

O Sol desceu, e a Lua cheia subiu, grande, redonda, clara e brilhando no profundo céu azul.

– Lá vem ele de novo, desta vez do lado oposto. – disse o Boneco de Neve, achando que era o Sol se exibindo novamente – Ah, eu o curei daquela mania de ficar encarando. Agora ele está brilhando lá em cima, e eu consigo enxergar a mim mesmo. Ah, se eu conseguisse me afastar daqui; gostaria tanto de poder me mexer! Se eu pudesse, iria deslizar para longe sobre o gelo, como vi os meninos fazerem, mas não entendo como. Eu nem sei correr.

– Ou, ou! – latiu o velho cão de guarda, que era um pouco rouco e não conseguia pronunciar corretamente “au, au”.

No passado, o cão tinha vivido dentro de casa, onde muitas vezes se deitou perto da lareira; sua rouquidão vinha desde essa época.

– Um dia, o Sol vai fazê-lo correr sim, e até escorrer. Eu mesmo vi, no inverno passado, quando seu antecessor escorreu, e também o antecessor dele. Ou, Ou! Todos sempre escorrem.

– Não o entendo, meu camarada. – o Boneco de Neve disse – Aquela coisa lá em cima vai me ensinar a correr? Eu vi quando ele mesmo correu, pouco tempo atrás, e agora surgiu subindo do outro lado.

– Você não sabe de nada. – o cão de guarda replicou – Mas, por outro lado, você é novo ainda, acabou de ser feito. O que você está vendo agora é a Lua, o que você viu antes era o Sol. Ele vai voltar amanhã, e provavelmente vai ensinar você a escorrer para a canaleta junto ao poço, pois acho que o tempo vai mudar. Estou sentindo aqui na perna esquerda umas pontadas que parecem facas entrando, então tenho certeza de que o tempo vai virar.

– Não consigo entender aquele sujeito, – o Boneco de Neve comentou consigo mesmo – mas tenho a impressão de que ele está falando de algo bem desagradável. Aquela coisa que estava me encarando agora há pouco, que ele chama de Sol, não é meu amigo; estou sentindo isso também.

– Ou, ou! – latiu o cão, depois deu três voltinhas e entrou no canil para dormir.

O tempo mudou mesmo. Perto do alvorecer, uma névoa espessa cobriu o país inteiro e um vento agudo soprava tão forte que parecia capaz de congelar até os ossos das pessoas. Quando o Sol raiou, porém, uma visão se tornou esplendorosa. Árvores e arbustos estavam cobertos de granizo e pareciam uma floresta de corais brancos, enquanto em todo graveto reluziam gotas congeladas de orvalho. Suas formas delicadas, que no verão ficaram escondidas pela folhagem abundante, agora estavam claramente definidas e pareciam rendas brilhantes. Um esplendor branco refulgia de cada galho. As bétulas, balançando ao vento, estavam tão cheias de vida quanto em um dia de verão, e absolutamente deslumbrantes. Onde batia sol, tudo resplandecia e faiscava como se pó de diamante tivesse sido espalhado; e o tapete de neve que cobria a terra também parecia feito de diamantes, e deles saíam inúmeros feixes de luz cintilante e ainda mais branca do que a própria neve.

– Isto é realmente lindo. – comentou uma mocinha que tinha ido ao jardim com um amigo; ambos pararam perto do Boneco de Neve e ficaram apreciando o esplendor da cena. – Nem o verão traz uma imagem tão bonita. – Ela exclamou, com olhos vivos.

– E no verão também não existem sujeitos como este aqui. – respondeu o rapaz, apontando para o Boneco de Neve. – Ele é fundamental.

A menina riu e acenou para o Boneco de Neve, e foi embora saltitando pela neve com o amigo. O chão estalou e crepitou como se ela estivesse pisando em cima de roupas engomadas.

– Quem são aqueles dois? – o Boneco de Neve perguntou ao cão de guarda. – Você está aqui há mais tempo do que eu; você os conhece?

– Claro que os conheço. – respondeu o cão. – A menina me fez carinho vezes sem conta, e o jovem já me deu muitos ossos. Eu nunca mordo aqueles dois.

– Mas o que eles são?

– São namorados. – o cão explicou. – Com o tempo, eles vão morar juntos no mesmo canil e roer o mesmo osso. Ou, ou!

– Eles são o mesmo tipo de criaturas que você e eu?

– Bem, eles pertencem ao senhor mestre. – o cão disse. – Dá pra ver como uma pessoa sabe pouco quando nasceu ontem. Vejo isso em você. Eu tenho idade e bastante experiência, conheço todo mundo naquela casa e sei que houve uma época quando não ficava aqui fora no frio, preso a uma corrente. Ou, Ou!

