sábado, 16 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia V)

DO VALE À MONTANHA

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.

DURMO. SE SONHO, AO DESPERTAR NÃO SEI

Durmo.
Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo.
Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.

BRANDO O DIA, BRANDO O VENTO

É brando o dia, brando o vento
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento !
Assim fosse eu, assim fosse eu !

Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim !

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto !

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso !
Ó céu ! Ó campo ! Ó canção !
A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! 
Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !

ELA IA, TRANQÜILA PASTORINHA

Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _

Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

ELAS SÃO VAPOROSAS
Minuete Invisível

Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar...

Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...

Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...

Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio...

Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar ...

EM BUSCA DA BELEZA
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Simone Pedersen (O Condutor)

Mais uma vez eu chego à Estação da Luz. São seis horas da manhã. O orvalho ainda umedece o ar, e os pássaros esticam as asas preguiçosamente. Entro no trem que conduzirei até a Estação de Santos, no litoral paulista. A viagem demora quase três horas. Lá, almoço e, à tarde, reconduzo minha máquina de volta à capital paulista. É um privilégio conduzir esse trem dos anos cinquenta, todo restaurado,viajando pelos mesmos trilhos que possibilitaram o desenvolvimento da região.

Quando apito o trem, escuto os passageiros aplaudirem. Nenhum meio de transporte é tão romântico como esse. Entramos na natureza em trilhas sinuosas, como uma cobra se esgueirando pelo mato. Invadimos a privacidade da mata, que se desnuda em flores, plantas, árvores e caídas de água.

Terra que um dia foi virgem, já que índio não macula a castidade da natureza, a Mata Atlântica é surpreendente.  Já vi onça pintada, macaco prego, pássaros de todas as cores – inclusive tucanos – voarem alto com medo do rugir do trem. Hoje, acostumados, eles parecem me aguardar.

Faço essa viagem uma vez por semana, aos domingos. É o melhor dia de trabalho na Ferrovia. As pessoas que viajam transbordam felicidade. Algumas passam o dia na cidade portuária, outras gostam de salgar a alma na praia. Crianças entoam canções alegres com arranjos de gargalhadas. Balões coloridos cambaleiam pelo teto do vagão, como se estivessem tontos de sono, mas sempre voltam misteriosamente para as mãos da criança que os chama.

Vários passageiros repetem a viagem. O filme que passa pelas janelas é demasiadamente rico em detalhes para ser saboreado uma única vez. São tantas espécies de plantas e flores. Nem o arco-íris é tão colorido. Costumo fazer uma pausa bem no meio da Mata Atlântica, quando as pessoas podem absorver um pouco desse lugar raro. O cheiro de mato tem o poder de desarmar qualquer cara enfezada.

Eu conduzo o trem como conduzo minha vida: com muita responsabilidade. O trem é um ninho cheio de filhotes, e eu sou a ave mãe. Tenho que zelar pela segurança dos passageiros. Eu sei que eles se sentem no colo da infância, com esse leve balançar. As memórias acordam, e aquele bem-estar que sentíamos quando a mãe assoprava um machucado, ou dava um beijo de boa-noite, toma conta de nosso ser. Confortante. Morno. Aconchegante. Assim é o trem.

Reconheço os casais enamorados de longe. Sentam-se bem pertinho um do outro, mesmo que haja muitos lugares vagos. Prestam atenção em cada flor, em cada pássaro e em cada palavra que o outro fala. Trocam emoções através de olhares úmidos e leves toques nos lábios. As mãos, unidas, não se soltam nem por um minuto. Já levei muitos casais assim em minhas viagens, das idades mais variadas: adolescentes de jeans rasgados e tatuagens de dragões, casais com filhos pequenos e outros que já viveram mais tempo juntos que eu de vida, e ainda são namorados.

O que eu mais gosto é quando entram crianças! Ah, crianças entendem o mundo sem os óculos da realidade. Elas cumprimentam felizes os seres que não mais enxergamos: gnomos, fadas e sacis. Algumas, mais atrevidas, gritam para eles viajarem junto! As mais corajosas colocam a mãozinha para fora da janela quando eu paro o trem e cumprimentam elfos.

Outro dia, uma menina veio me pedir para conduzir o trem bem devargazinho porque vários hobbits estavam pegando carona sobre o vagão dela. Eles estavam a caminho do porto aonde chegaria um barco com amigos de um reino distante. Eu respondi que faria o possível, afinal, não queria machucar nenhum deles, mas que deveriam ocupar os seguros assentos dentro do trem. Não resisti e completei que eles precisavam pagar pelas passagens também.

Ela saiu resmungando alguma coisa que não entendi muito bem. Para não contrariá-la – nem os hobbits – eu reduzi a velocidade.

Eu aprendi que, quando o trem entra na Mata, ele passa a fazer parte dela, como a linha se torna parte da costura na roupa. E a Mata passa a ser parte do trem. Já vi estrelas tão baixas que pareciam estar na frente da minha janela no vagão-condutor, clareando o caminho em dia de tempestade. Vi corujas de olhos gigantes piscando para mim. Levei um susto quando um macaco risonho me jogou uma banana. Pela carinha dele, não queria me machucar, apenas me presentear. Ouvi papagaios falando “Bom dia, Seu Jorge”, como se houvéssemos sido apresentados. Por isso, eu não duvido que hobbits peguem carona de vez em quando...

