sábado, 4 de julho de 2009

Trova XXXVI

Edson Jorge Badra (Poesias)


CONFISSÕES DE UMA ALMA DO INFERNO

Quando surgiu em mim, certa manhã de agosto,
Da regeneração a chama que tanto arde,
Embalou-me uma voz a me dizer com gosto:
- “Regenera-te, sim, mas deixa pra mais tarde!”

Deixei-me seduzir, mas estava disposto,
Quando o dia chegasse, a não bancar covarde.
Nova oportunidade. E, com grande desgosto.
Ouvi a mesma voz a me dizer: “Mais tarde!”

Um dia, abandonei o corpo em que habitava.
Enquanto lá no céu eu a entrada implorava,
Ouvi atrás de mim a voz de Satanás,
Dizendo, a gargalhar, bem cínico e medonho:
- “Não hás de alimentar agora nenhum sonho,
Porque, alma imbecil, já é tarde demais!”

Uma outra, carregada de humor em sua mensagem:
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CINISMO

- "Se não me amas, então por que mentiste?
Tão certa estavas do teu grande amor,
que mesmo quando um dia tu partiste
não foi assim tão grande a minha dor.

Imbecil e cretino! o que sentiste,
momentãnea paixão, falso calor,
deixou-me o coração magoado e triste,
que me acompanhará por onde eu for.

- "Que possa eu explicar-te neste instante?
Não desejava provocar-te o pranto,
tu que a mim te entregavas tão confiante!

Então menti. Pior: sofreste mais!
Tua desdita foi amar-me tanto
e o meu defeito foi ser bom demais.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Edson Jorge Badra (1934)



Nasceu em Guajará-Mirim, no dia 12 de junho de 1934, onde viveu toda sua infância.

Seus estudos foram feitos no Colégio Mackenzie, em São Paulo e Gamon, em Lavras-MG.
Concluiu o curso de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais e Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Retornou a Guajará-Mirim onde advogou até 1972 e exerceu o cargo de Defensor Público, Promotor Substituto, Promotor Público e Procurador da Justiça. Foi professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira durante 20 anos.

Emitiu opinião em diversos livros e prefaciou outros.

É membro fundador da União Brasileira dos Escritores de Rondônia, e da Academia Rondoniense de Educação. Foi nomeado por decreto governamental membro do Conselho Estadual de Cultura, chegando ao cargo de Presidente.

Atuou como Vice-Presidente da Academia de Letras de Rondônia, fazendo parte da primeira Diretoria, no biênio 1986/1987.

Possui duas obras publicadas:

"Literatura de Rondônia" - 1987 (ensaio), onde o poeta analisa, opina e traça paralelo sobre as publicações e produtores literários do Estado;e

"Sonhos Prosaicos e Poéticos", onde reúne prosa, poemas e hinos.

Sua obra poética vai do pitoresco ao lírico formal. A forma é original e inteligente; reflete a arte, o conhecimento e o amadurecimento poético do autor.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Cruz e Souza (A Borboleta Azul)


No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fulgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além...

Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma, minha, que alegria a flux!...

No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.

Fonte:
Domínio Público

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Trova XXXV

Monteiro Lobato (Os dois Ladrões)


Dois ladrões de animais furtaram certa vez um burro, e como não pudessem reparti-lo em dois pedaços surgiu a briga.

- O burro é meu! – alegava um – o burro é meu porque eu o vi primeiro…

- Sim – argumentava o outro – você o viu primeiro; mas quem primeiro o segurou fui eu. Logo, é meu…

Não havendo acordo possível, engalfinharam-se, rolaram na poeira aos socos e dentadas.

Enquanto isso um terceiro ladrão surge, monta no burro e foge a galope.

Finda a luta, quando os ladrões se ergueram, moídos da sova, rasgados, esfolados…

- Que é do burro? Nem sombra! Riam-se – risadinha amarela – e um deles, que sabia latim, disse:

- Inter duos litigantes tertius gaudet.

Que quer dizer: quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Fábulas. SP: Brasiliense, 1994.

Isaac Asimov (Versos na Luz)



A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiaçío da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas jóias, pequena, porém de extremo bom-gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de jóias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com jóias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém ressudava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada freqüentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

- Seria comercialização – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

- Eu não teria coragem de cobrar um centavo – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

- Por favor, Courtney – quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

- Não pode fazer isto – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

- Não exijo rapidez e eficiência – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

- A partir do momento em que o robô está em minha casa – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

- Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

- Absolutamente – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

- Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

- Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

- Mas, se ele está mal regulado – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

- Nunca – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro-chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranqüila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultará num fracasso desa-lentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

- Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

- Aquele é Max – disse a sra. Lardner.

- Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

- Oh, não – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

- De modo nenhum, sra. Lardner – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

- Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

- A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.
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Conto do livro Nós, Robôs (The Complete Robot). É uma coletânea de 31 contos sobre os robôs publicados entre 1939 a 1977, inclusive as histórias reunidas na primeira coletânea, I, Robot(1950) (Eu, Robô).

Contém todas as histórias com a participação de Susan Calvin, e histórias, como por exemplo, 'O Homem Bicentenário', 'Pobre Robô Perdido' e 'Robbie'. 'Robbie' é a primeira história de robôs escrita por Asimov.
Os contos são:

Robôs não humanos
O melhor amigo de um garoto - Um garoto tem um robô cachorro
Sally - Um carro robô
Um dia - Um computador contador de Histórias

Robôs Imóveis

Contos com computadores

Ponto de vista
Pense!
Amor verdadeiro

Robôs Metálicos
Robô AL-76 extraviado
Vitória involuntária
Estranho no paraíso
Versos na luz
Segregacionista
Robbie

Robôs humanóides
Vamos nos Unir
Imagem Especular (Uma história com Elias Baley e Daniel)
O incidente do tricentenário

Powell e Donovan
Primeira Lei
Corre-corre
Razão
Pegue aquele coelho

Susan Calvin
Mentiroso
Satisfação garantida
Lenny
Escravo
O robozinho perdido
Risco
Fuga
Evidência
O conflito evitável
Intuição feminina

Dois clímax
...Para que vos ocupeis dele
O homem bicentenário

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Fontes:
ASIMOV, Isaac. Nós, Robôs. SP: Hemus Editora, 1982.
- Sobre o livro = Wikipedia

Franz Kafka (Poseidon)

Escultura de Poseidon, em Copenhague
Poseidon estava sentado à sua mesa de trabalho e fazia contas. A administração de todas contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho infinito. Poderia dispor de quantas forças auxiliares quisera, e com efeito, tinhas muitas, mas como tomava seu emprego muito a sério, verificava novamente todas as contas, e assim as forças auxiliares lhe serviam de pouco. Não se pode dizer que o trabalho lhe era agradável e na verdade o realizava unicamente porque lhe tinha sido impôsto; tinha-se ocupado, sim, com frequência, em trabalhos mais alegres, como ele dizia, mas cada vez que se lhe faziam diferentes propostas, revelava-se sempre que, contudo, nada lhes agradava tanto como seu atual emprego. Além do mais era muito difícil encontrar uma outra tarefa para ele. Era impossível designar-lhe um determinado mar; prescindindo de que aqui o trabalho de cálculo não era menor em quantidade, porém em qualidade, o Grande Poseidon não podia ser designado para outro cargo que não comportasse poder. E se se lhe oferecia um emprego fora da água, esta única idéia lhe provocava mal-estar, alterava-se seu divino alento e seu férreo torso oscilava. Além do mais, suas queixas não eram tomadas a sério; quando um poderoso tortura, é preciso ajustar-se a ele aparentemente, mesmo na situação mais desprovida de perspectivas. Ninguém pensava verdadeiramente em separar a Poseidon de seu cargo, já que desde as origens tinha sido destinado a ser deus dos mares e aquilo não podia ser modificado.

O que mais o irritava – e isto era o que mais o indispunha com o cargo – era inteirar-se de que como representavam com o tridente, guiando como um cocheiro, através dos mares. Entretanto, estava sentado aqui, nas profundidades do mar do mundo e fazia contas ininterruptamente; de vez em quando uma viagem da qual além do mais, quase sempre regressava furioso. Daí que mal havia visto os mares, isso acontecia apenas em suas fugitivas ascenções ao Olimpo, e não os teria percorrido jamais verdadeiramente. Gostava de dizer que com isso esperava o fim do mundo, que então teria certamente ainda um momento de calma, durante o qual, justo antes do fim, depois de rever a última conta, poderia fazer ainda um rápido giro.

Fonte:
Covil do Orc

Franz Kafka (O Abutre)


Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

- É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!

- Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?

- Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue agüentar meia hora?

- Não sei lhe dizer. – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

- De qualquer modo, vá, peço-lhe.

- Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

Fonte:
Covil do Orc
Imagem = D. Afonso Henriques

Franz Kafka (3 Julho 1883 – 3 Junho 1924)


Franz Kafka (língua tcheca: František Kafka)(Praga, 3 de julho de 1883 - Klosterneuburg, 3 de junho de 1924) foi um dos maiores escritores de ficção da Língua alemã do século XX. Kafka nasceu numa família de classe média judia em Praga, Áustria-Hungria (agora República Tcheca). O corpo de obras suas escritas— a maioria incompleta e publicadas postumamente — destacam-se entre as mais influentes da Literatura ocidental.

Seu estilo literário presente em obras como a novela A Metamorfose (1915), e romances incluindo O Processo (1925) e O Castelo (1926) retratam indivíduos preocupados em um pesadelo de um mundo impessoal e burocrático.
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Filho mais velho de Herrmann Kafka, um abastado comerciante judeu, e de sua esposa Julie, nascida Löwy. Nascem depois dele dois meninos, que irão morrer pouco tempo após o nascimento, fato que segundo alguns psicólogos especialistas na obra de Kafka, será um factor determinante para o sentimento de culpa presente nos seus livros; e três meninas, sendo Ottilie a sua irmã favorita, com quem ele chega a morar algumas vezes.

Kafka cresce sob as influências de três culturas: a judaica, a checa e a alemã.

No ano de 1902 conhece Max Brod, seu grande amigo, e no ano de 1922 pedirá a ele para que destrua todas as suas obras após sua morte.

Em 1903, Kafka tem sua primeira relação sexual, o que lhe trará insegurança por toda sua vida. Neste ano também, ele fará sua primeira visita a um sanatório. Teve vários casos amorosos mal resolvidos, uns por intervenção dos pais das moças, outros por desinteresse próprio.

Entre 1914 e 1924, Kafka esteve três vezes perto do casamento. Desistiu sempre. Tentou primeiro por duas ocasiões com Felice Bauer, uma alemã com quem se correspondeu até 1917. A última vez foi com Milena Jesenská, mais nova do que ele.

