domingo, 2 de março de 2025

Adega de Versos 129: Luiz Poeta

 

José Feldman (Contos em versos diversos) Apenas uma mão


Era um senhor de roupas gastas,  
com o andar lento e olhar cansado.
Na calçada, suas memórias vastas  
contavam histórias de um tempo amado.  

Um dia, tropeçou, a queda foi dura,  
e junto ao muro lá ficou a gemer.  
Clamava por ajuda em sua amargura,  
mas ninguém o ouvia, mesmo vendo-o sofrer.  

Os passantes, apressados, viam um mendigo,  
e o ignoravam, sem parar para olhar.  
Pensavam que era só queria um abrigo,  
um bêbado perdido, sem lar para ficar.  

Mas eis que um jovem com olhar atento,  
se aproximou, perguntando com bondade:  
“Senhor, precisa de algum auxílio ou alento?”  
A voz sincera trouxe-lhe felicidade.  

“Só preciso de ajuda para me levantar,”  
disse o velho, com um sorriso tímido.
O rapaz com força, o pôs a caminhar,  
e juntos seguiram num passo decidido.  

Chegaram a um palacete, imponente e belo,  
o jovem, espantado, não podia crer.  
“Este é meu lar, um lugar singelo,  
venha, entre, e vamos nos conhecer!”  

O jovem, surpreso, aceitou o convite,  
e um laço de amizade começou a florescer,  
contaram histórias, entre risos sem limite…  
Um encontro de almas, um novo amanhecer.  

Mas a moral que ecoa em nossos corações,  
é que a compaixão é um bem que se retrai,  
pois muitos, em meio às suas aflições,  
ignoram o próximo, uma vida que se esvai.  

Que possamos, como o jovem, olhar além,  
e estender a mão aos necessitados,  
pois cada ser humano tem um valor também,  
e a bondade é a luz dos seres abençoados.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com IA Microsoft Bing  

A. A. de Assis (O quase herói do vale)

Sumago é até hoje lembrado como quase herói em todo o vale da Barrinha – história que vem sendo repassada de geração a geração desde o dia em que, puxado pela correnteza, desabou pela cachoeira. Deu-se isso faz coisa de uns 70 anos, num tempo em que ainda não se entendia que caçar era coisa feia. Segundo ele contava, rolara uns 50 metros embolado nas águas se esfregando nas pedras, porém sobrescapara vivinho e ledo.

Campeiro valente, zunia nos pastos, serra acima, serra abaixo, cavalgando atrás das cabras. Nos dias de folga costumava caçar: conhecia a mata como a palma da mão; pontaria firme, acertava o alvo a espichados metros da mira. 

Medroso não era, jurava que não. Além do mais aquela mata fazia tempo estava “desonçada” e outros bichos não o assustavam, nem tamanduá-bandeira.

De onde surgira então aquela pintada? Tudo que era caçador garantia que onça havia acabado ali – a última tinha sido assada pelo Tonhão Tripeiro uns quinze anos passados. Não era possível ter sobrado filhote pra crescer e agora aparecer num de repente assim. Só podia ser assombração, queria ele imaginar. Mas não era não. A baita miou, partiu pra cima do caçador, que depois de tremendo berro se jogou mata abaixo, pulando troncos e pedras, a perversa atrás, o pavoroso miado, o vulto medonho, pega que pega...

Sumago na afobação perdeu a espingarda, rasgou a camisa, enroscou a calça num espinhal, o fôlego a toda, se livrou nu, a onça atrás, gulosa, miando.

Se alcançasse o rio, estaria salvo; era a sua esperança, arranhado, os pés arrebentados, serra abaixo, a onça nos calcanhares dele, cadê esse rio que não chega? Olha lá... só mais um tiquinho e pronto, a baita preparando o bote, ele enfim saltou na água... ti-bum. Salvo?