Uma vez, vi um piquenique real: D. Pedro II com o pai e a mãe, a arquiduquesa Dona Leopoldina, no topo da Serra do Mar. Os portugueses viviam encantados com a beleza exótica do Brasil. Eu apitei o trem, e eles me olharam assustados. O pequeno Pedro correu acenando com as duas mãos.

Mas o que eu mais gosto é de passar perto da queda-d’água. Alguns passageiros ficam aterrorizados com a altura. Eu não! Adoro ver sereias pulando do alto, descendo em piruetas ornamentais como serpentinas em salão de carnaval; ver botos cor-de-rosa tomando sol na parte rasa, enquanto índios crianças assistem ao balé das garças vermelhas.

Nunca comentei com meus amigos da Ferroviária o porquê de eu querer sempre trabalhar aos domingos. Eles ririam de mim. Guardo esse segredo, mas, quando meus netos me visitam, conto a eles as histórias com todo o colorido dos detalhes. Eles vibram e comentam o que viram quando viajaram no meu trem. Dizem que é somente no Expresso Turístico que isso acontece. Eu respondo que não, que os mundos coexistem em harmonia. Nós só precisamos de um olhar atento para enxergá-los; e de coragem para acreditar.

Bem, é hora de iniciar uma nova viagem. Quem sabe o que me aguarda hoje? Quem sabe se você não é um dos meus passageiros?

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51c.html

Lélia Coelho Frota (Teia de Poesias)

"ALVÍSSARA"
Ele falava em torres
ela pensava em nuvens.
Ele cruzava rios
dificeís, altiplanos,
os sábios pensamentos.
Ela, sirgo e cetim
fiava as camisinhas
limiar da promessa
do menino do sim.
Nos dias tão azuis
a fonte deslumbrada
jorrava luminosa
o excesso claro - riso
desfalecendo em brisa -
morrer, morrer de amor.

" DENTRO DA VIOLETA "

A minúscula ninfa
divaga na piscina:
tênue gota de orvalho.

Eis que chora e descora
a inútil flor dos anos,
de haste assaz quebradiça.

Lança mão da própria
voz que ágil se ilude:
coisas da juventude.

Sente uma dor antiga,
morrerá, se não a der
perdível, na cantiga.

Desventurada lua
se esgarça pela várzea.
Cruéis pressentimentos!

Pardais madrugadores
entrecortam de vôo
o queixoso negrume.

Surge outro novo dia,
quem sabe? traz na fronte
sonhos mais displicentes.

" MODINHA "

O que a boca sugere
e o espelho revela não
é o rosto dela
não é sua emoção.

Esse volteio alado
o riso alcantilado não
é roteiro dela
não é seu timbre usado.

Essa flor no cabelo
o exato poema não
é ornato dela
não é sua canção.

O coração girando
rondós contraditórios
os olhos diluídos
em breu ressentidíssimo.

Esse é o jeito dela
esse é o verso dela.
- Que recato mineiro!
Lágrimazinha dela.

“JOÃO SEBASTIÃO”

João Sebastião
É cruzamento da linha.
Adeus verões, perfil humano,
monólitos, élitros, verdores.
A dinamite do concreto aqui
se realiza.
Bach pulveriza
todo contato terra.
Polifonicamente o órgão mói
todo humano cuidado:
aquilo que exulta e aquilo que dói.
Cuidado!
Sob o sopro ardente do arcanjo
Deixamos sem reticência o qualquer pó
para a nudez maior da claridade.

CARNAVAL

O caminhão do trio elétrico
teve que vir da Bahia
para animar as arquibancadas de aço.

Brilha
Cometa
anúncio de cigarro intergalático.

Os corações espectadores.

Frenesi, pula o trio
sob a chuva
na avenida
vazia à espera da escola
que corta
rio de luz
a massa do público paralisado
na sombra.

Turistas de nós mesmos.

Mas ainda há ainda tem
O Bloco do Barril da Rua Estela
estrela proletária do Jardim Botânico
sambando à beira das inacessíveis moradas.

LIBERDADE
Passo pelo fio
de pérolas do Rossio:
não quero comprar flores
quero ver o rio.

AMOR TIRANO

Invejável clausura
Tem o fauno da fonte
da Avenida da Liberdade.
Não sabe o que é saudade:
ele dura.

PROJETO

Sim, iremos para a América do Sul
para as quadras de tênis vazias
para os parques de diversão silenciosos
movidos pelos anúncios luminosos.

UMA DOR

1.
O vento soprava árvores da esquerda.
Ao fundo, o menino tocava o violão
preso no ombro, como um pequeno navio adernado.
Uma dor
no mundo
rachava tudo fino e longe,
cinema mudo.

2.

Acordar é fechar as pálpebras.
Nossos olhos só escrevem
por cima, muito por cima.
E quando abrimos as janelas
É só o vento que está ali.

Existe uma dor
solta no mundo.

E eu quero deixar meu emprego, meus cabelos
minha família
para ir atrás dela
bicho com fome.

AMAROAMAR

Montemuro, serra,
 vai, coração, erra,
 esfacela-te em mágoa
 nostálgica de Mozart
 no antiqüíssimo quarto
 de outra alta paixão
 para aumentar a sede
 de Deus, e seu falcão.
 preza ao céu conceder-te
 uma alforria leve
 a resvalar na sorte
 desta que se quis  pura
 desta que se quis casta
 e cada vez mais se afasta
 da seráfica altura.
 Pode ser que no escuro
 se rompa a trasmontana
 porta do puro amor
 aorta que me leva
 — sangue derramadíssimo —
 ao horto felicíssimo
 onde um bater de pálpebra
 uma treva minúscula
 seja morrer: cidade
 da afinal claridade.