Kafka falece dia 3 de junho de 1924 no sanatório Kierling perto de Klosterneuburg na Áustria. A causa oficial da sua morte foi insuficiência cardíaca, apesar de sofrer de tuberculose desde 1917.

Educação

Kafka aprendeu alemão como sua primeira língua, contudo era quase fluente em tcheco. Kafka se considerava incapaz nos estudos, tanto que em uma carta a Felice Bauer ele declara que não acreditava que conseguiria concluir o ensino médio. No momento de decidir que carreira seguir, Franz Kafka opta por cursar Filosofia, no entanto é impedido pelo seu pai, com quem não tinha uma relação afetividade. Tendo de decidir entre Química e Direito, Franz opta pela faculdade de Química junto com seu grande amigo Max Brod. Permanece 15 dias no curso e desiste, entrando de vez para a faculdade de Direito, que será tema de boa parte de suas obras. Formado em Direito, em 1906, trabalhou como advogado a princípio na companhia particular Assicurazioni Generali e depois no semi-estatal Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho. Solitário, com a vida afetiva marcada por irresoluções e frustrações, Kafka nunca atingiu fama ou fortuna com seus livros, na maioria editados postumamente. Mesmo assim era respeitado nos círculos de literatura que frequentava.

Obra

O seu livro A Metamorfose (1915) narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco insecto; O Processo (1925) conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora; O Castelo (1926), o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram. O livro Na Colônia Penal (1914) fala sobre uma maquína que tem o poder de executar sentenças. Trata-se de uma história absurda sobre uma Colônia que usa esta máquina para torturar e matar pessoas, sem que estas sequer saibam o porquê de sua morte. O livro é uma crítica aos sistemas despóticos de poder. Essas quatro obras-primas definem não apenas boa parte do que se conhece até hoje como "literatura moderna", mas o próprio caráter do século: kafkaniano.

Autor de várias coletâneas de contos, Kafka escreveu também a avassaladora Carta ao Pai (1919) e centenas de páginas de diários. Deixou inacabado o romance Amerika.

Morreu num sanatório perto de Viena, onde se internou com tuberculose. Desde então, seu legado - resgatado pelo amigo Max Brod - exerce enorme influência na literatura mundial.


Bibliografia

A escrita de Kafka é marcada pelo seu tom despegado, imparcial, atenciosa ao menor detalhe, e que abrange os temas da alienação e perseguição. Os seus trabalhos mais conhecidos abrangem temas como as pequenas histórias A Metamorfose, Um artista da fome e os romances O Processo, América e O Castelo. Os seus contos são julgados como verdadeiros e realistas, em contato com o homem do século XXI, pois os personagens kafkanianos sofrem de conflitos existenciais, como o homem de hoje. No mundo kafkaniano, os personagens não sabem que rumo podem tomar, não sabem dos objetivos da sua vida, questionam seriamente a existência e acabam sós, diante de uma situação que não planejaram, pois todos os acontecimentos se viraram contra eles, não lhes oferecendo a oportunidade de se aproveitar da situação e, muitas vezes, nem mesmo de sair desta. Por isso, a temática da solidão como fuga, a paranóia e os delírios de influência estão muito ligados à obra kafkaniana, sendo comum a existência de personagens secundários que espiam, e conspiram contra o protagonista das histórias de Kafka (geralmente homens, à exceção de alguns contos onde aparecem animais e raros onde a personagem principal é uma mulher). No fundo, estes protagonistas não são mais que projeções do próprio Kafka, onde ele expõe os seus medos, a sua angústia perante o mundo, a sua solidão interior.

A obra sobre Kafka é já de maior dimensão do que o trabalho próprio do autor, e vai desde estudos literários sérios até análises psicológicas do autor, a quem já foram atribuídos todos os tipos de complexos e traumas concebíveis. A própria sexualidade de Kafka chegou a ser discutida, apesar de que para muitos de seus leitores o desejo por mulheres estar evidente na maioria de suas principais obras, e o próprio Kafka não ter dado em vida nenhuma razão para que alguém afirmasse que ele era homossexual. No entanto, a obra de Kafka tem despertado enorme interesse entre os leitores gays pois, de acordo com Ruth Tiefenbrun, a maior parte dos seus personagens são homens homossexuais, que simultaneamente exibem a necessidade de se esconder e de se exibir. Já Gregory Woods refere que, mesmo que a sexualidade de Kafka seja controversa, tal não deve impedir a apreciação dos seus textos no âmbito da literatura gay, e que as histórias de homens isolados, forçados a não ter certezas na vida, que estão em constante perigo de ser descobertos, tocam fortemente na sensibilidade de todos os gays.

Livros e Contos

Cenas de um Casamento no Campo (1907)
Considerações (1908)
Aeroplano em Brescia (1909)
Amerika (1910,1927)
O Veredicto (1912)
A Metamorfose (1912, 1915)
A Sentença (1912, 1916)
Meditação (1913)
Contemplação: O Foguista (1913)
Diante da Lei (1914, 1915)
A Colônia Penal (1914, 1919)
O Processo (1914,1925)
Um Relatório para a Academia (1917)
A Preocupação de um Pai de Família (1917)
A Muralha da China (1917, 1931)
Carta ao Pai (1919)
Um Médico Rural (1919)
Poseidon (1920)
Noites (1920)
Sobre a Questão das Leis (1920)
Primeiro Sofrimento (1921)
Cartas a Milena (1920, 1923)
Investigações de um Cão (1922)
Um Artista da Fome (1922, 1924)
O Castelo (1922, 1926)
Uma Pequena Mulher (1923)
A Construção (1923)
Josefina, a Cantora ou O Povo dos Ratos (1924)
Sonhos

Fonte
Wikipedia

Falecimento de Rodrigo de Souza Leão

Rodrigo de Souza Leão (Poesias Escolhidas)


CORAÇÃO DE ISOPOR

sendo você o ápice de mim
o que sou enfim
quando luz meu labirinto
abismo de muitas funduras
sei que narra sensações
que vem e vão
como quimeras quentes
são apenas cavalos saídos
das mãos dos pés do peito
nu dorso nô
crepom capim que isopor
de tudo na cidade amor

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DELÍRIO OLFATIVO

As lembranças
São lambanças que fiz

Dando aulas pra morte
Eu aprendi
A manusear o giz

Do desespero

Nem sei como sobrevivi
Ao forte fedor das flores

E ao meu próprio cheiro
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CANÇÃO DA TORRE MAIS BAIXA

quero a antilógica
do exagero
o antivôo
dos antílopes
ou o quase pipocar
das corças
neste desequilíbrio
equilibrado que sou
em você reticências
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Fonte:
Lowcura

Rodrigo de Souza Leão (4 Novembro 1965 – 2 Julho 2009)



Rodrigo Antonio de Souza Leão nasceu em 4 de novembro 1965. Formado em jornalismo, tem poemas publicados no "O Correio das Artes", revista Babel e fez parte da I Mostra de Poesia Carioca. É autor de vários livros em formato pdf (e-book/Virtualbooks). Finalista do Prêmio Uapê/2001. Consta da antologia Na virada do século – Poesia de invenção no Brasil. Tem resenhas e reportagens publicadas em O Globo e Rascunho (Paraná).

Graduado em jornalismo no ano de 1988, Rodrigo só pôde exercer plenamente a função de repórter dez anos depois de formado. Um acidente de carro tirou-lhe momentaneamente do trilho jornalístico. Durante o período de recuperação solidificou a sua formação na área de humanas. Foi colocando os vagões em ordem e escrevendo seu romance Carbono Pautado, revisado pelo escritor Luiz Antonio Aguiar.

Mas antes do acidente, nos anos oitenta é que começa a surgir espaço para a arte na vida do jovem. É na efervescência cultural daquela época, em meio a aurora do rock Brasil, que começa escrevendo letras para o grupo punk Eutanásia. Não demora muito e forma com João Athaide, o grupo PátriArmada - próximo ao estilo new wave e ao pós-punk. Participa da cena carioca. Faz apresentações nas danceterias Metrópoles, Circo Voador, Let it Be, Made in Brazil.

Participa como vocalista e letrista de outras bandas como Morganas, Ensaio a 4.Assina seu primeiro direito autoral em 1988. A música se chama Esquina do Pecado e tinha a co-autoria de André Trigueiro e Billy Brandão, na ocasião, bateristas e guitarristas da banda homônima ao título da canção.

.Estuda canto lírico no conservatório Villa Lobos, com o tenor Paulo Barcelos, a quem deve a sua formação musical. Estuda e aprende a gostar da música erudita também.Começa a trabalhar na SASSE A Seguradora da Caixa. Trabalha na Assessoria de Imprensa e no setor de Marketing.Concilia estudo/trabalho/música. É convidado a participar da equipe do programa Informe Imobiliário,na TV Corcovado, canal 9, Rio de Janeiro.
Assume as funções de editor e repórter.

Em 1989 sofre o acidente de carro, assunto que ainda retine no interior do jornalista e vibra de forma estranha dentro do poeta. Tanto que detesta falar sobre o passado.

A recuperação é lenta. Há pouca melhora até 1994 quando volta a escrever. Ressurge das cinzas. Fênix? Nasce do zero. Ele ainda é o "garoto" que começou a escrever em O Preto no Branco, jornaleco do colégio Brasil América, que fazia oposição ao presidente do grêmio e não menos amigo Marcelo Paixão.Conclui (em 1995) Carbono Pautado. No mesmo ano compra um computador e ingressa na internet, ocasião em que estava surgindo o Poesia Diária, de Cláudio Alex. Trabalham juntos.

Cria o CAOX, sítio cibernético e o Boletim do Caox, um e-zine dedicado a veiculação de poesia na web.Em 1996 nasce o Balacobaco, entrevista.Soares Feitosa disponibiliza no Jornal de Poesia as entrevistas de Rodrigo de Souza Leão. No mesmo ano tem poemas publicados no O Correio das Artes - o suplemento cultural mais antigo do Brasil.

Em 1997 participa e ganha um concurso no programa Esporte Real.Seu soneto é lido por Armando Nogueira na TV. Ainda no ano em questão, Affonso Romano de Sant'Anna faz uma crônica, publicada no jornal O Globo, sobre o poema Palmas, onde Rodrigo mostra a indignação diante da realidade brasileira.
Em 1998 é classificado e participa da I Mostra de Poesia Carioca. Publica o livro de poemas Retalhos.

Tem seu trabalho reconhecido em colunas como a do Gravatá e na Revista da Internet.Cria o LERo e o Professor Poesia. Ambos destinados à divulgação de poetas da internet.É o repórter do Conversa aos Domingos. Desdobramento do seu trabalho no PD, agora junto com Asta Vozondas.Rompendo o século, Rodrigo participa da criação da Revista Agulha.
Edita quatro números junto com Cláudio Willer e Floriano Martins.