Salvo coisa nenhuma. A malvada pulou atrás, nadava ligeiro ela, ele a sessenta braçadas por minuto, ela encostando com os dentões arreganhados, faminta, Sumago aguentando mais do que aguentava, a resistência acabando, vontade de se entregar logo à ferona, terminar de vez aquela briga doida... Seria afinal o dia da caça...

A correnteza puxando, já bem pertinho a cachoeira. Caindo no precipício seria morte certa. Mas pouco importava, pensava ele. Melhor se esborrachar nas pedras do que virar comida de onça. Logo ele, caçador de fama. Queria tudo, menos sofrer tamanha humilhação.

Rolaram os dois corpos pela cachoeira, Sumago e a baita. Milagre? O caçador sortudo caiu na água macia, foi ao fundo, voltou revivo. A onça? Até hoje ninguém sabe. Simplesmente sumiu.  

O brioso rapaz espalhou a notícia – tinha tudo para com essa virar herói no vale. Pena que, por falta de testemunha, a vizinhança reagiu meio assim, meio duvidante. Ficou a fábula no ar.
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Antonio Augusto de Assis (A. A. DE ASSIS), poeta, trovador, haicasta, cronista, premiadssimo em centenas de concursos nasceu em So Fidlis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maring/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maring, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maring, Folha do Norte do Paran e das revistas Novo Paran (NP) e Aqui. Algumas publicaes: Robson (poemas); Itinerrio (poemas); Coleo Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crnicas, ensaios e poemas); Pomica (poemas); Caderno de trovas; Tbua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrnicas (textos curtos); A provncia do Guair (histria), etc.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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Baú de Trovas “13”