COMPASSO DE NERVAL

 Porque sempre princesa desterrada
 a viúva, a quebradiça, a desolada
 a esperar a mão que me levante
 e me leve e me liberte e me incorpore
 a uma feudal jurisdição
 onde amada, eu seja sujigada
 a pesadas correntes de paixão
 que liguem e me larguem
 que generosamente domestiquem
 minha arredia vontade de fundir-me
 num amplo levantamento acompanhado —
 ave ditosa que só voe no compasso
 da certeza do solo do seu dono.

HIPÓTESE DE MAIO

Sobre a mesa o relógio
anuncia meu tempo
que se desfaz em crivo
de aflito pensamento.
De que jardins me evado
de que amores provenho
de que enredo impreciso
se armara o que estou sendo
entre meus dicionários
fragmentos de retratos
os rútilos canários
enfunadas cortinas.
Os amigos inquietos
o silêncio a aumentar
concêntrico, severo
em torno das conversas
além da ausência,
além dos constantes afetos.
Resíduos de passeios
em paisagens alheias
empinham-se em gavetas —
cartas de amor nos seus
macios envelopes
risadas e conchinhas
a voz que fala sempre
no fundo da sonata
diletantes poemas
todos concordemente
citando o  coração
ladeado de flores
zéfiros sorridentes
(e os sabia chorosos).
As gavetas estufam
o que nelas se havia
adquire vida própria
um sitiado encanto
e expulsa da memória
de que participava
com escassa competência
eu, que leve o lembrava.
O conteúdo humano
desse ditoso espólio
palpita, e entretanto
— semicerrados olhos
agitar de cambraia —
invencível o sono
se engolfa na dolência.
Sono maior que o escuro
a corromper a luz
diuturna nostalgia
de um sonho, não sei mais
ao certo o que seria.
Coágulo sombrio
adensando-se em zona
fechada, onde me perco
neste mês-de-maria
pensando o que seria
de mim, no dissolvido
rumor que me povoa
sem conduzir à fala
da sempre poesia
sem revelar o muito
de amar que pretendia
antes de antes, não sei
ao certo o que seria.
Mas bem que perfazia
um circuito profundo
onde a primeira imagem
(início e ata finda)
que ainda se reflete
é a da jovem correndo
pela campina, soltos
cabelos, e as glicínias
a descer pelos ombros
prendendo-se na boca
primavera garrida
pelo azul florentino.
Na mão direita tinha
uma roseira viva
juritis entoavam
campestres ladainhas
e pela transparência
de sua carnação
via-se-lhe o coração
com um só nome gravado
a rubro, fulcro infenso.
Corria na campina
fantástica, e ainda
posso lembrar que em fuga
amava sempre, e ria.

Fontes:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/lelia_coelho_frota.html

Lélia Coelho Frota (1938 – 2010)

Lélia Coelho Frota (Rio de Janeiro 11 de Julho de 1938 - 27 de maio de 2010 ) foi uma crítica de arte, curadora de arte, poetisa, tradutora e antropóloga brasileira.

É autora de inúmeros livros sobre arte e cultura brasileiras.

Seu foco de estudo é a arte brasileira, pesquisando principalmente as manifestações da arte popular.

Foi responsável pelas representações brasileiras nas Bienais de Veneza de 1978 e 1988 e curadora da exposição Brésil, Art Populaire Contemporain, no Grand Palais (Paris, 1987) e fundadora do Museu de Arte Popular Edson Carneiro.

Premiações

Foi agraciada com o Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro) em 1979, na categoria poesia e o prêmio Olavo Bilac pelo livro Menino Deitado em Alfa (Editora Quíron, 1978).

Membro da
"Associação Brasileira de Critícos de Arte" (A.B.C.A.);
"Associação Internacional de Critícos de Arte";
"Associação Brasileira de Antropologia";

Diretora do "Instituto Nacional do Folclore"(F.U.N.A.R.T.)
Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Livros Publicados
Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros (Rio de Janeiro, Funarte, 1978);
Ataíde (São Paulo, Editora Nova Fronteira, 1982);
Mestre Vitalino (Editora Massangana, 1986);
Burle Marx: Paisagismo no Brasil (Câmara Brasileira do Livro/Brasiliana de Frankfurt, 1994) [1];
Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro (Editora Aeroplano, 2005).

Fontes:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/lelia_coelho_frota.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 8. Brinquedos

No bonde em que voltei da cidade, hoje à tardinha, vinham crianças com brinquedos.

Perto de mim, um senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho de seis anos como funcionava um galante volantim mecânico, que o pequeno, mais por comprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar.

Mais adiante, uma senhorita loura, sopesava uma bola nas pontas dos dedos compridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas, a carícia de uma tatilidade nova, e uma sensação ótica inédita na rotação dos gomos bancos, azuis, amarelos e escarlates. E essa dança de cores parecia emanar, pela mão translúcida e ágil, como um vago punhado de flores e de borboletas, de toda aquela pessoa que se diria a própria Primavera a viajar de bonde.