Em pleno ano 2000, suas atividades atuais são ligadas ao seu sítio Caox, onde podemos encontrar poemas em mp3, ensaios e entrevistas com grandes nomes da literatura brasileira. Continua como compositor.Trabalha no Jornal Rascunho, do Paraná, até abril,como entrevistador.É convidado por Nara Gil para trabalhar no site do Gilberto Gil.

Recebe a menção honrosa classificando-se entre centenas de poetas no prêmio UAPÊ, divulgado pela REVISTA CULT. È publicado na Revista da Uapê.Tem 12 e-books de poesia na VIRTUALBOOKS.

É convidado para antologia poética do site poetry.com.Publica em papel Há Flores na Pele, Editora TREMA.

Suas entrevistas estão pelos diversos sites de poetas que entrevistou, cantores e artistas em geral.

Trabalhou no Balacobaco onde recebe auxílio luxuoso da webdsigner Andréa Augusto.
Conta da antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil, organizada por Frederico Barbosa e Claudio Daniel.

Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 02 de julho de 2009, de ataque cardíaco, aos 43 anos de idade.

Sobre o seu trabalho poético, Frederico Barbosa se manifesta: “(...) Em tempos de poesia rala, descritiva e intelectualóide, a poesia de Rodrigo de Souza Leão é um antídoto perfeito. Linguagem densa e enxuta a serviço da emoção mais crua. Impossível ler sem sentir um soco no estômago. Impossível não se impressionar. E Rodrigo convoca Rimbaud, Baudelaire, Drummond, todos relidos à luz de nossos dias, todos fazendo sentido. Não estão lá apenas para ostentar conhecimento: significam! O livro se fecha com o seu "resumo" : pulei / de uma janela / deitada // andei / na nata iceberg / do leite // caí / de pára-queda / no nada // subi / cavando / com enxada". Em resumo, é preciso que se conheça a poesia de Rodrigo de Souza Leão. Poesia rara que se faz sentir e que sobe, "cavando / com enxada" dentro do leitor”.

Já Antonio Carlos Secchin assim se expressou diante da poesia de Rodrigo Souza Leão: “é necessário distinguir a necessidade intrínseca de expressão (que pode demandar variadas formas) do virtuosismo verbal; no seu caso, a meu ver, convivem ambas as vertentes. Metáforas originais, arraigadamente pessoais (o melhor de sua poesia), ao lado de certas facilidades retóricas, como por exemplo o fluxo próximo ao surrealismo e a insistência escatológica,”

Produção Literária :

Em papel:

Retalhos (Ed. PD) e Há Flores na Pele (Ed. Trema e Ed.Manufatura).

Formato e-book:

XXV Tábuas
No Litoral do Tempo
Síndrome
Impressões sob Pressão Alta
Na visícula do Rock
Miragens Póstumas
Meu primeiro Livro que é o Segundo
Uma temporada nas Têmportas
O Bem e o Mal Divinos
Suorpicios Mind
Omar

Ainda em home page:

A paz amanhahoje
Já prontos faltando digitar:
Aparelhos, Poemas Longos, Poemas para Sylvia,
Poemas para Bruno, 1 litro de loucura e 500 gramas de razão, Antígona 6, Poemas Avulsos e Poemas para Marina (Livrinho infantil lindinho).

Romances finalizados:

Memórias de um Auxiliar de Escritório (Carbono Pautado) TEXAS

Fontes:
Luiz Alberto Machado
Virtual Books

Rodrigo de Souza Leão (O Escritor em Xeque)



Com um texto atraente e incômodo, Rodrigo de Souza Leão afirma sua condição: poeta. Sua prosa está contaminada de poesia.

No livro Todos os cachorros são azuis, o autor narra, através de uma experiência autobiográfica, a trajetória de um homem internado no hospício. E destaca três momentos da vida do personagem – infância, adolescência e fase adulta – para costurar uma narrativa marcada pela fragmentação do ser humano, característica que dialoga com a produção de alguns autores contemporâneos.

Não leia o livro à espera de linearidade, pois é justamente a ausência dela que prende o leitor. A escrita de Rodrigo torna-se mais valorosa quando lembramos que trata-se de uma autor esquizofrênico – como ele gosta de deixar claro. O escritor tem a generosidade de mergulhar no seu rico inconsciente e nos apresentar personagens que não conseguimos enxergar em nosso cotidiano.

Personagens delirantes apresentam momentos de lucidez. Rodrigo durante a entrevista concedida em sua casa, na Lagoa, apresentou o avesso de sua criação: lúcido com emocionantes instantes de delírio.

Ler esta entrevista e os livros do autor é abrir uma janela a inúmeros estados de consciência, mergulhar no desconhecido, enxergar através de uma lente azul – como propõe o narrador. Desejo que Rodrigo Souza Leão tenha sempre facilidade para publicar seus escritos; os leitores agradecem.

Por que o título do seu livro é Todos os cachorros são azuis?

Rodrigo Souza Leão – Na minha primeira infância eu tive um cachorro de pelúcia azul. Depois esse cachorro sumiu e nunca mais eu vi. É forte lembrança desse tempo. Como o livro fala de três fases da minha vida, resolvi fazer o link com minha infância. Mas nenhum cachorro é azul, é bom deixar claro. Só os cachorros de pelúcia são azuis.

Você tem alguma cor predileta?

Rodrigo – Eu gosto de azul e preto.

Você escreve prosa e poesia. Como surgiu seu interesse pela Literatura?

Rodrigo – É uma história longa. Você tem tempo?

Sim, pode falar.

Rodrigo – Eu comecei escrevendo poesia. A Suzana Vargas foi minha professora na Estação das Letras. No meu primeiro dia de aula, ela pediu que os alunos escrevessem um texto para ser comentado. Mas meu texto não foi escolhido para ser lido. Fiquei muito triste. O texto era assim:

a bomba é a solução / pra essa situação / pra crise geral / pro imposto territorial

Fala dos problemas políticos do país. Depois virou um hino punk através do grupo Eutanásia, onde meu irmão tocava bateria. Meu irmão me roubou essa parte da letra e colocou na música dele. Eu nunca quis ser escritor, meu plano era ser vocalista. Na década de 80, tive uma banda chamada Pátria Armada. Fizemos show no Circo Voador, na Metrópolis, no Made in Brazil – casas de shows da época. Minha meta de vida era ser músico.

Você toca algum instrumento?

Rodrigo – Eu toco um pouco de violão, mas só para compor. Minha voz fica boa impostada, perdi muito poder vocal por causa dos remédios que eu tomo.

Porque você toma os remédios?

Rodrigo – Para controlar o meu distúrbio delirante, minha esquizofrenia. Aos 23 anos tive um sério problema, identificaram a esquizofrenia. Hoje em dia usam muitos eufemismos para essa doença.

A Dra. Nise da Silveira batizou a esquizofrenia de ‘inúmeros estados do ser’...

Rodrigo – Nise da Silveira é maravilhosa, uma mãe. Mas voltando aos 23 anos: Tive um problema sério quando trabalhava na assessoria de imprensa da seguradora da Caixa Econômica. Foi uma crise de estresse muito elevado. Eu já era esquizofrênico, mas nunca havia manifestado a doença. Aos 15 anos, eu achei que tinha engolido um grilo – esse episódio está no meu livro. Aos 23 anos, no dia 03 de setembro de 1989, eu fui internado pela primeira vez, se não me falha a memória. Fui internado numa clínica, que não vou dizer o nome para não ser processado. Me colocaram camisa de força, me jogaram num cubículo e me deram um ‘sossega leão’. Mas o hospício em si não é a pior coisa do mundo. Porque, geralmente, não se sabe lidar com a loucura. Para família é muito complicado, ela se ver impelida a internar. O louco quebra a casa toda, faz um monte de merda, como aconteceu comigo na segunda internação. E pra onde você vai mandar esse cara? Eu sou a favor da luta antimanicomial. Acho que manicômio não resolve o problema de ninguém, só piora. Aqui está meu irmão, que é bipolar de humor, para comprovar. Na minha casa há histórico familiar de problemas mentais. Ele teve duas internações, na segunda vez ele ficou totalmente fora de si.

Se pudesse caracterizar o estado mental em que se encontra, o que diria?

Rodrigo – Eu falaria que eu sou esquizofrênico. Isso quer dizer que sou uma pessoa que necessita de certos cuidados: preciso tomar remédios específicos, viver uma vida diferente das outras pessoas e conseguir viver dentro das minhas ‘nóias’. Tenho que saber que a minha paranóia é paranóia e aprender a conviver com ela. A palavra-chave é convivência. É a convivência com a diferença. O meu ser é diferente dos outros. O esquizofrênico tem que ter uma sensibilidade para entender que é diferente. E sobre os eufemismos, isso é besteira. Falam “clínica” ao invés de “hospício”.

Não é difícil falar e escrever sobre doença?

Rodrigo – Hoje em dia é tranqüilo. Mas teve um tempo em que eu nem tocava no assunto. Até começar a minha relação com a internet eu não falava da doença. Escrevo mais poesia do que prosa. O meu primeiro livro chama-se Há Flores na Pele, só há um poema que fala de loucura. Eu falo da doença porque nunca gostei de psicólogos. Psicologia não resolve nada. Você fica batendo papo, conversando e nada. Fiz análise dos 12 aos 18 anos e não resolveu nada. Eu já tomei eletrochoque, mas com sedação. E esse eletrochoque é muito bom porque melhora muito o doente. Sério! Não é aquele eletrochoque tenebroso que era aplicado no tempo da Dra. Nise. Aquilo era um absurdo. Quem tirou o meu irmão da fase ‘abobalhado’, durante a crise psicótica, foi esse eletrochoque.

A arte tem um papel importante na sua vida. Certo?

Rodrigo – Justamente. Eu comecei a pintar há pouco. Mas escrever é uma coisa que vem. Eu só comecei a falar após a minha segunda internação. Fui internado duas vezes em 1989 e 2001, acho. Sou péssimo com datas e números, não sei nem meu telefone decorado. Essa segunda internação foi difícil, traumática, mas foi muito boa pra mim. Eu conheci lá dentro um cara chamado Gilberto Sabá, que foi guitarrista do Serguei, e gente tocava o terror. Ele que fez aquela música: ‘Toca um, toca dois, toca três. Toca, toca, toca rock and roll...’ A gente arrumava um violão e tocava para maluco dançar. (RISOS) Eu e ele éramos as pessoas mais lúcidas. Essa clínica onde fiquei era muito bonita, cheia de flores e árvores. Costumo dizer que hospícios são lugares tão bonitos que lembram cemitério. Eu ficava muito tempo fora do quarto vendo a paisagem, vendo a copa das árvores e escrevendo algumas coisas.

Sua prosa me lembra a poesia da Stella do Patrocínio. Conhece?