– O frio é delicioso. – o Boneco de Neve falou. – Mas me conte mais, conte mais. Apenas não bata a corrente desse jeito; me dá aflição quando você faz isso.

– Ou, ou! – o cão de guarda latiu. – Vou contar: antes, eles diziam que eu era uma graça de cachorrinho, e naquele tempo eu ficava em uma poltrona forrada de veludo, na casa do senhor amo, e sentava no colo da senhora; eles beijavam meu focinho e limpavam minhas patas com lenços bordados, e era “querido Ami” pra cá, “meu Ami docinho” pra lá. Só que depois eu fiquei grande demais, e eles me despacharam para a casa da criada, então passei a morar no andar de baixo. Aí de onde você está dá para ver o quarto onde eu era o mestre; sim, pois eu era, de verdade, amo e senhor da criada. O quarto era muito menor do que o de cima, mas eu ficava mais confortável, porque não era mais o tempo todo puxado e erguido pelas crianças. A comida era farta e boa, até melhor do que antes. Eu tinha uma almofada só pra mim e havia uma fornalha; uma fornalha é a melhor coisa do mundo nesta época do ano. Eu ia para baixo dela e ficava lá deitado. Ah, ainda sonho com aquela fornalha... Ou, Ou!

– Uma fornalha é algo bonito? É parecida comigo? – o Boneco de Neve quis saber.

– É o oposto de você. – e o cão passou a descrever: – É escura como um corvo, tem um pescoço comprido e puxador de metal; uma fornalha come lenha e solta fogo pela boca. Uma pessoa tem que ficar ao lado ou abaixo, para se aquecer. Aí de onde você está dá para ver a fornalha através da janela.

O Boneco de Neve olhou, e o que viu foi uma coisa polida, brilhante, com um puxador de metal na frente e brasas incandescentes na parte de baixo. Essa visão deu ao Boneco de Neve uma sensação estranha; era bem esquisito, ele não sabia o que significava nem entendia direito. No entanto, há pessoas que não são bonecos de neve e que entendem muito bem esse sentimento.

– E por que você abandonou a fornalha? – o Boneco de Neve perguntou. – Como conseguiu deixar para trás um lugar tão gostoso?

– Eu fui obrigado. – respondeu o cão de guarda. – Eles me expulsaram da casa e me acorrentaram aqui fora. Eu tinha mordido a perna do filho mais novo do senhor, porque ele havia chutado para longe o osso que eu estava roendo. “Um osso por um osso”, eu pensei. Eles ficaram zangadíssimos e desde então fico acorrentado aqui, e perdi a voz. Percebe como sou rouco? Ou, ou! Não consigo mais falar como os outros cachorros. Ou, ou! E foi assim que tudo terminou.

O Boneco de Neve, porém, não estava mais ouvindo. Ele estava com o olhar fixo no quarto da criada no andar de baixo, onde ficava a fornalha, que tinha mais ou menos a mesma altura que ele próprio, e se apoiava em quatro calços de ferro.

– Que estranhos comichões estou sentindo aqui no peito. – ele falou. – Será que devo entrar lá? É um desejo inocente, e desejos inocentes são sempre atendidos. Vou entrar no quarto e me encostar na fornalha nem que tenha que quebrar a janela.

– Não vá. Se você chegar perto da fornalha, – o cão de guarda alertou – vai derreter!

– Preciso ir. – o Boneco de Neve respondeu – Estou sofrendo com o jeito que as coisas estão.

Durante o dia inteiro, o Boneco de Neve ficou olhando através da janela. Ao entardecer, o quarto ficou ainda mais convidativo, pois da fornalha saía um brilho suave, não como o do Sol nem o da Lua; era a incandescência que vem de uma fornalha quando ela foi bem abastecida.

Quando a portinhola foi aberta, as labaredas escaparam, como costuma ocorrer com todas as fornalhas, e a luz das chamas cobriu o rosto e o peito do Boneco de Neve com um clarão avermelhado.

– Eu não suporto mais. – ele disse – Como ela fica linda quando estica a língua para fora!

A noite foi longa, mas pareceu curta ao Boneco de Neve, que passou as horas entretido com seus pensamentos e estalando de prazer com o frio. Pela manhã, a janela do quarto da criada estava coberta de gelo. As vidraças exibiam as flores de granizo mais lindas que qualquer Boneco de Neve poderia desejar, mas elas escondiam a fornalha.

O degelo não vinha e ele não enxergava nem um pedacinho da fornalha, que na imaginação dele era bela como uma linda mulher humana. A neve rangia e o vento assobiava ao redor dele; era o tipo de clima enregelante que um Boneco de Neve aprecia ao máximo. Mas ele não estava nem um pouco contente. Como poderia, afinal, estando tão apaixonado e distante?