Perto, uma menina embezerrada olhava esse exercício e essa bola com um ar de proprietária complacente, estéril de uma bola.

Na cidade, quando lá perambulei à cata do bonde, havia azáfama nas lojas de brinquedos e novidades. As crianças eram poucas, porque geralmente os grandes não gostam de sair com crianças e porque, nestes dias de festas, preferem fazer-lhes a clássica surpresa. -Na verdade, os grandes é que se divertem com os presentes que fazem; e, não satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoísmo, o direito de saborear a surpresa dos presenteados. É com delícias que aproveitam, entre Natal e Reis, a concessão feita pelos costumes para mergulhar a sua infantilidade envergonhada no mundo maravilhoso das coisas inúteis e bonitas.

Outrora, mais ou menos até Rousseau, considerava-se a criança como um homem pequeno. Os próprios artistas as presentavam como adultos em escala menor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é uma criança crescida. Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.

Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.

O brinquedo especializado é uma invenção que os grandes fizeram para se divertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se vêem reduzidas ao papel de usufrutuárias, ou menos ainda, ao de guardas e conservadoras dos bonitos objetos. Para elas, coitadas, tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu de um casaco velho, faz o papel de uma boneca perfeita, ainda melhor do que a própria boneca perfeita. Um cabo de vassoura pode ser um cavalo sem rival, com vantagem de não impor ao dono sua raça, nem os acidentes da sua forma ou do seu caráter, mas com a capacidade preciosa de ser árabe ou ponney pangaré ou ruano, fuá ou poleiro, à vontade. Uma galinha, um ferro de engomar, um grilo ou uma caixa de fósforos são divertimentos mais interessantes e de mais durável prestigio de que o macaco de pau que sobe por um cordel, do que o trenzinho de ferro com túneis e estações, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar de pinho e tilinta soalhas e guizos de lata. – Estas observações não são originais, mas apesar disso são justas.

É verdade que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos de festas, e fazem a propósito um pouco de rumor. É o atrativo da novidade. É a pressa de ver e experimentar. É oprazer de dizer "meu". É a tentação de fazer inveja aos outros pequenos. É, sobretudo, a mímica do desejo, do alvoroço, da cobiça, do egoísmo apropriador, que os grandes lhes têm ensinado e que os pequenos vão executando, numa adaptação mecânica do sentimento confuso e alvorecente aos recortes do gesto distinto e expressivo.

As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua própria imaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, mais embaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza são assim, devia deixar-se obrar a natureza. Mas os adultos querem o artifício, todos os gêneros de artifício, e impõem-os às crianças, perturbando-lhes o viço da curiosidade espontânea e da livre investigação. Por isso mesmo, a ciência é o último luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo.

Fonte:
Domínio Público

Katia Canton (Poema para Dalí)

Era uma vez
Um sonho de menino
Estranho,
Versátil,
Admirável.
De repente, o tempo não existia mais
Tinha parado,
Congelado,
suspendido.
O relógio começou a escorregar por entre as suas mãos
E o tempo foi derretendo.
O menino então falou comigo:
"eu penso, eu digo e falo
o que vem na mente.
E você sente"
Juntos, escrevemos automaticamente
Tudo o que vem à cabeça
Sem censura
nem suspiro.
A gente se entende.
As imagens que surgem do texto são bonitas.
Surgem Dalí e daqui
Tem sol, tem mar, têm casas e árvores
E tem gente estranha.
As cenas são improváveis
E o ritmo é de um sincopado que não existe,
nem nas mais exóticas músicas que ouvimos.
Apenas sonho de meninos?
Se eu fosse um artista
surrealista
Eu também sonharia assim
Perguntaria teu nome
E no meio da fome
Pediria pra você ficar e pintar comigo
Eu iria me nutrir da tua mão de chocolate
E da tua pele de pêssego.
Juntos, iríamos passar tinta, comemorar
e colorir todos os sonhos do mundo.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Teatro de Ontem e de Hoje (Roda Viva)

Espetáculo que radicaliza as propostas tropicalistas iniciadas em O Rei da Vela e promove seu diretor José Celso Martinez Corrêa à condição de expoente teatral do movimento. Espetáculo agressivo, síntese da ira e da rebeldia contra um momento político que divide a sociedade, entre a aceitação do regime militar ou a luta contra ele.

Tomando o texto de Chico Buarque em torno da vida de um ídolo da canção popular, figura manipulada, quer pela indústria fonográfica, quer pela imprensa, o encenador vê nele a possibilidade de acirrar a crítica à sociedade de consumo, uma das pontas de lança do tropicalismo. Apoiado na eloqüente cenografia e nos figurinos criados por Flávio Império, alcança o limite entre a ação no palco e seus desdobramentos na platéia. Numa passarela que invade o espaço da platéia, ocorrem muitas das cenas criadas para provocar os espectadores.

Tachada como emblema do "teatro agressivo" pelo crítico Anatol Rosenfeld1, a montagem reflete um momento em que o teatro assume esse tom violento, de confronto, de cobrança de atitudes frente a uma situação sociopolítica tensa e insustentável.