Rodrigo – Sim. Uma louca, lançaram um livro pela editora Azougue. Isso acontece porque a loucura é igual para todos. O bipolar de humor tem momentos de euforia e depressão, com momentos tristes e maravilhosos. Se o bipolar tomar remedinhos, como Lithium e Haldol, ele consegue se curar em longo prazo. A cura não é imediata porque precisa da conscientização da doença. A pessoa que tem distúrbio delirante acha que está sendo perseguida por agentes e policiais. Você acha mesmo que está sendo perseguido! Eu nunca tive visões. Ou melhor, tive visões quando fiquei uns cinco meses sem comer em casa porque achava que estava sendo envenenado pela minha família. Eu só comprava comida fora, fiquei muito tempo sem dormir.

(BRUNO, IRMÃO DE RODRIGO, SE APROXIMA E COMEÇA A PARTICIPAR DA ENTREVISTA)

Você tem uma lucidez muito forte em relação a isso.

Rodrigo – Não sei se é lucidez ou excesso de sofrimento. Eu sofri muito com minha doença, só eu sei o quanto eu sofri. Meu irmão também sabe.

Bruno – Sou assessor dele.

Rodrigo – Ele é meu assessor para assuntos estratégicos. (PAUSA) O sofrimento fez com que eu tivesse um insight. Mas minha vida tem muitas limitações, por exemplo, não saio de casa, sou recluso. Tenho medo de ser perseguido por agentes. É uma coisa absurda. Você está vendo um cara lúcido dizer que tem medo de ser perseguido por agentes. Mas essa é a minha doença. O que eu posso fazer?

Bruno – Quando arranja uma namorada ele sai. Pra ir ao motel...

Rodrigo – Só saio um pouco quando arranjo uma namorada.

Você namora muito?

Rodrigo – Namorei muito até os 23 anos. Eu era muito bonito, mas não sou mais por causa dos remédios. E não vejo no relacionamento a solução para os meus problemas. Se eu quiser ficar com uma garota, ela vai ter de se adequar muito a mim. Porque o problemático da relação sou eu. É difícil conciliar uma relação com alguém que não pode sair. Gosto de ficar na minha casa vendo filme e jogos de futebol. Sou 'flamenguista doente'. Hoje em dia as pessoas só querem ir para festas e barzinhos. Eu não posso beber porque tomo remédio tarja-preta, tomo Haldol.

Bruno – Mas faz sexo...

Rodrigo – Mas isso não tem contra-indicação. Eu já tomei muitos remédios. Mas me dei bem com esse remédio, embora dê tremor, mão fria e salivação.

Você é formado em Jornalismo.

Rodrigo – Sim. Me formei em Jornalismo pela Faculdade da Cidade (atual UniverCidade). Eu não consegui me formar por uma faculdade federal, mas tive bons professores: Fernando Muniz, Lúcia Padilha, Ítalo Moriconi... Tive uma formação muito interessante. Meu lance nunca foi jornalismo, eu queria ser locutor de rádio. Ouvi muito a Rádio Cidade e a Rádio Fluminense com Maurício Valladares. Mas o que restou na minha vida foi escrever. O que sobrou? Escrever. Eu já fazia letra de música, depois passei a escrever poemas. Acredito que algumas letras de música são poemas.

Há letristas que são poetas.

Rodrigo – Sim. Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Gilberto Gil e Chico Buarque são maravilhosos.

Você sempre gostou de ler?

Rodrigo – Não. A leitura foi um hábito que adquiri após minha primeira internação. Eu fiquei muito tempo em casa e devorei Proust e James Joyce. Li muito o Rubem Fonseca, gosto muito dele.

Você tem um livro de poesia chamado Carbono Pautado – memórias de uma auxiliar de escritório.

Rodrigo – Sim. Mas esse livro só foi importante para que eu pudesse ver como foi a minha vida.

Sua escrita é muito fragmentada, uma característica muito presente no texto dos autores contemporâneos...

Rodrigo – Nós vivemos em tempos esquizofrênicos. Muita gente tem depressão ou síndrome do pânico. É uma sociedade que está doente porque dá valor ao que não se deve: o dinheiro. O ser humano viveria muito mais se parasse com essa babaquice de querer dominar o outro.

No seu livro, Rimbaud e Baudelaire são influências?

Rodrigo – Mais Rimbaud do que o Baudelaire. Li a obra completa do Rimbaud, que é bem curta. Gosto muito da "Canção da Torre Mais Alta":

Juventude preza / A tudo oprimida / Por delicadeza /Perdi minha vida.

Acho essa poesia sensacional! O Rimbaud é muito presente na minha vida. Eu tive muitos livros. Mas teve uma época em que eu achei que ia morrer, então fiz uma grande liquidação de livros. Peguei todos os meus livros, separei, dei os que eu queria dar e vendi todo o resto. Dei um disco incrível do Roberto Carlos, Nas Curvas da Estrada de Santos, para um cara que estava num sebo.

Bruno – Meus discos do Iron Maiden foram juntos...

Rodrigo – É, os discos do meu irmão, que gosta de heavy metal. Eu só fiz essa grande liquidação porque eu achava que fosse morrer. Mas eu sobrevivi. A minha condição de vida é a seguinte: vivo o presente. Como estou vivo, faço um melhor dia pra mim. Eu não faço projeto a longo prazo. No edital da Petrobras eu deixei claro que o meu livro estava quase todo pronto e eles aceitaram assim mesmo. Mas o meu livro foi rejeitado pela Casa do Psicólogo. Eu pensei: Nem os psicólogos estão do meu lado? Logo na Casa do Psicólogo? Num lugar em que eu deveria ser tratado a pão de ló.

Mas você conseguiu aprovação na Petrobras.

Rodrigo – Esse projeto foi muito importante. Eu não tinha dinheiro para bancar meu livro. Apesar de viver nesse apartamento na Lagoa e parecer rico, não tenho muita grana. O dinheiro vai para serviços, remédios e outras despesas. Fui aposentado por invalidez aos 23 anos, não recebo muito. Eu consegui publicar graças à Petrobras e à 7 Letras. Mas no início a Petrobras não acreditou muito, mandaram duas psicólogas para me avaliarem. Elas diziam: ‘Ele tem problemas cognitivos, problemas X, problemas Y’. Foi ótimo porque depois dessa avaliação “não preciso” ter mais problemas.

Você é otimista em relação a sua carreira de escritor?

Rodrigo – Não. Mas acho que fiz um livro bom, intenso e mágico. Estou escrevendo outro livro: Tripolar, um livro de mais confronto com a linguagem. São três novelas que não se comunicam. Tenho uma postura positiva, mas não sou ufanista em relação a vida. Não acho que vou viver de literatura. Mas acredito no que eu faço. Vou ganhar prêmio? Isso é imponderável.

Bruno – Vai ganhar o Jabuti.

Rodrigo – Não vou ganhar.

O que é mais importante na sua vida?

Rodrigo – O mais importante, no momento, é eu não saber o que é a coisa mais importante na minha vida. É saber colocar importâncias variadas. É importante que eu continue estável e consiga viver o máximo de tempo possível.

Você quer viver muito?

Rodrigo – Não. Eu espero viver pouco. Se eu conseguir viver até 50 anos ficarei contente. Porque viver muito é para quem não tem problemas. Quando a pessoa tem muito problema é até melhor morrer cedo porque se livra um pouco dos traumas e angústias. Sou uma pessoa muito traumatizada. Mas feliz! Eu sou feliz. Posso dizer que sou muito feliz, mais feliz que a grande maioria das pessoas. Eu sou feliz. Eu não estou realizado porque ainda estou no meu primeiro livro. Estou na batalha para publicar um livro há muito tempo, desde os 27 anos.

Você acredita em Deus?

Rodrigo – Por muito tempo eu li Nietzsche: Assim falou Zaratustra. Li todos os livros de Nietzsche quando eu tinha vinte e poucos anos, eu adorava filosofia. Então a minha relação com a religião é mais calma. Eu rezo três orações antes de dormir, minha avó que ensinou: Oração a São Miguel de Arcanjo, Pai Nosso e Oração a Nossa Senhora da Cabeça.

Salve Imaculada, Rainha da Glória, Virgem Santíssima da Cabeça, em cujo admirável título fundam-se nossas esperanças, por sedes...

Agora está me faltando, não estou conseguindo lembrar.

Sem problemas.

Bruno – E ele vê a Igreja Universal do Reino de Deus, todos os dias comigo no quarto.

Rodrigo – Só vejo porque ele vê. Isso não tem nada a ver. Não vejo Igreja Universal.

O que é a morte?

Rodrigo – Eu torço para que exista algo além. Gostaria de ver o que as pessoas acham de mim quando eu estivesse morto. Sabe? A reação das pessoas. Para saber se meu melhor amigo iria chorar, se alguma namorada ia lembrar de mim, se meu livro ia vender depois de morto... Por que depois que morre todo escritor vende.

O que é loucura?

Rodrigo – Isso é engraçado. Porque quando se é um louco folclórico, cheio de indumentária e adereços – tipo Bispo do Rosário, Plínio Marcos, Gentileza –, aí ele é bem-vindo. Eu quero acabar com esse folclore porque eu me visto como uma pessoa normal. Não tem como definir loucura. Loucura é uma coisa perigosa de ser definida, por isso as pessoas falam tão pouco. As pessoas têm uma idéia mitificada da loucura, o Michel Foucault falava disso. Definir loucura é não saber como se está no mundo. Não posso crer que só existam loucos como eu, que têm noção do que é a doença. Têm loucos como o Bruno, que são menos capacitados a isso. E também têm os agressivos. Acho que os hospícios não deveriam misturar os loucos. Assim as clínicas se tornam um depósito de gente. Os oligofrênicos deveriam estar separados dos outros loucos. Eu não vou ser mais internado, eu acho. Vou ser internado só no cemitério do Caju. (RISOS).

O que é a vida?

Rodrigo – A vida é excepcional. É o lugar onde tentamos construir sonhos. Vida é algo que foi dado e só você pode tirar, se você se suicidar. Ou Deus, que também pode tirar. Mas nem sei se Deus existe. Eu sou meio revoltado com Deus. Por que eu fui nascer esquizofrênico? Por que eu não nasci mais alto como o fotógrafo (Tomás Rangel). Eu nasci com 1,70. Eu queria 1.85. (RISOS) Ramon também faz parte da família dos ‘gnomídios’. Você deve se achar um anão. (RISOS).

Por que escrever?

Rodrigo – Escrever foi o que me sobrou. De tudo que tive, foi o que me restou a fazer.

A escrita trouxe vida?

Rodrigo – A leitura me trouxe vida. Eu lia o Proust, anotava umas palavras num papelzinho e no final do dia fazia um poema. Saía uma coisa sem pé nem cabeça. Na prosa eu trabalho o psicológico dos personagens.
O que você diria para um jovem que deseja ser escritor?