– É uma condição terrível para um Boneco de Neve. – o cão de guarda observou – Eu mesmo já sofri disso, mas superei. Ou, ou! – ele latiu, e acrescentou: – O tempo vai mudar.

E mudou mesmo. A neve começou a derreter e, conforme o calor aumentava, o Boneco de Neve diminuía. Ele não disse nada, não reclamou, o que era sinal certeiro de estar morrendo.

Certa manhã, ele se partiu e afundou completamente. Mas esperem! Onde antes tinha estado o Boneco de Neve, havia agora, espetado no chão, algo parecido com uma vassoura. Era a estaca em volta da qual os meninos tinham construído o Boneco de Neve.

– Ah, agora eu entendi por que ele queria tanto se aproximar da fornalha! – concluiu o cão – Ora, aquilo lá, amarrado à estaca, é a escova que se usa para limpar a fornalha. O Boneco de Neve tinha uma escova de fornalha dentro do corpo, era por isso. Ou, ou!

E logo o inverno chegou ao fim. O cão de guarda continuava com seu “ou, ou”, enquanto dentro de casa as meninas cantavam:

Venha do seu lar aromático, verde tomilho,
Que já não resta nenhum empecilho.
Salgueiro, estique seus macios ramos,
Que muito contentes todos estamos.
A primavera vem com doce euforia,
E no céu voam as aves com alegria.
Chega o Sol gentil e o cuco canta,
E eu canto junto a mesma melodia.


E ninguém mais se lembrou do Boneco de Neve.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Universo das Fábulas.

Aparecido Raimundo de Souza (Obstáculos)

SAÍ DA MINHA CASA às carreiras, logo que me vi fora da cama. Abri a porta de meu quarto e voei para a rua em busca de novidades. Qualquer coisa que distraísse o meu pessimismo galopante, nojento e asqueroso, me faria um sujeito feliz. Na verdade, queria me ver livre da manhã entristecida que não nascera bem. Faltou algum elemento primordial na mistura da sua composição. Um toque sutil de leveza, quem sabe um empurrão, para que ela deixasse de ser como uma rosa embriagada esquecida dentro de uma garrafa atirada à sorte e se tornasse perfeita.

Não só isto. Igualmente se reinventasse sem defeito, magistral, primorosa, robusta e seguisse, radiante e versátil, acolhedora e hospitaleira, afetuosa e caridosa vivendo livre e tranquila no jardim do meu mais urgente, destituída, obviamente, dos fluidos indigestos que a perseguiam e vingasse na mais pura vontade de ser plena e realizada aos olhos (não só aos meus) de quem quer que aparecesse e a contemplasse. O oposto, o contrário, se fizera maior. Se agigantou numa chegada cruel e mal parida, engendrada a bel prazer de uma esquizofrênica infame e duramente cruel.

Em vista disto, eu não conseguia me enquadrar em seus parâmetros, nem tampouco ela a mim, no sentido de jogar no rosto carcomido pelo desespero, um semblante mais ameno, um perfil que não me tornasse tão radical e infeliz, a ponto de achar que todo o Universo, ao meu entorno, conspirasse a meu desfavor. Resolvi cair no mundo. Fugir daquele crepúsculo pavoroso e desvairado. Na minha partida, em busca de algo pleno, me embrenhei por caminhos e atalhos os mais diversos dentro de um universo paralelo que, de igual forma, me fez mais pessimista, e pior, literalmente desanimado e divorciado do controle emocional.

As novidades que almejava, de repente se desfizeram em angústias e dissabores, problemas e questiúnculas que se avizinharam contrárias e antagônicas ao meu modo pacato e sem atropelos de viver cada novo dia que chegava. Em decorrência deste imprevisto não previsto e desenfreado, assim do não existente, os percalços se multiplicaram aos borbotões. Como torneiras abertas, por mãos invisíveis, se sucedeu sobre meus costados, uma enxurrada 'desconjunturada' e infernal de atropelos, o que contribuiu para aumentar, sobremaneira, as barreiras intransponíveis que vieram, de roldão, junto com o pacote que eu não pedira.

Diante deste quadro infortunoso e lúgubre, o que fazer? Que atitude tomar? Seguir em frente? Retroceder? Como me livrar do pessimismo molesto que me infligia um esmagamento atroz e me mortificava, me atormentava e me estragava as horas vindouras, a partir de um simples e corriqueiro acordar? De pronto, me deparei com uma válvula de escape emergente. Acredito que um anjo do bem, soprou algo esplendoroso em meus ouvidos. Do nada, ouvi um ‘volta, volta, volta’. Não pensei duas vezes. Regressei correndo à minha casa feito um maluco desorientado ao ponto de partida. Meu quarto.