Na crítica ao espetáculo, Marco Antônio de Menezes descreve: "A cortina já está aberta quando você chega: enormes rosas à esquerda, enorme garrafa de Coca-Cola à direita, enorme tela de TV no fundo, uma passarela branca avançando até metade da platéia. [...] A campainha toca três vezes, a platéia faz silêncio, ruídos estranhos saem dos alto-falantes, na tela de TV aparece uma frase: 'Estamos à toa na vida'. [...] Entra o coro, com longas túnicas vermelhas e mantilhas pretas. Canta um triste Aleluia, rodeia Benedito. Aparece o Anjo da Guarda (Antônio Pedro), o empresário de TV, com asas negras, cassetete de policial na cintura, maquiagem de palhaço de circo: 'Benedito não serve, nós precisamos de um ídolo! Você será Ben Silver!' E o coro joga para trás as túnicas e mantilhas, é agora um grupo de jovens iê-iê-iê que canta: 'Aleluia, temos feijão na cuia!' [...] O espetáculo não está somente no palco, o coro invade a platéia, conversa com ela, e o empresário pede um minuto de silêncio em homenagem ao ídolo: cada participante do coro olha fixamente um espectador (agora todos já entendem por que a bilheteria insistiu em vender ingressos da primeira fila). [...] O minuto termina, Ben Silver é carregado para o palco num grotesco andor feito de long-plays e fotos de cantores, conduzido por grotescas caricaturas das 'macacas de auditório', que no fim do primeiro ato o levam embora, deitado sobre uma cruz de madeira, nu, cansado sob o peso do próprio sucesso. [...] Ben Silver, esgotado pelo sucesso, procura o consolo de sua mulher [...] para um linda cena de amor que é repentinamente interrompida pela câmara (sic) de TV e pelo Capeta (o jornalista desonesto) [...]. E juntos, o jornalista e o Ibope decretam o fim da carreira de Ben Silver: 'O ídolo é casado! E além de tudo, é bêbado!' Uma procissão de três matronas antipáticas tenta salvar o ídolo exigindo que ele faça caridade. Mas nada adianta, Ben Silver acabou. Só há uma solução: transformá-lo em Benedito Lampião, o 'cantor de protesto', vestido de nordestino, falando de 'liberdade' e de 'vamos lutar'. A esquerda festiva o aclama, o jornalista vendido perde sua porcentagem e a vontade de elogiar o Lampião. O Ibope, vestido de papa, decreta novo fim para Benedito Lampião. Para manter o prestígio, ele deve suicidar-se. [...] A platéia sai do teatro evitando sujar os saltos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Benedito Silva que o coro das fãs devora no final. [...] Tudo é caricatura do religioso no espetáculo, que, como atividade religiosa, se desenvolve em todo o teatro, palco, galerias, platéia (O teatro com que sonhava Antonin Artaud). Para criar o ídolo, ele é liturgicamente paramentado, peça por peça de seu ridículo traje prateado. [...] os atores se dirigem agressivamente à platéia, fazem perguntas, pedem assinaturas em manifestos, sacodem e encaram os espectadores (a censura de 14 anos me parece muito pouco severa para o espetáculo). Ben Silver se encontra com a esposa coroado de espinhos, nu, como o Cristo. A tentativa de salvar o ídolo em decadência é encenada como uma procissão, liderada pelo Capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) - que satiriza o jornalista marrom - usando como cruz o conhecido 'X' de lâmpadas empregado pelos fotógrafos. E a primeira cena entre Benedito e sua mulher é uma caricatura da Visitação de Nossa Senhora. [...] Elementos cristãos, aliás, são misturados com rituais pagãos (o fígado de Prometeu, as orgias de Dionísio), até com rituais políticos (a foice-e-martelo no chapéu nordestino de Benedito Lampião). José Celso, na realidade, mais que dirigir, celebrou Roda Viva".2

Por empregar em modo crítico símbolos eclesiásticos e da sociedade de consumo, e desvendar os bastidores de atuação do mercado cultural - demolindo mitos e padrões, escancarando escândalos e negociatas - Roda Viva encontra sérias oposições tanto entre a crítica e o público, e arregimenta, detratores, quanto entusiastas. Após bem-sucedida temporada no Rio de Janeiro, o espetáculo é invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas - CCC, nas apresentações em São Paulo, onde parte do cenário é destruída e o elenco espancado. Numa viagem a Porto Alegre, nova agressão se registra, o que leva a produção a suspender sua carreira.

Notas

1. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Agressivo. In: TEATRO Paulista 1967. São Paulo: IDART, 1968.

2. MENEZES, Marco Antônio de. Roda Viva, de Francisco Buarque de Holanda. Jornal da Tarde, São Paulo, 2 fev. 1968. Divirta-se, p. 1.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte IV

2.3 Romantismo críticoÉ justamente por essa postura consciente em relação ao cânone tradicional de seu tempo que se pode ligar Sousândrade a um romantismo crítico ou titânico. Segundo Vizzioli (1993, p. 154), o romantismo titânico foi marcado por uma profunda racionalização do ímpeto emotivo primário dos românticos, o que levou muitos autores a imprimirem ao sentimentalismo característico dessa escola um tom racional que, em alguns aspectos, vale-se de procedimentos clássicos, caracterizando um romantismo mais lúcido e racional. Tal postura, segundo o crítico, não implicou uma negação dos preceitos emotivos do Romantismo, antes, formulou-se como uma “das contradições intrínsecas da própria dinâmica do Romantismo”.