Rodrigo – Primeiro: Viva ao máximo! O que importa são os momentos. Se o livro for rejeitado, não desista! Se você gosta de escrever, então escreva para você mesmo. Eu só fui publicado quando escrevi para mim mesmo.

Fonte:
Entrevista concedida a Ramon Mello no Portal Literal

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Trova XXXIV

Trova sobre Caricatura de Maurízio de Reda

X Concurso Depoesia (Finalíssima nesse Domingo)


Estimular e divulgar a produção poética de Sorocaba e das cidades da Região, esse é o objetivo do X Depoesia promovido pelo Instituto Darcy Ribeiro. O concurso é dirigido a pessoas acima de 15 anos.

O Concurso Depoesia é promovido pelo Instituto desde o ano 2000 e já reuniu, nesse período, mais de 350 poesias. Nesses 10 anos de existência, o Instituto publicou vários livros e CDs do Concurso Depoesia.

Serão conhecidas nesse domingo as três poesias vencedoras do 10º Concurso Depoesia, promovido pelo Instituto Darcy Ribeiro. O Concurso recebeu inscrições de 55 poetas de Sorocaba, Pilar do Sul, São Roque, Iperó, Votorantim, Itu e Itararé, classificando 31 poemas para a etapa final através de duas eliminatórias.

O consagrado ator sorocabano Ademir Feliziani, conhecido do grande público por inesquecíveis atuações em peças como “Até o Próximo Adeus”, “A Gaivota”, “Macbeth”, “Ponto de Partida”, “À Flor da Pele”, entre outras, vem interpretando com maestria os poemas inscritos.

Para escolher as melhores poesias do concurso foram convidados o jornalista e dramaturgo Gai Sang, responsável por textos como “Os Maus se Perfumam com Gasolina”, “Anjos e Cowboys”, O Castelo do Bispo”, entre outros; Cida Muniz jornalista e atriz de peças como “O Baile”, “Ritos do Amor e do Esquecimento”, “A Fúria”, entre outas; e Maurício Toco, professor e músico, integrante do grupo Mad Dog Blues.

Após a premiação será realizada a cerimônia de entrega do troféu Darcy Ribeiro ao ator Ademir Feliziani por sua contribuição ao teatro sorocabano. O prêmio foi instituído pelo presidente do Instituto, professor Armando Oliveira Lima e visa homenagear pessoas ligadas a cultura.

A final do Concurso Depoesia ocorre nesse domingo, dia 05 de julho, às 19 horas, no Arara Aurora Bar (rua Pandiá Calógeras, 443 - próximo a Rodoviária).

Fontes:
Douglas Lara
Portal Sorocabano

Roberto Gomes (1882 – 1922)


O que mais impressiona na literatura dramática brasileira é quando nos deparamos com aqueles autores singulares, praticamente desconhecidos e que ficam com parte significativa da obra teatral inédita, e que, por vezes, por mais que os estudiosos ou 'testemunhas dramatúrgicas' lhes propaguem as qualidades literárias e teatrais, os textos não saem das gavetas e prateleiras, ou seja lá onde se amontoem a literatura dramática do Brasil.

Assim também se dá com Roberto Gomes, nome tão simples mas de dramaturgia tão complexa e que não pode ser dividida. Autor que se deixou viver muito pouco, se suicidou aos 40 anos, e de obra não tão grande, porém não menos expressiva, queda-se no esquecimento, considerando ainda que à época de vida do autor o teatro brasileiro passava uma daquelas suas fases de crise, ou seja, tudo se fazia no palco menos teatro. Estamos entre 1897 a 1922, período ativo de dramaturgia para Roberto Gomes.

Autor de um refinamento de cultura e expressão muito agudos, adquirido nos estudos ora no Brasil ora na França, podemos dizer que é o autor certo para a hora errada. A consistência dos diálogos e de temas fez de Roberto Gomes um exemplar único da sua época e de sua geração, talvez único na dramaturgia brasileira.

A semana de arte moderna ficou manca de teatro e talvez isso tenha afetado o autor profundamente, pois que já esquecido em vida e com sérios problema de depressão, pôs fim a sua vida às 22:30 do dia 31 de dezembro de 1922. Não seria o único injustiçado das artes brasileiras e, especificamente, injustiçado pela semana de arte moderna. Considerando os temas de suas peças em comparativo com o teatro brasileiro de então e a busca pela qualidade dramatúrgica, há que se ter um desconto pelo seu excesso romântico e poético nos textos, mas que com elencos de primeira linha seriam não só obstáculos vencidos como seriam um laurel para as montagens.

O estilo de Roberto Gomes não é de vanguarda, dando um valor superior à palavra, mas sem esquecer a 'vida' do palco. Trata o autor de colocar pequenos discursos com idéias e ideais nas personagens, mas é de se ressaltar que estes pequenos discursos não afetam o andamento das peças, nem seus ritmos. Ainda que o ritmo da dramaturgia de Roberto Gomes seja mais lento do que a vida, digamos assim. O autor coloca uma série de convenções próprias, que vão se revelando minuciosamente e com uma inteligência de palco incrível ao longo do próprio enredo de suas peças.

O tema fundamental do autor é o tempo e a impossibilidade, do amor, da felicidade... ou seja, seus temas estão muito ligados a dramaturgia francesa de sua época, da qual era um confesso admirador, como de Henri Bataille, por exemplo, e nas letras em geral como Marcel Proust.

Há que ser entendido que Roberto Gomes era filho de um banqueiro com uma dama da sociedade parisiense, foi educado nas primeiras letras escolares em Paris, e lá uma vez mais foi onde começou a se impregnar de teatro, seja atuando ou tentando começar a escrever suas peças, ou ainda tocando sua música. Roberto era um exímio pianista, havendo estudado em Paris, onde se bebia os compositores simbolistas, modernos e de toda a sorte de pianos deprimidos, o que certamente teve profunda influência em sua dramaturgia. O autor, embora nascido no Rio de Janeiro em 12 de janeiro de 1882, começa a escrever suas peças em francês, e depois as traduz quando retorna definitivamente ao Brasil em 1897. Porém, é de registrar que isto não prejudica a dramaturgia de Roberto Gomes, nem mesmo os temas abordados pelo autor. Temos que fazer duas considerações nesse assunto, para que não seja mal interpretado nosso autor em tela. Roberto Gomes escreveu em francês quando residia na França, peças estas que tinham um elevamento de tema, sem colocações sociais precisas (até porque ainda não existia propriamente o teatro social, este se conforma como uma existência em si a partir de 1920 com Erwin Piscator, na Alemanha), restringindo as dores dos personagens ao ambiente burguês, que predominava em Paris, e no Rio de Janeiro também, e em qualquer lugar de cultura ocidental onde houvesse burguesia europeizada. Assim as peças poderiam até estar em servo-croata e não perderiam sua validade intrínseca. A outra consideração, é que o Rio de Janeiro da época do autor era de tal forma parisiense que em nada se perdem os textos. O Rio era uma cidade então capital do país, mas que propriamente não fazia parte deste país. Havia um banqueiro que mandava suas camisas serem lavadas na França por causa das águas do Rio Sena, para se ver a que ponto chegava a burguesia carioca de então, na tentativa de reproduzir a vida de Paris!

Os textos de Roberto Gomes que seguem a sua moradia no Brasil, já com ambientações em salões de Petrópolis e outros elitismos, fixam exatamente este exagero de tentativa da reprodução de Paris nos trópicos, sem entretanto serem críticos em relação a isso. Eles ambientam os salões da burguesia carioca e fluminense com busca de identificação, inclusive, do próprio autor que freqüentava estes salões.

Roberto Gomes escreve em prosa, mas com ritmo de poesia. Seus textos contam sempre com acabamentos literários perfeitos, e ainda teatralmente bem compostos. Única no gênero da literatura teatral brasileira, a obra de Roberto Gomes ainda está por ser verdadeiramente descoberta pelos homens de palco do Brasil.

Vale conferir a publicação de suas obras completas pela FUNARTE/IBAC, ou seja lá que nome tiver atualmente o órgão cultural do governo; atentos, sobretudo, às peças A Casa Fechada e Ao cair da tarde.
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Abaixo veja a peça teatral A Casa Fechada, na íntegra
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Fonte:
Marcos André Tavares , no artigo Roberto Gomes, um raro simbolista para O Cisco Tonitruante

Roberto Gomes (A Casa Fechada)


ATO ÚNICO

(Uma rua tristonha, numa cidade do interior. Uma lagoa reluz ao longe. Ao fundo, à extrema direita, uma casinha de duas janelas, separada da rua por um pequeno jardim. A casa está completamente fechada. No primeiro plano, à esquerda, a entrada do Correio. Perto da porta, um banco. No centro, ao fundo, um lampião perfila-se diante de uma árvore raquítica. A rua é vista em diagonal. Seis horas da tarde.)

CENA 1

(Dona Sinfonia, Joaquim Aguaceiro, Mendigo,Pescador.)
(Dona Sinfonia, à janela da agência, faz crochê e olha de vez em quando para a casa fechada. O Mendigo está sentado, imóvel, debaixo do lampião. Entra o Pescador com uma carta na mão e atravessa o palco. Quando ele vai penetrar no Correio, topa com Joaquim Aguaceiro, que, em pé, no solar, contempla a casa, ao longe.)

O PESCADOR
(Cumprimentando) Boa tarde, patrão.

JOAQUIM AGUACEIRO
Boa tarde, Candonga. (O Pescador entra, depois de cumprimentar Dona Sinfonia, e sai, logo após, sem a carta.) Está metido a escritor, agora?

O PESCADOR
Foi a carta que mandei pro filho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Está sempre trabalhando na cidade?

O PESCADOR
Sim, patrão. Há muito que não sei dele. Então, como estava me dando saudade, pedi ao Anfilóquio para escrever uma carta.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se ele não anda doente?

O PESCADOR
A última vez que tive notícias, ele estava bem forte e saudável. Mas lá na cidade os homens caem depressa. Ah! Patrão! Criança é o castigo da gente! (Olha para Dona Sinfonia, que concorda com a cabeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Aqui ele já era meio extravagante. Ficava a jogar bilhar até as dez horas.

O PESCADOR
Eu, na idade dele, era um bicho... era um bicho para tudo. Tinham medo, tão bravo que eu era no trabalho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Hoje ainda.

O PESCADOR
Qual! Tenho andado doente. Foi uma resfriadela que apanhei. (Olha para o céu.) O tempo não está bom para reumatismo... Está assim cozinhando... Mas vamos ter chuva. (Olha ao longe.) A lagoa está brilhando.

JOAQUIM AGUACEIRO
Trabalhou muito hoje?

O PESCADOR
Assim. A pesca não foi lá das melhores. E, para atravessar a lagoa, meu bote só pega três pessoas. A gente precisa suar muito para ganhar pouco. Ah! Se eu tivesse todo o dinheiro que perdi, já estava remediado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Agora vai pra casa?