Dentro dele, me tranquei apressurado e fadigado, esbofado e boquiaberto, como se estivesse querendo que aquele matutino fosse, de vez, embora o mais depressa possível e se desagarrasse dos meus pés. Incrivelmente deu certo o aborto planejado da minha fuga afergulhada. O dilúculo entristecido e lutuoso, embaçado e malévolo se foi embora. Partiu de vez. Durou pouco os seus horrores, às minhas provações. Descobri, instantes depois, que tudo orbitou apenas no meu imaginário. Na verdade, após caso passado, digo, de bom grado, que este nascer inóspito, a bem da verdade, não existiu verdadeiramente.

Mesmo norte, esta alvorada manemolente não vingou, não descendeu. Sequer se criou, ou se materializou em forma de um porvir real. Diria, agora, que tudo passou, id est. Estas primeiras horas repletas de malogros e desencantos jamais chegaram. De nenhuma forma se aproximaram dos meus receios e carências. Como num passe de mágica, tipo um achado benfazejo, com as graças de um Ser Maior e Divinizado (que a tudo viu e reconstruiu), voltei a ser eu mesmo de novo. Confiante e vitorioso, ao me flagrar livre como antes, meu coração se abriu em festa abraseada. Aqui estou saltitante à acolher a visão beatificante de que tudo seria e é concreto dentro do impossível do meu possível.

E, de fato, crendo piamente nesta teoria da Felicidade ímpar, e sem espaços, consegui sair do buraco negro. Me libertei. Me safei. Revivi, ressuscitei, granjeei forças. Renasci mais poderoso, como aquela ave mitológica. Das cinzas. Aqui estou agora, sem correntes, ou amarras, sem fobofobias e hipocondrias, me sentindo o dono do pedaço, senhor de mim mesmo, o absoluto de tudo e o mais importante: não ‘re-vendo’ o jardim desfeito, tampouco a rosa pinguça, metida dentro de um vasilhame bojudo de gargalo comprido. O arraiado, a rosa e eu, pela ternura imensurável de Deus, agradecemos. Estamos e nos sentimos IMENSAMENTE FELIZES.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 11

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 37 –

Sabemos que a vida é feita de dualidades situações avessas, contrárias, antípodas, constantemente. Assim é que temos manhãs radiosas e manhãs sem sol, dias refulgentes e dias escuros, vidas imensas e vidas nanicas, dias de boas notícias e dias de más notícias, dias ventaneiros e dias serenos, dias alegres e dias tristes.

Similitudes acontecem com a prosa e o verso, que também têm o seu dia sim e o seu dia não. Acordamos pensando em escrever um texto e nada flui, a inspiração e a transpiração ausentes,, os pensares vagos.

Estamos no dia não da escrita. Eis que neste antagonismo surgiu um dia sim abrigando uma croniquinha não.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cristovão Tezza (Aula de reforço)

Estava distraída e quase deixou queimar o pão, olhando pela janela da cozinha, quando o telefone tocou — uma, duas, três vezes. Correu, pegou o fone e voltou a tempo de salvar o pão.

— É a professora Beatriz?

Demorou a responder — o “professora” soou repentinamente estranho, como se não fosse ela.

— Sim?

— É o meu filho. Ele vai fazer vestibular. Não é que ele escreva mal, ele é muito inteligente. Mas precisa de um reforço. De um reforço em tudo — é muito dispersivo. Falaram muito bem de você! Disseram que você faz milagres. Você faz milagres? — e a mulher riu.

Beatriz arriscou um diagnóstico prévio: mãe dominadora, com um certo humor invasivo, o que duplica o perigo. Mas ela estava mesmo precisando de aulas extras.

— A gente tenta fazer milagres. Às vezes não dá certo — acrescentou, arrependendo-se em seguida. Mas a mulher não ouviu: — Você está disponível? Poderia começar hoje mesmo?

Beatriz preferia quando perguntavam antes o preço da aula. Falar de dinheiro é sempre desagradável — as pessoas baixam a voz, olham para os lados, disfarçam, cheias de dedos. Parece que somos todos traficantes nesta vida, pessoas sujas que escondem o dinheiro na bolsa e só o mostram olhando para os lados, suspeitosas — e era como se Beatriz visse a imagem que pensava. Mas algo lhe dizia, pelo tom de voz, que essa mulher pagaria bem, sem chiar. Essas pessoas que querem tudo para ontem e bancam a exigência.

— Só um minutinho, senhora.