Conforme já mencionado, a vertente titânica pressupõe uma postura consciente em relação ao fazer poético, levando a uma modulação da emotividade através do trabalho racional com a linguagem. Em Sousândrade, essa racionalização do ímpeto emotivo é percebida quando o poeta apresenta o elemento natural contaminado pela figura do colonizador e não como a projeção equilibrada desse paradigma.

Outra forma de percebermos a racionalidade do discurso sousandradino é a manipulação da tradição literária dentro de sua obra, pois é comum observarmos no interior dO Guesa um constante diálogo intertextual com obras como A Odisséia de Homero, Eneida de Virgílio, Fausto de Goethe, Os Lusíadas de Camões, entre outras.

Oh, podeis, cortezãos, aperfeiçoando,
            O prémio de ter das ‘ilhas dos amores!’’
            E os lares de Penelope bordando,
            São sós os que honram aos navegadores.
– E onde existe Camões? E aonde Homero?
            Aquelle, em Portugal; e á humanidade
            Este eterno guiando, que primeiro
            As virtudes ensina da amizade,
 (O Guesa. Canto VI, p. 137)


Evidencia-se, nessa passagem, a adoração ao clássico como modelo estético a ser seguido, já que autores e obras consagrados são evocados como referência para a produção poética sousandradina. O aperfeiçoar em busca do prêmio dado aos portugueses, na “Ilha dos amores”, bem como a indicação de que Homero guia os passos do poeta mostram que Sousândrade tem uma certa predileção por esses autores e pela arte que eles representam, ou seja, o discurso clássico. Ao longo do poema as interferências clássicas se fazem presentes como pontos intertextuais. O eu-poético de O Guesa vislumbra um equilíbrio idílico nessas obras e, por isso, coloca-as como prolongamento da pacificação do sujeito. Nos versos que seguem, temos uma visão desse processo:

Vê do arrependimento o incanto adeante
E ouve do amor-primeiro esse murmúro
D’alvoradas de Anninhas; e a que o Dante
Sentia o grande amor, o amor venturo.

– Chega odysseu viajor: para ele correm
A mulher nobre, a muito amada filha,
Os contentes escravos, que não morrem
Já tendo protector. E ao da familia
Doce quadro, risonho qual um sonho,

Parado estava o jovem peregrino
E eu aos olhos de vós, sem arte o ponho,
Que vejais ser da terra o que é divino.

(O Guesa. Canto VI, p. 145)


O eu-poético projeta uma paz na indicação da chegada de Odisseu a sua pátria. O poeta associa a essa personagem, também em périplo, à situação de O Guesa, que vaga pela América em busca da paz.

Nessa medida, cria-se, por meio da consciência crítica, uma linguagem que relaciona a tradição poética à emotividade romântica. A linguagem passa por uma racionalização do traço emotivo. Prova disso é a rigidez formal observável no poema. Na maior parte de O Guesa temos uma métrica regular em quartetos decassílabos, o que remete a uma reminiscência épica no interior do poema. Mesmo nos momentos de irrupção inovadora, encontrados em Tatuturema e Inferno de Wall Street, contidos nos Cantos II e X, respectivamente, é perceptível uma estrutura regular, sendo as estrofes estruturadas de maneira a resguardar a homogeneidade do restante do texto.

Nessa tentativa de racionalizar o impulso emotivo, o poeta maranhense atinge a modernidade uma vez que se posiciona criticamente face à tradição para criar sua maneira romântica de trabalhar o discurso. É bom ressaltar que a modernidade concretiza-se na manipulação consciente da tradição para a instauração do novo, ou seja, o moderno pode ser entendido como um constante questionamento da tradição. Assim, o próprio Romantismo pode ser entendido como um ponto de partida rumo à modernidade.

Na busca dessa racionalidade, o poeta maranhense, muitas vezes, vai da ironia à sátira em uma velocidade vertiginosa e conturbada. Daí dizermos que a ironia sousandradina materializa-se na dilaceração do veio romântico “epigonal” e na exposição lúcida de uma sociedade corrompida pela cobiça. No fragmento que segue podemos observar um exemplo desse comportamento na inusitada poética sousandradina.

(Xèques surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-managers, Stockjobbers, Pimpbrokers, etc., etc., apregoando:)
– Hárlem! Erie! Central! Pennsylvania!
= Milhão! cem milhões!! mil milhões!!!
– Young é Grant! Jackson,
                            Atkinson!
Vanderbilts, Jay Goulds, anões!

(O Guesa, Canto X, p.231)


Neste excerto, a equiparação dos substantivos próprios por meio do uso do verbo ser – único verbo da estrofe – liga os termos e pressupõe uma gradação, expressa pelos dois versos iniciais. Essa gradação, fundamentada pela cobiça, faz com que as personagens citadas, resumidas ironicamente ao termo “anões”, prolonguem uma atitude depreciativa em relação à realidade, que aparece degradada. Cantada nessa estrofe, a contaminação da pureza pela negatividade estabelece a tensão entre os termos que passam a ser vistos negativamente.

Esse posicionamento crítico revela um olhar distinto face ao elemento natural. O Romantismo epigonal, como vimos, tende a ver positivamente a relação homem/natureza. O índio (elemento de brasilidade) e o branco são aproximados e, às vezes, identificados. Essa visão pode ser observada na obra de José de Alencar quando este coloca em pé de igualdade o branco colonizador e o índio Peri.