601
Ah, belos tempos dourados,
que os sonhos não trazem mais...
Bailavam, corpos colados,
olho no olho, os casais!
A. A. DE ASSIS
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602
Não amar nem ser amado,
é o mesmo que não ser nada,
é pisar no chão eivado
de acúleos pela estrada.
ABEL B. PEREIRA
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603
Esse é o trem de minha vida!
Passou rápido e fugaz
na tresloucada corrida
dos meus tempos de rapaz.
ADAMO PASQUARELLI
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604
A trova é gemido brando,
breve cantiga inocente,
que dizemos suspirando,
pensando na amada ausente.
ADAUCTO SOARES GONDIM 
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605
Peço a Noel que ele faça
com toda bondade sua,
um grande Natal na praça
para as crianças de rua.
ADEMAR MACEDO 
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606
Come de tudo o João,
carne de porco, jamais:
- Que me chamem comilão,
mas canibal é demais!
ADOLPHO BOIÇA MOINHO
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607
Quando, então, do céu descer
um brilho no seu olhar,
é porque no entardecer 
meus sonhos vão te buscar.
ANDRÉ RICARDO ROGÉRIO
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608
A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
ANÔNIMO
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609
O homem sofre ante os impulsos
das religiões e das ciências
pois pior que algemar pulsos,
é agrilhoar consciências!...
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
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610
Procura longa e constante,
num sempre querer achar…
Um sonho louco e distante,
impossível de alcançar…
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
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611
Sou mineiro...E das entranhas
trago o dom de ressurgir...
Quem vive junto às montanhas
sabe descer e subir!
ARLINDO TADEU HAGEN
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612
A casinha é sem riqueza,
mas nela a paixão é tanta,
que não floresce a tristeza.
Solidão… a gente espanta!
ARTHUR THOMAZ
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613
Teu texto, agora chegado,
escrito com tanto amor,
traz com ele, anexado,
o abraço do próprio autor!
CAROLINA RAMOS
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614
A magia azul do mar,
seus mistérios e beleza,
nos convencem a cuidar
da nossa mãe natureza.
CLAIR FERNANDES MALTY
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615
Os braços vindos de guetos,
sob o sol ou sob a lua,
amarelos, brancos, pretos,
clamam justiça na rua.
CLÁUDIO DE CÁPUA 
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616
Felicidade, afinal,
eu creio que nem existes...
- Não passas de um ideal
no desespero dos tristes...
DAVID JOSÉ PASSERINO
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617
A bonita escadaria
que parece não ter fim,
é um convite à poesia
que existe dentro de mim!
DELCY RODRIGUES CANALLES 
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618
Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombro os fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos…
e eis-me a sonhar outra vez! 
DOROTHY JANSSON MORETTI 
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619
Por sobre as águas do mar,
ou sobre as terras da Terra,
um avião vem lançar
bombas de Amor contra a guerra.
ELISABETE AGUIAR
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620
Minha alma toda estremece,
quando te vejo a meu lado;
murmuro logo uma prece,
mas não resisto ao pecado...
EUGÊNIO MARTINS DE FREITAS 
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621
Eu sinto grande emoção
ao ver o mar, e então, canto
com amor no coração
o mais suave acalanto!
FABIANA GONÇALVES DA VEIGA
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622
Em certos beijos se esconde
um demônio singular
que nos conduz não sei aonde,
donde é difícil recuar. 
FAUSTO PARANHOS 
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623
Cai a chuva na vidraça
e eu fico triste, porque
não há beleza nem graça
nesta casa sem você.
FILEMON FRANCISCO MARTINS
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624
Quando a seca nos acossa
e o rio mostra seu leito,
a tristeza que há na roça
roça com força em meu peito
FRANCISCO JOSÉ PESSOA 
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625
O tempo vem desfazendo
a família dia a dia;
hoje vivemos fazendo
sala pra tecnologia.
GERALDO TROMBIN
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626
Vejo a tua silhueta
na sombra, bem definida,
e abro, em meu peito, a gaveta 
de uma saudade escondida!
GISLAINE CANALES 
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627
Se és veloz no pensamento,
no trânsito sê prudente.
Usa o cinto, fica atento...
Mostra que és inteligente!
GLEDIS TISSOT 
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628
Num recanto abandonado,
tecendo rede e lembrando,
pescador aposentado
afaga o barco, chorando.
GLÍCIA MURARA NEIDERT
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629
A paz nem sempre é perfeita,
esconde-se em descaminhos,
entre dores, fica à espreita,
como rosa entre os espinhos.
HENRIETTE EFFENBERGER
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630
A paixão enlouquecida
pelo ardor da mocidade
se transforma ao fim da vida
em carinhosa amizade.
HERIBALDO GERBASI
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631
No boteco está sobrando
comida... boa... e... barata:
-  Pastel: "Jesus tá chamando"!
-  Coxinha: "Adeus vida ingrata"!...
IZO GOLDMAN 
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632
À mesa, família unida;
passou o tempo e, afinal,
cada um no lar, na vida,
vive em mundo digital...
JESSÉ NASCIMENTO
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633
A vida é um trem nos levando
com destino à eternidade,
que segue, sacolejando,
pelos trilhos da saudade...
JOÃO PAULO OUVERNEY
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634
Cinquenta reais por ponto... 
e ao mestre ele deu quinhentos. 
Da propina, houve um desconto: 
- Nota dois... e os quatrocentos!!!
JOSÉ FELDMAN
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635
No instante em que o sol se enfada
de tanto aquecer a terra
deita a cabeça dourada
no travesseiro da serra.
JOSÉ LUCAS DE BARROS 
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636
O chão trincado e careca
e o céu vazio e distante…
- Tudo seco!… Só não seca
o pranto do retirante…
JOSÉ MESSIAS BRAZ
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637
Ajuda os de mãos vazias,
porque colheita não temos
igual à das alegrias
que vêm do bem que fazemos!…
JOSÉ TAVARES DE LIMA
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638
Tira a roupa, e, quase nua
diz ao marido, emburrada:
- Pareço ainda "Perua "?!
- Parece, sim... depenada!
NEWTON MEYER AZEVEDO
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639
Uma lágrima reluz
numa pétala dourada.
Orvalho cheio de luz,
clareando a madrugada.
PAULO WALBACH PRESTES 
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640
O passado é vento morno,
afaga nossa lembrança:
estéril, não tem retorno;
atado, não nos alcança.
PEDRO OLIVEIRA DUTRA NETO 
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641
Mãe! quisera eu me deitar
junto à parede, aos teus pés.
adormecer e sonhar,
sentindo os teus cafunés.
PROFESSOR GARCIA
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642
Ao deitar na rede, o Guido
morreu de uma forma tétrica,
porque, de tão distraído,
deitara na rede elétrica!
RENATA PACCOLA
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643
Em Páscoa feliz tem ovo,
sonho doce de criança,
buscando um mundo bem novo
e redondo de esperança!
ROBERTO NINI
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644
Sobre a parreira, o luar
no sereno te retrata…
E os teus olhos a brilhar:
“Duas uvas”… cor de prata…
ROBERTO TCHEPELENTYKY
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645
Nos mais difíceis momentos,
tuas virtudes revelas:
quando o barco enfrenta os ventos,
mostra a beleza das velas!
SÉRGIO FERREIRA DA SILVA 
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646
Mãe, o teu riso gostoso, 
eterno, presente em mim, 
é o legado mais saudoso... 
Uma saudade sem fim. 
SOLANGE COLOMBARA 
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647
Muitas rosas só não falam.
      Não nos ferem com espinhos.
      Um doce perfume exalam
      e nos cobrem de carinhos.
SUELY BRAGA
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648
– Depressa!… A bolsa ou a vida.
– Mas, que sufoco, senhor!…
Diz a livreira polida.
– Não sabe o nome do autor?
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
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649
A tua ausência é o refrão
de uma tristeza sem fim,
onde o tempo ao dizer não,
permite à dor dizer sim.
WALNEIDE FAGUNDES DE S. GUEDES
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650
Na corrida certa vez,
deu-se um caso singular .
Em prova que tinha três,
cheguei em quarto lugar!
ZUNIR PEREIRA ANDRADE FILHO 
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Conto das Mil e Uma Noites (Destino ou merecimento?)