O PESCADOR
Vou sim, patrão. (Pausa. Ele não se move.) Vou, sim... (Permanece imóvel. Afinal, dá um passo e pára. Mostrando a casa ao longe, com a cabeça:) Ainda estão lá dentro?

DONA SINFONIA
Estão, sim. Há mais de uma hora.

JOAQUIM AGUACEIRO
Ele é capaz de descobrir a coisa.

O PESCADOR
Ah! Com o Dr. Aprígio ninguém escapa. Moleque feio tem de entrar nela.

DONA SINFONIA
Não se ouve nada.

O PESCADOR
Nada. Está tudo fechado. Parece que estão a velar um defunto.

DONA SINFONIA
Desde a manhã, ninguém saiu.


CENA II

(Os mesmos, o Boticário) (O Boticário, chegando pausadamente, aperta a mão de Joaquim Aguaceiro, cumprimenta cerimoniosamente Dona Sinfonia, e, de alto, o Pescador.)

O BOTICÁRIO
Boas tardes, senhor aguaceiro.

JOAQUIM AGUACEIRO
Como passa, Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Sempre bem. Deixei um instantinho a botica para comprar uns selos. Dona Eudóxia está?

JOAQUIM AGUACEIRO
Está. Ela anda um pouco atarefada. Desde manhã cedo teve gente como quê.

O BOTICÁRIO
Dona Sinfonia não largou a janela.

DONA SINFONIA
Estou com dor de cabeça... Preciso respirar.

O BOTICÁRIO
Tenho um bom remédio para dor de cabeça.

DONA SINFONIA
(Continuando, sem responder) Preciso respirar. Não posso ficar trancada.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa e piscando) Trancados estão eles.

O BOTICÁRIO
Já devem estar cheirando a mofo. (Pausa) Que estarão fazendo? Ouviu alguma coisa, Dona Sinfonia?

DONA SINFONIA
Não ouvi nada, Sr. Simplício. Não costumo meter-me na vida dos outros.

O PESCADOR
Quem viu foi o Geraldino.

DONA SINFONIA
(Largando o crochê) Ah! Ele viu?

O BOTICÁRIO
(Sem afetação) Viu?

O PESCADOR
Viu, sim. Ele ficou de me procurar depois do serviço pra me contar a coisa. O doutor delegado já conversou com ele.

DONA SINFONIA
Ah! Conversou?

O PESCADOR
(Importante) Conversou, sim. E agora está lá dentro com eles todos. Ah! Com aquele homem é preciso andar na linha. Senão, está tudo à toa.

DONA SINFONIA
(Olhando para a casa) À-toa é ela. Santa Bárbara!


CENA III

(Os mesmos, Dona Eudóxia, a Agente do Correio) (Dona Eudóxia aparece à porta do Correio. Joaquim Aguaceiro, com indiferença afetada, vai se aproximando da casa fechada e passa lentamente rente às janelas.)

O BOTICÁRIO
Como tem passado, Dona Eudóxia?

DONA EUDÓXIA
Vou indo, Sr. Simplício. Dona Quintanilha está boa?

O BOTICÁRIO
Está, obrigado.

DONA EUDÓXIA
Deseja alguma coisa?

O BOTICÁRIO
Preciso de uns selos. Mas não há pressa... não há pressa...

DONA EUDÓXIA
Não quer entrar um pouquinho?

O BOTICÁRIO
Prefiro ficar aqui mesmo.

DONA EUDÓXIA
Então, não quer sentar-se?

O BOTICÁRIO
Aceito o seu convite, Dona Eudóxia. Sinto-me cansado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Foram as emoções desta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Cruzes!

DONA EUDÓXIA
Deixe lá o seu crochê, Dona Sinfonia. A esta hora, vai estragar a vista. (Falando para dentro) Moleque! Traga uma cadeira!

(O Moleque Jenipapo aparece com uma cadeira. O Boticário senta-se nela; os outros no banco. O Pescador fica em pé. Aproxima-se Joaquim Aguaceiro.)

O BOTICÁRIO
Por onde anda, seu compadre?

DONA SINFONIA
Ouviu alguma coisa?

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. Está tudo calado.

O BOTICÁRIO
Não é como esta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Que barulheira!

O BOTICÁRIO
A Quintanilha até chorou de susto.

DONA EUDOXIA
Ah!

O BOTICÁRIO
Tive de lhe dar água de flor de laranja com umas gotas e... Urna composição minha. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
(Voltando-se para a casa ao longe) Dizem que “ela” embarca no trem das sete.

O PESCADOR
Das sete.

DONA SINFONIA
Ela terá de passar por aqui.

JOAQUIM AGUACEIRO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Homem! Já que vim até cá, estou quase a me demorar um pouco.

DONA SINFONIA
Até as sete.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quero ver o seu jeito, quando ela passar.

DONA EUDÓXIA
Quem havia de dizer? Urna mulher assim tão direita!

O BOTICÁRIO
Oh! Eu sempre desconfiei... Essa gente calada...

DONA SINFONIA
E velha que ela é!

DONA EUDÓXIA
Velha, não!

DONA SINFONIA
Como não?

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) Que idade tem ela? (Aos outros) Candonga sabe.

O PESCADOR
Ela ,já deve estar capinando os seus trinta e cinco.

DONA SINFONIA
(De mãos postas) Trinta e cinco!

O BOTICÁRIO
E três filhos.

JOAQUIM AGUACEIRO
O Julinho já anda pelos seus quinze.

DONA EUDÓXIA
Coitado!

DONA SINFONIA
Pois eu também vou esperar para vê-la passar... Ia agora para casa, mas como todos ficam...

DONA EUDÓXIA
Não querem tomar café?

O BOTICÁRIO
Aceito, Dona Eudóxia.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não vale a pena.

O BOTICÁRIO
Bem que vale.

DONA EUDÓXIA
Já está feito, Sr. Joaquim. E só trazer. Vou chamar o Jenipapo. (Chamando) Moleque! Moleque! (Olhando para dentro) Onde se meteu esse moleque? (O Moleque Jenipapo entra correndo pelo fundo. Ele esteve atrás da casa fechada.) Ah! Ele tinha ido espiar! (Ao Moleque) Traga o café, depressa.

O BOTICÁRIO
(Fazendo-o parar) Viste alguma coisa, moleque?

O MOLEQUE JENIPAPO
Não, senhor, senhor não. A casa está toda escura. (Sai.)

DONA EUDÓXIA
Uma casa que parecia tão feliz! Lembra-se, Sr. Joaquim? Havia sempre flores às janelas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Parece que esta noite ele arrebentou até as flores.

O PESCADOR
Viu que estava desgraçado. Então foi desgraçando tudo.

DONA EUDÓXIA
É isso mesmo... Oh!

DONA SINFONIA
Que é?

DONA EUDÓXIA
Acendeu!

TODOS
Acendeu?

DONA EUDÓXIA
Vejam. (Todos olham para a casa fechada. Com efeito, unia réstia de luz filtra pelas venezianas. Longo silêncio, durante o qual eles contemplam, imóveis, aquele feixe luminoso.)

O BOTICÁRIO
(Murmura.) Que será?

DONA SINFONIA
Não ouvem nada? (Todos escutam. Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
Eu também preciso acender. (Entra, acende o interior da casa e volta a ter com os outros.)

DONA SINFONIA
Vê-se ainda. (A uma senhora que chega) Oh! Ritoca! Há quanto tempo não a encontrava!


CENA IV
(Os mesmos, Ritoca)

DONA RITOCA
(Saudando a todos e abraçando Dona Sinfonia) Como vai sua obrigação?

DONA SINFONIA
Estou boa. E você?

DONA RITOCA
Não estou passando muito bem.

JOAQUIM AGUACEIRO
Pois não parece. Quando atravessava o largo, há pouco, estava dengosa como seriema no capim.

O BOTICÁRIO
Se não está boa, eu recebi da cidade uma pílulas que curam num instante. ~ só pedir.

DONA RITOCA
(Abraçando Dona Eudóxia) Vim até cá para ver se não havia cartas à minha espera.

DONA EUDÓXIA
Bem sabe que, quando há, sempre lhe mando levar. Não precisava incomodar-se. (Entra o Moleque com uma bandeja.) Toma café conosco?

DONA RITOCA
Não sei se tenho tempo... (Mais baixo, rapidamente) Ela já saiu?

DONA EUDÓXIA
Não. Vai pelo trem das sete.

DONA RITOCA
Ah! (Alto) Pois aceito... Uma canequinha.

DONA SINFONIA
Café nunca se recusa.

DONA EUDÓXIA
(Ao Moleque, que acaba de servir o café) Uma cadeira! Depressa. (Ele traz a cadeira e dirige-se, depois, para o lado da casa fechada, atrás da qual desaparece. Todos bebem o café aos goles.)

DONA RITOCA
Estavam falando da Maria das Dores?

JOAQUIM AGUACEIRO
Estávamos. Quem havia de dizer?

DONA RITOCA
Eu não sei ao certo o que houve. Que foi, heim, Sr. Aguaceiro?

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Ela já deve saber de cor. Desde manhã cedinho que se agarra a toda a gente para que lhe contem.

DONA SINFONIA
Quem conhece bem o caso é o Geraldino.

DONA RITOCA
O barbeiro?

O PESCADOR
Sim, senhora, Dona Ritoca. Tanto que ele ficou de me procurar, depois do serviço... Ele viu tudo, e já conversou com o doutor delegado. (Passa ao fundo uma criança arrastando um papagaio. Quando chega diante da casa fechada, ergue-se na ponta dos pés e procura espiar. Depois, segue o caminho.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Não sei como é que ele não apareceu.

O PESCADOR
Ainda não acabou o serviço. (Pausa.)

DONA RITOCA
(Olhando para a casa) E ele? Não se sabe afinal quem é?

O BOTICÁRIO
Ela não quis dizer... Por nada. Ao senhor delegado talvez...

DONA SINFONIA
Parece até impossível.

DONA RITOCA
Não valia a pena fazer tanto xodó para acabar assim!

DONA EUDÓXIA
Que pena, meu Deus! Que pena!

DONA RITOCA
Lembra-se, Dona Sinfonia? Quando o coronel Fulgêncio passou uma tarde por aqui... Papai tinha preparado em casa um café de estalar a língua... Toda a gente à espera. Pois fizeram tanta intriga que o coronel acabou indo tomar café em casa da Maria das Dores.

DONA SINFONIA
Uma mulher que nem punha chapéu pra missa das dez!

JOAQUIM AGUACEIRO
Sim. O Matias está hoje desfalcado; mas já teve alguma coisa; e a Maria das Dores ainda hoje tem ar assim de gente grossa.

DONA EUDÓXIA
Quando ela entrava na igreja com seu grande xale preto, lembrava uma princesa...

O BOTICÁRIO
Pois está fresca, a princesa!