Em O Guesa o espaço natural, impregnado pelo elemento externo, degrada o equilíbrio e contamina a essência nacionalista tão valorizada pelo Romantismo. A ironia sousandradina advém da consciência da degradação, imposta ao elemento de brasilidade: “Tangendo o boi do arado. O povo infante/ O coração ao estupro abre ignorante” (Canto II, p.21). Desse modo, o natural serve ao poeta como instrumento de crítica, pois revela a contaminação dos valores inerentes à cultura brasileira, que incorpora os traços civilizados e, nesse processo, corrompe o veio genuinamente nacional.

A constatação dessa situação cria uma aversão ao colonizador, visto como responsável pela degradação:

 (MUXURANA histórica)

– Os primeiros fizeram
As escravas de nós;
Nossas filhas roubavam,
Logravam
E vendiam após.
(O Guesa, Canto II, p. 25)

Os “primeiros”, entendidos como os europeus, agem negativamente sobre o traço nacional, sendo caracterizados como ladrões e aproveitadores. O uso de “vendiam” traz à cena a exposição dos fins mercantilistas que moviam a ação do colonizador.

O olhar crítico em relação ao elemento natural revela uma espécie de inversão de papéis, observada no fragmento abaixo:

(Escravos açoitando ás milagrosas imagens:)

– Só já são senhôzinhos
Netos d’imperadô:
Tudo preto tá fôrro;
            Cachorro
Tudo branco ficou!
(O Guesa. Canto II, p. 28)


No excerto acima, a inversão pode ser verificada na rubrica “Escravos açoitando ás milagrosas imagens”. O verso “tudo preto tá fôrro” remete a uma possibilidade de liberdade; a ação de açoitar indica, no entanto, uma prisão cultural. Ao usar um instrumento de punição contra a própria cultura civilizada, iconizada pelas “milagrosas imagens”, o escravo incorpora a perspectiva do branco, perdendo suas particularidades culturais, tornando-se, assim, uma projeção degradada do homem civilizado.

Observa-se ainda em algumas passagens de O Guesa uma postura melancólica do enunciador-poético não apenas diante do passado, como também de uma conseqüente perda das “origens”:

Mas o egoismo, a indifferença, estendem
            As éras do gentio; e dos passados
            Perdendo á origem chara estes coitados,
            Restos de um mundo, os dias tristes rendem.

Quanta degradação! Razão tiveram
            Vendo, os filhos de Roma, todos barbaros
Os que na patria os olhos não ergueram,
Nem marcharam á sombra dos seus labaros.

O estrangeiro passa: que lhe importa
A magnolia murchar, se elle carece
Tão só d’algumas flores?... Anoitece
N’um somno afflicto a natureza morta!

[...]

Selvagens – mas tão bellos, que se sente
Um barbaro prazer n’essa memoria
Dos grandes tempos, recordando a história
Dos formosos guerreiros reluzentes:

[...]

Selvagens, sim; porém tendo uma crença;
De erros ou bôa, acreditando n’ella:
Hoje, se riem com fatal descrença
E a luz apagam de Tupana-estrella..
(O Guesa, Canto II, p. 21-2)


Nessa passagem, as “éras” do gentio figuram como ponto de constatação de uma descaracterização da pureza primitiva em contato com o traço europeu. Numa inversão de valores, os brancos, “os filhos de Roma”, os detentores da cultura (supostamente civilizados) são “bárbaros” que agridem e destroem o espaço natural. A expressão “anoitece”, associada à “morte da natureza”, parece remeter à participação dos nativos no processo de degradação. Estes, por sua vez, “não erguem os olhos”, negligenciando sua própria natureza primitiva, tornando-se, assim, agentes de sua destruição.

Nesse sentido, é a morte cultural que determina a melancolia do discurso que, por esse motivo, torna-se um grito pela efetiva distinção de nossa realidade frente ao externo. Sousândrade, diferentemente de sua geração, enquadra-se na visada nacionalista menos por cantar o espaço interno recheado de beleza e plenitude, do que por revelar conscientemente a situação degradada de nossa cultura face ao externo.

(Viola rindo:)

– D’este mundo do diabo
Dom Cabral se apossou,
E esta noite d’Arabia
            Astrolabia
Desde então se bailou.
(O Guesa, Canto II, p.30)


Daí termos, na poética do maranhense, um posicionamento distinto em relação ao “ufanismo” romântico. Sousândrade busca o desnudamento da artificialidade desse movimento e, por esse motivo, pode ser entendido como um romântico titânico. Esse desnudamento é perceptível quando o poeta introduz, em um tom de galhofa e ridicularização, no Canto II de O Guesa, poetas como Vitor Hugo, Byron, Lamartine, além de poetas de nosso Romantismo como Gonçalves Dias, Magalhães, entre outros:

(Beatos pasmadores)

–  Branca estatua de Byron
Faz cegueira de luz?
== Breu e brocha á criada!
            E borrada:
Ô, ô, ô, Ferraguz!             (Risadas)
            (Pasmadores impios)

Lamartine é sagrado?
== Se não tem maracás,
Ô, ô, ô,! – vibram arcos
Macacos,
Tatús-Tupinambás.
(O Guesa. Canto II, p.36)


A crítica ao discurso corriqueiro do Romantismo fica evidente pela incorporação do elemento “maracás” (instrumento musical utilizado em rituais indígenas) que, associado à interrogação e a uma “cegueira de luz”, remete diretamente à artificialidade do discurso romântico. A ridicularização de Byron e Lamartine, perceptível pela sonoridade em eco do fonema /o/ e pelas risadas aproximadas ao termo “macacos”, indica a dominação do traço nacional, metaforizado no elemento “Tatú-Tupinambá”.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia IV)

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

CONTA A LENDA QUE DORMIA

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada

A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
- Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

CONTEMPLO O LAGO MUDO

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos

Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO

Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

DA MINHA IDÉIA DO MUNDO

Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus ! Além-Deus!  Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...