Colocou o telefone na pia, tirou o pão da frigideira, com capricho, e colocou sobre um pires. Parecia bom, tostadinho sem queimar. Retomou o fone:

— Pode ser à tarde? À tarde estou livre. Às duas, está bem?

Estava.

— Mas talvez fosse bom nós duas conversarmos antes sobre o meu filho. Eu poderia lhe dar uma orientação. Ele é um menino... como dizer?

Não diga.

— Tudo bem, só que... o seu nome? Ah, dona Sara, a gente conversa, sim, é claro. Mas agora tenho de sair correndo. A senhora me passaria o endereço?

Desceu do ônibus próximo da rua transversal que cruzava a avenida Batel — região de gente rica, principalmente naquela sequência de três prédios para onde ela estava indo, procurando o número, 227, é ali, o prédio do meio. Pensou que talvez devesse ter vindo com uma roupa menos informal, aquele uniforme jeans, tênis azul, blusa branca, laço no pescoço, a pasta com os textos na mão, mas subindo a rampa da portaria se distraiu, bobagem, estou muito bem, mentiu, lembrando da farmácia em que teria de passar na volta. Estava deprimida. Diante do porteiro, ficou muda, uma impaciência não localizada na cabeça. Parece que a minha vida é me identificar com porteiros — sou uma vendedora de pizzas, e a ideia de que disse isso em vez do “Beatriz” suspirante que de fato confessou acabou por distraí-la novamente. O porteiro falava baixo no interfone; talvez ela fosse recusada e voltaria para a rua sem jamais conhecer o garoto dispersivo (hiperativo? déficit de atenção?) que precisava de um reforço, mas o porteiro agitou-se, levantando-se como quem súbito descobre que está diante de alguém realmente importante, o médico na urgência, o encanador que vai resolver o dilúvio no banheiro, o técnico da televisão cinco minutos antes do penúltimo capítulo da novela.

— Por aqui, senhora!

Solícito — a espinha já se curvando, os passos rápidos até o elevador, no qual se atirou em três passadas para abrir a porta antes que, vindo da garagem, ele se fosse para o alto, é no sétimo andar, uma mesura respeitosa diante da senhora, Beatriz sorriu, senhora, e desejou ardente um espelho para avaliar os 28 anos incompletos, mas deu de cara com um cãozinho repolhudo que latiu três vezes, um latido fino, agudo, irritante, aliás como a dona, esta sim uma senhora, que gentil pediu desculpa:

— Desculpe, mocinha. Essa menina aqui é muito espevitada!

Muito es-pe-vi-ta-di-nha! — esfregava o focinho no focinho do bicho:

— Sua bagunceirinha! Fica latindo para as visitas! Que feio!

Será essa a mulher? — assustou-se Beatriz, mas não; no quinto andar a senhora pediu licença e saiu do elevador; o cãozinho latiu de novo, quase pulando do colo da mulher para morder Beatriz. A porta se fechou e ela ouviu mais repreensões da mãe para a filhinha, que sumiram em fade out até que o sétimo céu, o sétimo andar, corrigiu-se ela, estou maluca, se abrisse e uma mulher grande lhe estendesse os braços que também pareciam enormes:

— Professora Beatriz!? — Parecia uma velha tia, vendo a sobrinha cinco anos depois; só faltava dizer como você cresceu, mas chegou perto: — Você é uma gracinha de menina! — e os braços se esticavam, as mãos nos ombros de Beatriz, avaliando a peça. — Eu não sabia que você era tão nova! — Puxava-a pela mão: — Venha por aqui, vamos conversar.

Atravessou o breve hall cheio de peças douradas, plantas e quadros, percebendo que no prédio havia um só apartamento por andar, e em seguida passou pela porta imensa que dava a uma sala igualmente imensa com uma profusão de tapetes, mesas, poltronas, cores, luminárias, cortinas, tudo muito limpo e sólido, nenhum livro nas paredes, mas o olhar não conseguia se deter, a mulher era rápida — num momento, viu um vulto que apareceu na moldura de uma porta, e sumiu em seguida, como quem se esconde. E agora estava sentada diante da mulher, numa mesa de uma outra sala, menor.

— Que bom que você veio — e sorriam os olhinhos miúdos da mulher, os cabelos vermelhos em torno de um rosto redondo como uma bolacha recheada, bochechas salientes logo acima de dois queixos discretos acima de um pescoço curto. Havia entretanto uma perquirição residual no olhar, alguém que ainda precisa se convencer de que está fazendo um bom negócio.