DONA RITOCA
Papai nunca perdoou o café do coronel. (Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa) E nada...?

O BOTICÁRIO
Até agora, nada. (Silêncio.)

DONA SINFONIA
Que vai ser dela, sozinha, na capital?

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Com o perdão da palavra, vai cair na malandragem.

O PESCADOR
Ela tem umas primas por lá.

DONA EUDÓXIA
Coitada da Maria das Dores!

DONA SINFONIA
Coitada quê, Dona Eudóxia? Coitado do Matias!

DONA EUDÓXIA
Ele era muito bruto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Qual bruto qual nada! Mulher precisa é andar na linha.

O BOTICÁRIO
Pancada traz amor.

DONA EUDÓXIA
(Apontando o Mendigo) O pai Tobias é que vai sentir falta. Acabou-se a janta.

O BOTICÁRIO
Onde vais comer agora, heim, pai Tobias?

O MENDIGO
(Fita-os sem responder, e, após um silêncio, gravemente) Deus é que sabe! (Pausa.)

O BOTICÁRIO
Antes não comer que comer o pão do pecado.

O PESCADOR
Ah! Isso também não!

DONA SINFONIA
(De repente) Oh! (Todos olham. Vê-se entreabrir a porta da casa, donde sai o delegado seguido pelo escrivão. O Moleque Jenipapo, que espiava, escondido, atravessa a rua correndo. Todos calam, cumprimentam o delegado. Este toca de leve o chapéu e sai.)

O PESCADOR
Ele saiu.

DONA EUDÓXIA
Que terá havido, meu Deus!

DONA RITOCA
Mais logo vamos saber.

DONA SINFONIA
Está começando a esfriar, não acham?

DONA EUDÓXIA
Podemos entrar.

DONA RITOCA
Estamos muito bem aqui.

O BOTICÁRIO
Estamos, sim.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Puxando o relógio) Pouco falta para as sete.

DONA SINFONIA
E a estação fica tão perto!

OPESCADOR
Aí vem o Geraldino!

TODOS
Ah!

DONA RITOCA
Afinal!

CENA V
(Os mesmos, Geraldino)

JOAQUIM AGUACEIRO
Então, Geraldino? Teve serviço até agora?

GERALDINO
Fui até a estação. (Cumprimenta a todos.) Boas tardes!

O BOTICÁRIO
Já se pode dar boa-noite.

(Geraldino saúda com a mão o Pescador, que corresponde.)

DONA EUDÓXIA
Há muita gente na estação?

GERALDINO
Está cheia... Assim... Todos querem ver.

DONA SINFONIA
Que gente bisbilhoteira!

DONA RITOCA
Eu é que não me mexo.

GERALDINO
Também, ela tem de passar por aqui.

O BOTICÁRIO
Ela irá mesmo?

GERALDINO
Vai, pois não. Só se ela quiser dizer quem foi.

DONA EUDOXIA
O senhor delegado saiu agora mesmo.

GERALDINO
(Importante) Sei. Já estive com ele hoje à tarde. (Todos olham para o Geraldino, esperando que ele fale.)

O PESCADOR
Mas você viu mesmo tudo, seu Dino?

GERALDINO
Vi, decerto.

DONA SINFONIA
Tudo?

GERALDINO
Tudo, tudo, não.

DONA RITOCA
Oh! Conte... Conte...

GERALDINO
Mas vosmecê já me ouviu contar hoje duas vezes. (Todos se riem.)

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Está vendo?

DONA RITOCA
(Zangada) Eu? Onde? Onde?

GERALDINO
Esta manhã, perto da vacaria, quando eu explicava a coisa ao Zé Menezes; e, antes das duas...

DONA RITOCA
Oh! Eu passava tão depressa... Não ouvi quase nada.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não se zangue, Dona Ritoca.

DONA RITOCA
Não. Mas parece assim que sou curiosa!

GERALDINO
(Dispondo-se a contar) Então, vá lá!

JOAQUIM AGUACEIRO
Quer pitar?

GERALDINO
Pois sim.

O BOTICÁRIO
Eu aceitava mais uma canequinha.

DONA EUDÓXIA
Moleque!... Café para o seu Simplício! (Pouco depois entra o Moleque, com o café.)

DONA SINFONIA
Então? Como foi isso?

GERALDINO
Foi assim... Eram onze horas. Eu passava pelo Beco das Formigas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Às onze horas pelas ruas, seu malandro...

GERALDINO
Ora, não me interrompa...

O BOTICÁRIO
Deixe falar o Geraldino!

GERALDINO
Vinha da casa do Tinoco... A casa nova...

O PESCADOR
Um sujeito que outro dia mesmo estava arrancando mato, e depois ficou rico tão ligeiro!

GERALDINO
Assim não conto nada!

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Sossega! Gente!

GERALDINO
Está bom. (A Joaquim) Dê cá fogo! (Acende o cigarro, que se apaga.) Passava lá pelos fundos do beco, quando me pareceu ouvir ao longe uma qualquer coisa de especial dentro da casa do Matias. Paro para ouvir. De repente, bate a janela com toda a força, e vejo um vulto a pular.

DONA SINFONIA
A pular?

GERALDINO
Fiquei assim indeciso, sem saber. Pensei a princípio num ladrão. Mas, enquanto estava a cismar, ele desata a correr que nem veado e cai no mato.

DONA EUDÓXIA
Por que não correu atrás?

DONA RITOCA
E não reconheceu?

GIRALDINO
Não pude.Vi só que era um rapaz novo, esperto... Mas não reconheci.

DONA SINFONIA
Novo... Esperto... Quem sabe se não era o Alcino?

O BOTICÁRIO
O Alcino ontem estava de cama. Melhorou com um xarope meu, excelente.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se o Antônio Ferraz ...

DONA RITOCA
Ah! O António Ferraz!

O PESCADOR
Qual! O Nico bem que andava a rondar a casa do Matias, — não arranjou nada. Ela nem olhava para ele!

DONA RITOCA
(Resmungando) Não olhava... Não olhava...

DONA SEFONIA
Então, a gente nunca há de saber?

GERALDINO
Só se ela disser...

O PESCADOR
(para si) Por que é que ela não diz...?

O BOTICÁRIO
Adiante, Geraldino!

GERALDINO
Fui chegando de mansinho até a janela,que tinha ficado entreaberta, e espiei lá para dentro. Gente! Estava o Matias com os olhos a saltar, agarrado à mulher, torcendo-lhe os braços. E batendo-lhe com a cabeça no chão... (Redobra a atenção de todos)

DONA RITOCA
E ela gritava?

GERALDINO
Nem um pio. Ela não queria acordar os filhos.

DONA RITOCA
Ora veja!

GERALDINO
Parece que todas as noites, quando o Matias estava adormecido, ela ia devagarinho abrindo a porta da casa... Sabem que de dia ela não podia sair...

DONA EUDÓXIA
Que noites terríveis deviam ser aquelas!

O BOTICÁRIO
Ela com os filhos ao lado. Com a certeza de ser um dia apanhada.

DONA RITOCA
Ela não tinha medo de acordá-los?

JOAQUIM AGUACEIRO
Como é que a Maria das Dores, tão sossegada, tão refletida, foi desnortear assim, depois de velha?

DONA SINFONIA
Isso não se explica.

GERALDINO
São coisas!

JOAQUIM AGUACEIRO
Mas por quê?

DONA EUDÓXIA
(Timidamente) A gente, às vezes, sente-se tão só!

DONA RITOCA
Só... com um marido e três filhos!

DONA EUDÓXIA
(Viva mente) Não foi isso que eu quis dizer

O BOTICÁRIO
Que foi que a senhora quis dizer, Dona Eudóxia?
(Silêncio.)

DONA EUDÓXIA
(Depois de hesitar) Quis... (Pára um instante.) Eu bem sinto cá dentro, mas não sei explicar... Não sei... (Olham para Dona Eudóxia. Pausa.)

DONA SINFONIA
Uma grande sonsa é o que ela era.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não tem desculpa o que ela fez.

DONA RITOCA
Que acha o Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Uma desavergonhada... Pior que uma cadela.

DONA SINFONIA
E fingindo-se de boa! Quando penso, senhor aguaceiro, que, o mês passado, ela foi tratar da minha Ruth, na ocasião da tal epidemia! Eu também estava doente. Seis noites que ela passou na cabeceira da pequena, maculando com seu contato impuro aquele anjinho de inocência! Quando penso nessa desgraça...

DONA EUDÓXIA
Mas a menina salvou-se.

DONA SINFONIA
Graças à Divina Providência.

DONA RITOCA
Com certeza, ao sair, ela ia se encontrar com o tal rapaz.

O BOTICÁRIO
Ora se ia!

JOAQUIM AGUACEIRO
O tratamento era o pretexto.

DONA SINFONIA
Ah! Aquela mulher é um monstro. Não é, Sr. Geraldino?

GERALDINO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Forca é o que ela merece. (Nesse momento, o velho mendigo deixa cair o cajado. Joaquim Aguaceiro volta-se para ele ao ouvir o ruído e exclama:)

JOAQUIM AGUACEIRO
E você, pai Tobias, que acha disso tudo?

O MENDIGO
(Olhando-os, lentamente, depois de apanhar o cajado) Essas coisas cá da terra a gente nunca
pode explicar.., nem julgar... Deus é que sabe... (Silêncio.)

DONA RITOCA
(Ao Barbeiro) E depois?

GERALDINO
Depois...? Ele puxava-lhe os cabelos, torcia-lhe os braços, sacudindo-a e repetindo sempre com raiva: “Diga o nome... Diga o nome..."

O PESCADOR
(Consigo mesmo) Mas por que é que ela não disse?

O BOTICÁRIO
Pudera! Se o Matias pegasse o rapazinho, esborrachava-o com um soco.

GERALDINO
(Prosseguindo) Então, corno ela não queria falar, ele apanhou à parede um grande chicote de couro e começou a bater-lhe, a bater-lhe até mais não poder. A princípio ela gemia baixinho, mas depois pegou a gritar, a gritar que era um gosto. Ele só repetia: “Diga o nome... Diga o nome...” E ela nada... Até que o sangue começou a pingar.

DONA RITOCA
O sangue?

DONA EUDÓXIA
Cruzes! (Todos se aproximam do Geraldino, ofegantes. Os peitos arfam, os olhos brilham no crepúsculo.)

GERALDINO
Sim. A cada chibatada, aparecia uma fitinha vermelha que ia escorrendo pelo corpo. Não sei se o Matias tinha dó, mas ele chorava também. E continuava, de chicote em punho, a dizer, chorando: “O nome... O nome... Diga o nome... Ela torcia-se no chão, feito cobra. Arrastava-se, agarrava-se a ele, gritando:“ Tem pena! Tem pena! Matias, eu te amei também!...” Quando o Julinho entrou no quarto, ela estava toda encharcada...

DONA SINFONIA
Encharcada?