DE ONDE É QUASE O HORIZONTE

De onde é quase o horizonte
Sobe uma névoa ligeira
E afaga o pequeno monte
Que pára na dianteira.

E com braços de farrapo
Quase invisíveis e frios,
Faz cair seu ser de trapo
Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito
A névoa só com a ver.
A vida? Não acredito.
A crença? Não sei viver.

DE QUEM É O OLHAR

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando ?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade

De eu ter passos comigo ?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim próprio mesmo
Em alma mal existo,

Toma um outro sentido
Em mim o Universo
- É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora
– Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua
-Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora!

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

DITOSOS A QUEM ACENA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida !
São felizes : têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

DIZEM QUE FINJO OU MINTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não. Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê !

DIZEM?

Dizem?
Esquecem.
Não dizem ?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por quê
Esperar ?
Tudo é
Sonhar.

DOBRE

Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.

DORME ENQUANTO EU VELO...

Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.

DORME, QUE A VIDA É NADA!

Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,
Dando o que nunca damos.

Dorme sobre o meu seio

Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O 'spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Antonio Facci (Sem Palavras II)

http://abibliapelabiblia.blogspot.com
Sem palavras para contar histórias, mesmo as mais simples, aquelas que povoam as mesas dos bares da periferia.

Sem palavras para relatar as historietas domésticas, relatando travessuras dos garotos, a gulodice de algum membro da família.

Sem palavras para descrever o cãozinho de estimação que abana o rabo e beija os pés do dono, mesmo depois de haver apanhado.

Sem palavras que possam descrever os olhares incrédulos dos que recebem notícias a eles não destinadas.

Sem palavras para descrever o brilho dos olhos do senhor de cabelos brancos ao falar de suas aventuraas amorosas, quase sempre imaginárias.

Sem palavras!

Fonte:
FACCI, Antonio. Sem Palavras. Maringá: Sthampa, 2003.

Trova 247 - Alcy Ribeiro Souto Maior (RJ)


Simone Pedersen (Embriagado de Versos)

VOZ DE GELO

 Quando você diz que me ama,
 Sua voz ecoa no meu vazio.
 É tão seco dentro de mim,
 Que o som rasga minhas entranhas.
 Não quero mais ouvir.
 Houve, sim, tempo em que queria...
 Sonhava com sua melodia.
 Vivia pela nossa harmonia.
 O tempo passou.
 Você passou.
 E como não deixou marcas,
 não faz diferença.

 O CICLONE

 O ciclone se aproximou
 Com imensa força e rapidez
 As nuvens densas
 Escondiam seu interior
 Extasiada com tanta volúpia
 Permiti que se aproximasse
 Dancei em seus ventos
 Rodopiando centro acima
 Subia e subia
 Cada vez mais imersa
 Nessa nova vida
 Distante da terra
 Meus pés flutuavam
 Nada mais existia
 Além do ciclone e eu.

 QUANDO PASSOU

 A calmaria chegou
 Assustada percebi
 Meus pés afundavam
 Em areia movediça
 Abaixo me puxava e puxava
 Até que morri
 Mil vezes seguidas
 Sem ar, sem espaço
 Sem visão, sem movimento
 Meu corpo na terra
 Lama na lama
 Lágrimas marrons
 Até que não mais era.

A BONECA

Pés descalços no chão
Corpo disforme, raquítico
Barriga grande
Dedo sujo na boca

Terra molhada,
Esgoto a céu aberto
Caixas de papelão
Lar dos subumanos

Urubus e capivaras
Animais de estimação
A boneca tão limpinha
Aninhada no coração

A menina cresceu
E cheirou cola
Depois vendeu seu corpo
Assaltou pedestres felizes
E se mudou para a prisão...

Mas a boneca, ah!
Aquela boneca
Sem cabelos
Lavada com lágrimas
Choradas pela dor de fome
A boneca, ah, a boneca!
A menina levou com ela.

ABANDONO
Mandela

 Você partiu sem despedidas nem explicações
 Eu busquei respostas no passado que preenchessem o vazio
 O porta-retrato no lixo eu recuperei
 Um pijama que não será lavado
 Mosaico da tua presença impregna os sentidos
 Lembranças de frases jogadas:
 “Controladora...”
 “Enruga as minhas asas...”
 “Vai: destranca a gaiola...”

 Era um ninho aberto
 Você não sabia?
 Enruguei minhas asas por que quis
 Subi grades imaginárias
 Em minha volta
 Agora
 Não beijarei flores perfumadas ,
 Caminharei por becos imundos, sozinha

 Sem você, não sou borboleta
 Sou lagarta, agarrada, desconfiada

 Do que tenho medo? Não é medo de cair.
 É medo de te ver voejar em outro jardim.

Fontes:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51.html
http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/2010/06/simone-pedersen-escritora-e-poeta.html