Tímida, Beatriz restou desconfortável naquele breve momento, em busca do que dizer; a ideia de que provavelmente seria bem paga (na mesa nua, havia apenas um silencioso talão de cheques com uma caneta atravessada, a um palmo da mão direita, gordinha, de dona Sara) contrabalançava-se com a ideia de que aquilo seria muito chato.

— O Eduardo (a gente chama ele de Dudu), o Dudu é muito dispersivo. Rapaz inteligente. — Ela baixou a voz: — É filho do meu primeiro casamento. Você é solteira? Ele...

Seria o vulto da porta? Aliás, com todas as portas escancaradas, o Duduzinho estaria ouvindo a interminável metralhadora. A clássica mãe superprotetora com sentimento de culpa. Isso cansa. Num lapso, Beatriz lembrou o aborto que fez, sete meses depois de casada, e levantou-se, súbita, olhando para o relógio, ainda tentando ser gentil:

— Dona Sara, eu tenho outra aula às quatro. Talvez a gente deva começar.

— Isso mesmo! — concordou dona Sara imediatamente, levantando-se também, decidida, como se fosse dela a ideia de começar logo.

— Faça uma avaliação e conversamos!

De volta à sala maior, ela se viu enfim diante de Dudu, ao centro de uma mesa humilhante de tão pesada e bonita, um de cada lado, como numa conferência da ONU. Um garoto bonito, delicado, inseguro e tímido, as mãos enormes sobre a mesa, pontas visíveis de uma alma ainda incompleta; custou a olhar para ela; quando olhou, ela imaginou ver lá no fundo dos olhos azuis um pedido de socorro, mas isso era só uma transferência do sentimento dela, quando enfim dona Sara desapareceu dali, ainda que deixando todas as portas abertas; não parecia uma casa; parecia um conjunto de salões e corredores.

Uma aula particular é uma consulta médica, ela fantasiou — é preciso privacidade. Praticamente cochichavam:

— Eduardo, vamos fazer alguns exercícios, só para eu conferir como você está. Tudo bem?

Percebeu nela mesma o tom quase severo da professora, o breve peso da autoridade que compensa a insegurança diante de uma situação nova; talvez o menino se sentisse traído, imaginou. De qualquer modo, sentiu-se bem: estava no seu papel, e era sempre um prazer descobrir o que as pessoas sentem quando escrevem, o que elas escrevem, o mistério daquelas palavras sofridas em sequência. Cada caso era mesmo sempre um caso, negando o chavão com um chavão. Vamos ao trabalho, disse ela, apresentando-lhe uma folha impressa que tirou da pasta: junte as duas sentenças em uma única frase, fazendo as modificações necessárias. Primeiro: O homem fugiu. O casaco do homem era verde. Segundo: Estava chovendo. Ele saiu sem guardachuva. (Use “embora”).

Dudu era canhoto. Enquanto ele escrevia um tanto penosamente — a letra quase ilegível, Beatriz avaliou, de ponta-cabeça, enquanto as linhas saíam da caneta esferográfica que ele tentava esmagar com os dedos —, ela chegou a ver mais uma vez a cabeça de dona Sara lá adiante, como uma aparição, desaparecendo em seguida. Talvez ela queira que a gente fale mais alto, para poder nos ouvir. Conferiu o resultado, que o garoto estendeu lentamente, talvez temendo a resposta:

- O homem que o casaco era verde fugiu. Embora chovendo, ele saiu sem guarda-chuva. Ela sorriu, estimulante. Ele não conhece o cujo e não sabe usar subjuntivo. Em duas frases, o retrato inteiro para um estudo de caso. A segunda frase não estava tecnicamente errada, ainda que ambígua. Ficou tranquila: teria serviço para alguns meses. Estavam em abril, o vestibular é em dezembro. Estendeu para ele uma outra folha, com um texto informativo de três parágrafos sobre o desmatamento na Amazônia.

— Leia em voz alta esse texto. Eu vou fazer algumas perguntas, a gente conversa um pouco, e então você escreve um resumo usando 50 palavras. Tudo bem?

— Você não quer um cafezinho? — a voz da mulher reapareceu lá de longe, alta, como quem chama alguém no outro lado da rua.

— Não, obrigada, dona Sara. É melhor a gente se concentrar na aula.

Uma ligeira repreensão no tom de voz. O rapaz olhava para o texto, sem ler, visivelmente pensando em outra coisa — e então estendeu a mão e pediu licença para conferir de novo as frases que havia escrito.

— Eu poderia usar o “cujo” aqui? Tipo, o rapaz cujo o casaco era verde fugiu?

Ela sorriu, animada:

— Sim, é claro; seria o justo. Mas não “cujo o”; apenas “cujo casaco”. As expressões cujo, cuja, cujos, cujas já incluem o artigo.