GERALDINO
O assoalho estava vermelho, como se tivessem amassado goiaba... (Nesse momento, Dona Ritoca desanda a rir nervosamente. Todos olham, estupefatos. Geraldino interrompe-se. Mas a risada continua, cada vez mais nervosa, mais estridente.)

O BOTICÁRIO
Que é, Dona Ritoca?

DONA EUDÓXIA
Está incomodada?

DONA SINFONIA
Quer ir lá pra dentro?

DONA RITOCA
(Insistindo, e continuando a rir-se, diz, com palavras entrecortadas e ofegantes:) Não... Não... Mas... Eu imaginava a Maria das Dores, oferecendo chá ao coronel, com seus ares de princesa.., e ontem... o chicote... e o sangue... (E ri-se, ri-se sem parar. Todos entreolham-se, em silêncio, com certo constrangimento. Longa pausa.)

DONA SINFONIA
Coitada da Ritoca! ~ tão sensível!... (A Dona Eudóxia) Não tem um pouco de vinagre?

DONA EUDÓXIA
Sim. (Entra e volta com o vinagre, que faz respirar a Dona Ritoca, enquanto a conversa recomeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Foi só o Julinho que entrou?

GERALDINO
As pequenas também. Elas estavam com medo, mas o Matias arrastou-as até o quarto e disse à mulher: “Olha bem, pela última vez... Se não queres dizer o nome, amanhã tu sais desta casa para sempre, e nunca mais verás teus filhos... Nunca..."

O BOTICÁRIO
E ela não disse?

GERALDINO
Não.

O PESCADOR
(Meditando) Mas por quê?

DONA SINFONIA
Que mãe sem entranhas!

DONA EUDÓXIA
No entanto, bem extremosa que ela era!

O PESCADOR
Era, sim. E ela vai deixar os filhos para sempre.

DONA SINFONIA
Disfarce!

DONA EUDÓXIA
Mas, Sr. Geraldino, por que é que o senhor não entrou no quarto quando viu isso?

GERALDINO
Oh! Dona Eudóxia... Eu não me meto nas brigas de casais... Não me casei, foi para não brigar.

DONA EUDÓXIA
Que noite horrorosa! Fui acordada em sobressalto pelo Julinho.

DONA RITOCA
Ah! O Julinho esteve aqui?

DONA EUDÓXIA
Veio pedir-me um remédio para a mãe, que não podia mais...

O BOTICÁRIO
Em vez de ir à botica... E a senhora deu?

DONA EUDÓXIA
Pois não.

O BOTICÁRIO
Não posso deixar de estranhar essa atitude, Dona Eudóxia! A senhora... uma funcionária exemplar, de vida tão correta, pretender aliviar o castigo de uma criminosa!...

DONA EUDÓXIA
Desculpe, Sr. Simplício. Não tive em vista desgostá-lo. Mas, quando uma criatura sofre, acho que é sempre digna de piedade.

O BOTICÁRIO
São idéias subversivas, Dona Eudóxia. Ai de nós se todos assim pensassem!

DONA EUDÓXIA
Tanto mais que o Matias era longe de ser um marido exemplar. É um homem...

O BOTICÁRIO
E um homem. E o dono. Tem todos os direitos.

JOAQUIM AGUACEIRO
Isso tem.

DONA EUDÓXIA
E possível. Não sei. Não sei me exprimir... Mas isso assim não está direito.

DONA SINFONIA
Não acha justo o castigo?

DONA EUDÓXIA
Não sei. Mas a Maria das Dores, que foi, durante tantos anos, tão boa mãe, tão boa esposa, tão boa para todos... Como é que perde tudo assim, num dia só... Isso não é justo... Não é justo...

O BOTICÁRIO
Pois eu acho que ele foi até bem bom. Não é? (Volta-se para Joaquim Aguaceiro, que aprova com a cabeça.)

GERALDINO
Eu matava.

DONA EUDÓXIA
Oh! Sr. Geraldino!

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) E você, Candonga? Que diz?

O PESCADOR
(Começando a falar, sem responder) Lá pelo sertão de Minas, morava um primo meu, o Xicão. Estava casado com uma mulher linda... Eu a conheci... Uma noite, ele ouve barulho dentro de casa... Levanta-se, pega a garrucha e vai ter até o sótão. (Cospe.) Lá, ele topa com a mulher nos braços dum rapaz, um desses cometas vagabundos que andam a correr pelas estradas.

DONA SINFONIA
Matou os dois?

DONA RITOCA
(Pegando-lhe o braço, súplice) Oh! Deixe falar...

O PESCADOR
Ele atracou o rapaz. Era um valente, o Xicão, e forte, como o Matias. Amarrou o homem aos pés da cama, enterrou-lhe um lenço na boca para que não pegasse a gritar...

DONA SINFONIA
E depois...?

O PESCADOR
Depois?... Fez esquentar um ferro na trempe. Quando esteve em brasa, deu-o à mulher, mostrou-lhe o rapaz amarrado e disse: “Vai... Espeta!”

DONA EUDÓXIA
Ah! Que horror!

DONA RITOCA
E ela?

O PESCADOR
Ela a princípio não queria. Ele então encostou-lhe a garrucha na testa e disse: “Espeta ou eu atiro!...” (Pausa.) Então ela espetou.

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
Espetou a noite inteira. O Xicão não tinha pressa... Ele dizia: “Espeta aqui... estes braços que te abraçaram... aqui esta boca que te beijou... Espeta!” De vez em quando ele mandava parar, pra esticar... Quando o rapaz desfalecia... ele deixava que acordasse para continuar... A carne cheirava... De madrugada, furou-lhe os olhos...

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
(Calmo) Ele tinha deixado os olhos pro fim... Até que o outro morreu. Já nem parecia gente.

DONA RITOCA
E a mulher?

O PESCADOR
O Xicão matou-a logo em seguida. Enterrou-a na fazenda. Mas o corpo do rapaz ficou pros urubus.

O BOTICÁRIO
Ah! O Xicão era um homem.

O PESCADOR
Um sujeito às direitas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Vêem que o Matias ainda foi bem manso.

O BOTICÁRIO
(Puxando o relógio) Já são quase horas do trem...

DONA SINFONIA
Ela é capaz de não ir.

GERALDINO
Vai, sim.

DONA EUDÓXIA
E se ela disser o nome?

GERALDINO
Não diz, não. Mulher quando bate o pé... (O Pescador faz um gesto de quem não compreende.)

CENA VI

(Os mesmos, o Acendedor de Lampiões) (Ele vai entrando devagar e acende lentamente o lampião.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Oh! Velho Aprígio!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Boas noites!

O BOTICÁRIO
Acenda bem, Aprígio... que nós precisamos ver direito...

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Acendendo) Pronto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Que luz desgraçada!

GERALDINO
Qual, meu velho! Sua luz não presta!

O PESCADOR
Não se vê nada.

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Minha luz é muito boa... Vocês é que não sabem ver.

O PESCADOR
Está bom... Não se zangue... Pare um tiquinho conosco para apreciar uma coisa bonita!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Não posso parar. Tenho que seguir caminho... Há muita gente no escuro que espera pela luz...

O PESCADOR
Então, boa noite!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Saindo) Boa noite!

CENA VII

(Os mesmos, menos o Acendedor de Lampiões, depois, o Filho)
O BOTICÁRIO
(Murmura) Velho maluco! (Ouve-se o sino da estação e, ao longe, o arfar surdo do trem.)

DONA RITOCA
O trem vai chegar!

DONA SINFONIA
E ela não embarca!

O BOTICÁRIO
Embarcará, sim, à última hora... correndo...

JOAQUIM AGUACEIRO
De vergonha...

DONA SINFONIA
Eu nem hei de olhar para ela!

DONA RITOCA
(A Dona Eudóxia) Dê-me o seu xale, Dona Eudóxia. Estou sentindo frio... (Dona Eudóxia).
vai buscar o xale, que estava numa mesa perto da porta. Dona Ritoca entra com ela.).

GERALDINO
(De repente) Ela está saindo! (Aponta para a casa. Com efeito, a porta abriu-se. Todos olham com ânsia. Mas quem sai da casa é um rapazinho em mangas de camisa. Desce lentamente os degraus da porta e, sem olhar para ninguém, vai encostar-se ao muro que separa o jardim da rua, com a cabeça descansando nos braços.)

DONA SINFONIA
(Baixo) É o Julinho.

O BOTICÁRIO
O Julinho, sim. (Sussurro geral.)

DONA SINFONIA
Que é que ele veio fazer?

O MOLEQUE JENIPAPO
(Surgindo de repente) Ela já vem! Ela já vem! (Movimento de todos.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Você viu?

O MOLEQUE JENIPAPO
Espiei, sim. Ela acabou de preparar a trouxa. Vai sair.

DONA SINFONIA
(Gritando para dentro) Ritoca! Ritoca! Ela vai passar! (Aparecem Dona Ritoca e Dona Eudóxia, em seguida.)

GERALDINO
Quer sentar, Dona Ritoca?

DONA RITOCA
Em pé vê-se melhor. (Ouve-se o silvo do trem que está chegando.)

O BOTICÁRIO
Ela é capaz de perder o trem.

DONA EUDÓXIA
Qual! Esses trens... a gente nunca perde...

DONA SINFONIA
(Chamando) Venha aqui, Ritoca!

DONA EUDÓXIA
E ela não verá mais os filhos?

O BOTICÁRIO
Nunca!

O PESCADOR
(Só para si) Mas por que é que ela não disse o nome?

TODOS
Oh! Oh! Oh!

CENA VIII
(Os mesmos, Maria das Dores).
(Abre-se de novo a porta, e, destacando-se, no fundo luminoso da sala, aparece no limiar o vulto de Maria das Dores. Um grande xale preto cobre-lhe a cabeça e cai até os joelhos. Na mão, uma pequena trouxa. Ela começa a caminhar, rígida, de rosto fechado, sem olhar para ninguém. Ouve-se um sussurro no grupo. Mas alguém faz “Pst” e o silêncio torna-se geral. Todas as personagens estão na penumbra. Só o velho mendigo iluminado pela luz do lampião. Quando Maria das Dores passa por ele, ele ergue-se e tira o chapéu. Então, no meio do silêncio mortal, ouve-se um soluço abafado e desesperado. E o filho que está chorando, encostado ao muro. Ela tem um longo estremecer do corpo todo. Atrasa insensivelmente o passo um segundo, mas continua a caminhar sem um gesto e sem se voltar. Todos a acompanham com os olhos. Ouve-se novamente o silvo da locomotiva. Então, a voz do velho mendigo eleva-se na noite, grave e lenta.)

O MENDIGO
Deus é que sabe... Deus é que sabe...
FIM

Fonte:
GOMES, Roberto. A Casa Fechada. In: Teatro da Juventude. Ano IV, nº. 26. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.