Minha história é simples. Fui um cordoeiro por toda a minha vida, especializado em cânhamo, como meu pai e meu avô tinham sido antes de mim. Minha renda mal dava para sustentar a mulher e os filhos. Mas como não tinha capacidade para exercer outra profissão, estava satisfeito e não me queixava a Deus nem atribuía minha pobreza senão à minha ignorância e estupidez. 

Conheci dois homens ricos, Saad e Saadi, que vinham habitualmente descansar e conversar perto de minha loja e assim tornaram-se meus amigos. Um dia, ouvi-os discutir um assunto que me interessou: 

– Será a riqueza adquirida por certos homens o resultado de sua capacidade e aplicação ou um presente do destino? 

- Ó Saadi, disse finalmente Saad, vejo que nenhum de nós irá convencer o outro sem provas. Proponho, portanto, que localizemos um homem pobre e honesto e coloquemos um pequeno capital em suas mãos. O estado de sua fortuna nos meses seguintes provará quem de nós dois está certo: tu que deixas tudo por conta do destino, ou eu que acredito que cada homem é o arquiteto de sua vida. 

Escolheram-me para sua experiência e deram-me duzentos dinares de ouro, perguntando: “Achas que com este capital poderás desenvolver teu negócio e tornar-te rico?” 

Respondi: “Serei mais rico que todos os cordoeiros de Bagdá juntos.” 

Ao ver os dinares de ouro na mão, senti-me num êxtase e procurei escondê-los em algum lugar seguro. Após muito deliberar comigo mesmo, tirei dez dinares para minhas despesas e coloquei o restante nas dobras da barra com que costumo envolver meu turbante. Depois, comprei um lombo de carneiro e dirigi-me para casa. 

Mas enquanto caminhava, a cabeça agitada por sonhos de riqueza, um falcão faminto desceu do céu e, antes que me desse conta do que estava acontecendo, arrebatou meu lombo de carneiro no bico e meu turbante nas garras e voou. 

Após gastar os dez dinares, recaí na miséria anterior. 