— Mas ninguém fala assim. Todo mundo diz a pessoa que o casaco.

Ela sentiu que ele queria marcar território.

— Certo! Mas escreve-se assim. É a chamada língua padrão, norma culta.

— Eu imaginei que a pessoa nessa frase estava falando e não escrevendo.

Ela conferiu nos olhos dele: havia um toque de humor. Apenas uma breve pegadinha, não uma provocação. Sorriu:

— Sim, você está certo. O registro da frase não estava adequado. Que ótimo que você percebeu! Vamos à leitura?

Ele lia razoavelmente bem, com uma voz quase feminina. Atrapalhou-se apenas com uma sequência de orações subordinadas, que ele teve de refazer para que acabassem em pergunta; e não sabia o que significa diáfano e rotundamente. Ela explicou — e sugeriu que ele comprasse um dicionário.

— O dicionário é fundamental para quem escreve.

— Eu tenho a versão eletrônica no computador.

O resumo não ficou bom — ele queimou as 50 palavras apenas com o assunto do primeiro parágrafo —, mas o texto estava até razoável: só um erro de concordância (acontece queimadas todos os meses) e outro de ortografia (encontrarão por encontraram). Enfim: estava diante de um caso típico. Já tinha praticamente um curso completo destinado a ele, só venderia a mão de obra — e quando dona Sara se aproximou, uma hora depois, conclamando-a para tomar um café, começou a pensar no preço que cobraria. Súbito, o rapaz desapareceu e ela se viu diante de outra mesa, em outra sala, tendo de decidir entre o chá e o café. Havia uns cinco tipos de bolachas — uma empregada uniformizada surgiu de lugar nenhum, depositou outra bandeja e se retirou em silêncio para o fundo de um corredor de onde vinha o som distante de uma televisão. Beatriz começou a se sentir desconfortável, a mão quente da mulher sobre o seu braço.

– E que tal o meu filho? Não é inteligente?

Sim, sim, ele é ótimo, ele é muito melhor que a senhora”, ela quase disse, - E sabe o que eu ia propor a você, eu achei que ele gostou tanto de você que — e Beatriz se serviu de café, apenas café, e escolheu um modelo de bolacha que parecia apetitosa, e era — que eu estava pensando se; mas se sirva, por favor. - Oitenta reais  não, é muito. Se o meu padrão é quarenta, posso pedir cinquenta, talvez sessenta a hora, ela calculou, quem sabe duas, três aulas por semana, isso representaria um desafogo bom enquanto ela — enquanto ela o quê? O café estava bom, forte, e ela pôs um pouco mais de açúcar, esperando o momento para encaixar seu preço, mas dona Sara falava sem parar: sim, sim, eu digo mesmo sair com ele, respirar um pouco outro ar, acho que a minha presença — ela baixou a voz para confessar — é um tanto, assim quero dizer, eu intimido, sabe? Ele está nessa fase terrível. - Mas do que essa mulher está falando? — e pegou outra bolacha, sentindo a clássica pontada no pescoço que sempre reaparecia em seus momentos de tensão. Bem, a aula pode ser em outro lugar, é claro, ela acabou dizendo, sem oferecer a própria casa, embora fosse o ideal, não precisaria pegar ônibus — Ir ao cinema, eu digo, temas de redações, tudo isso seria muito bom para ele, escrever sobre a vida, os dedos quentes de dona Sara como que pediam socorro e desculpa ao mesmo tempo, apertando-lhe suavemente o braço, enquanto a cabeça se aproximava, - isso seria muito bom e vocês ficariam à vontade, compreende? Até na mesa de um barzinho, se fosse o caso — e colocou a mão na boca, um escândalo envergonhado: — Eu acho até que ele é virgem! — e deu uma risadinha nervosa. Na verdade ela não quer saber como o filho escreve, surpreendeu-se Beatriz, a bolacha na boca, como uma ficha que entala — Ele passa o dia no computador e isso não é bom, é — bem, ele precisa ver gente, nem tem namorada, nada, e isso afeta o estudo, é claro. Mais café? - Enfim mastigou a bolacha, lentamente, pensando: oitenta reais e desaparecer por aquela porta para nunca mais voltar. Controlou o desejo de se erguer súbita e sair dali. Viu a mulher estender o pratinho — experimente esse, de amora, é uma delícia de recheio — e depois puxar para si o talão de cheques que não saiu da mesa em nenhum momento, como uma boia de segurança:

— Pensei em cem reais a hora cheia, Beatriz. Está bom para você?

Uma letra rápida e criptográfica preenchia o cheque, quase que antes mesmo de ouvir aquele “sim, mas” tímido que ela balbuciou tentando articular uma estratégia qualquer que colocasse as coisas nitidamente nos seus lugares para todo o sempre, o que afinal essa bruxa está querendo de mim?

— Aqui está o telefone dele, você pode marcar com o Dudu mesmo.

E virou-se para o vulto da empregada que reapareceu no corredor, Fulana, eles vão entregar o baú daqui a pouco, e a mulher disse, a voz séria e rouca, Sim, dona Sara, e Beatriz viu-se quase abandonada na sala, dona Sara desculpou-se, comprei um baú lindo, tinha o que fazer, obrigado, menina, você é ótima, um fantasma que troca súbito de script. Levou outro susto ao ver diante do elevador a figura alta de Eduardo, abrindo gentil a porta para ela, e ela temeu que ele descesse junto para acertarem os detalhes, mas não — ele só queria dizer, sussurrando: Desculpe, minha mãe é louca. Ligue diretamente para mim — e antes de a porta fechar ela viu o vulto da mãe reaparecendo lá adiante, discreta, contemplando a despedida, como quem confere se tudo correu de acordo.

Dois andares abaixo, o cãozinho latiu de novo de algum lugar distante no espaço. Ela lembrou que teria de passar na farmácia, e abriu a bolsa para conferir se o cheque estava mesmo certo.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Jessé Nascimento (Analecto de Trovas)

A formiga na labuta
nos dá profunda lição;
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
= = = = = = = = = = =

Caminhos, jardins e praças,
flores, cores - que beleza!
Deus derrama suas graças
dando graça à natureza!
= = = = = = = = = = =

Chora o coração sentindo
tristeza, nunca revolta;
os amigos vão partindo
numa viagem sem volta.
= = = = = = = = = = =

Com meus sonhos mais singelos
embalados na esperança
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
= = = = = = = = = = =

Corres tanto, mocidade,
és pela vida levada.
Amanhã serás saudade,
serás velhice, mais nada...
= = = = = = = = = = =

Dos outros não dependamos,
mas cada um erga a voz;
a paz que tanto almejamos
começa dentro de nós.
= = = = = = = = = = =

Leu "Campanha do Agasalho",
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
em vez de deixar, pegou.
= = = = = = = = = = =

Lindo olhar, belo sorriso,
rosto de tal perfeição,
sugere o traço preciso
do Senhor da criação.
= = = = = = = = = = =

Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
= = = = = = = = = = =

Na padaria, o cliente:
- O pão está bem "quentinho?"
Com sorriso, a atendente;
- Veja como está "fresquinho".
= = = = = = = = = = =

Navegando nas poesias,
nas ondas da inspiração,
iço as velas de alegrias
deixo o rumo ao coração.
= = = = = = = = = = =

No sonho e imaginação,
vou compondo cada verso;
partindo do coração,
viajo pelo universo.
= = = = = = = = = = =

Num cenário colorido,
cheio de encanto e alegria,
a vida tem mais sentido:
a primavera extasia!
= = = = = = = = = = =

O genro sempre é quem dança,
a minha sogra é um porre;
o nome dela é "Esperança"
que é a última que morre.
= = = = = = = = = = =

Por mais que as regras morais
moldem o bom cidadão,
dia a dia os imorais
na vida melhor se dão.
= = = = = = = = = = =

Pra acreditar foi um custo;
na primeira gravidez,
levou um tremendo susto:
foram cinco de uma vez!
= = = = = = = = = = =

Quando a razão não alcança
por mais que pareça incrível,
ter fé é ter esperança,
ter fé é crer no impossível.
= = = = = = = = = = =

Quantas vezes nós choramos
por tantas coisas banais...
Mas, jamais nos esqueçamos:
há outros que sofrem mais.
= = = = = = = = = = =

Que a humanidade resista
ao mal que, sagaz, avança
eu sou poeta otimista:
ainda existe esperança!
= = = = = = = = = = =

Se a tua cruz é pesada
e vives só de lamento,
hás de encontrar pela estrada
outros com mais sofrimento.
= = = = = = = = = = =

Senhor Deus, misericórdia!
Neste conturbado mundo,
nos corações põe concórdia,
mais perdão e amor profundo.
= = = = = = = = = = =

Semelhante a um quartel
tem sido assim minha casa;
minha mulher, coronel
e eu sempre patente rasa.
= = = = = = = = = = =

Tenho ciúme e desgosto
quando, à noite, leve brisa
afaga o teu meigo rosto
e os teus cabelos alisa.
= = = = = = = = = = =

Teu cego e amargo ciúme
que me desgosta e alucina
tem sido o cortante gume
que ao amor leva a ruína.
= = = = = = = = = = =

Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.

Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.