Dez meses depois, os dois amigos vieram visitar-me para verificar quem deles tinha acertado. Recebi-os com olhos baixos, e disse-lhes: “O destino continuou a antagonizar-me, e estou em piores condições do que antes.” E contei-lhes o que havia acontecido. 

Saadi sorriu maliciosamente pela decepção do amigo. Mas Saad disse-me: “Não duvido de tuas palavras, embora possa suspeitar que gastaste os duzentos dinares na devassidão. Seja como for, não quero deixar meu amigo Saadi triunfar tão facilmente. Eis outros duzentos dinares de ouro. Tenta novamente a sorte, e não vás escondê-los no teu turbante.” E foram embora. 

Voltei para casa, procurando onde esconder o dinheiro. Reparei numa velha jarra cheia de farelo. Amarrei o dinheiro num pano e enfiei-o no fundo da jarra. Enquanto saí para fazer compras, um vendedor ambulante passou na rua, vendendo pacotes de um preparado de ervas com o qual as mulheres lavam o cabelo no hammam (sauna a vapor). Não tendo dinheiro, minha mulher trocou dois pacotes daquela pasta pela jarra de farelo. 

Quando voltei, procurei a jarra com os olhos para me tranquilizar e, não a vendo, perguntei à mulher por ela. Contou-me. 

“Ó mulher desafortunada!” gritei. “Trocaste meu destino, teu destino e o destino de nossos filhos por um punhado de ervas.” 

Sabendo o que fizera sem querer, ela pôs-se a lamentar-se, censurar-me por não lhe ter revelado o segredo em tempo e falar sem parar como fazem as mulheres diante das desgraças. “Uê! Uê! Vendi o destino dos meus filhos a um mascate que não conheço e que nunca poderei encontrar de novo.” 

Quando, longos meses depois, Saad e Saadi reapareceram, recebi-os com ar ainda mais constrangido e contei-lhes o que acontecera. Saad disse que não iria refazer a experiência mais uma vez; mas Saadi declarou: “Ó Hassan, eu também gostaria de ajudar-te. Como não sou tão favorecido quanto meu amigo Saad para seguir-lhe o exemplo, só posso dar-te este pedaço de chumbo que algum pescador parece ter perdido quando arrastava sua rede pelo caminho. Se tal for o decreto do destino, este pedaço de chumbo virá a ser-te mais útil que minas de prata.” 

À noite, voltei para casa, coloquei o pedaço de chumbo em qualquer lugar, julgando que de nada me serviria, e dormi. Ora, na manhã seguinte, ao preparar sua rede, um pescador vizinho reparou que faltava nela o pedaço de chumbo indispensável, e veio perguntar-me se dispunha, por acaso, de tal pedaço. Dei-lhe o pedaço que Saadi me oferecera. 

Grato, o pescador disse-me: “Jogarei a rede da primeira vez em teu nome e o que recolher será teu.” 

O curioso é que, o dia todo, ele pescou peixes pequenos e, somente na primeira vez, apanhou um peixe grande, de um cúbito de comprimento, e fiel à sua promessa, trouxe-me. O peixe sendo maior que nossas panelas, minha mulher teve que cortá-lo em pedaços para fritá-lo. Dentro dele encontrou uma bola de vidro do tamanho de um ovo de pomba. 

À noite, essa bola de vidro iluminou a casa mais que a lâmpada. No dia seguinte, a história de nossa descoberta espalhou-se por toda a cidade graças à língua comprida de minha mulher. Logo recebeu ela a visita de uma certa judia da vizinhança, cujo marido era um joalheiro. Após contemplar longamente a bola de vidro, disse à minha mulher: “Agradece a Deus esse pedaço de vidro sem valor. Tenho outro igual e gostaria de completar o par. Ofereço-te, pois, por esta coisa insignificante, a enorme importância de dez dinares de ouro.” 

Minha mulher, preferindo usar a bola como lâmpada, recusou a oferta. Quando voltei para casa, contou-me. Disse-lhe: “Se a coisa não tivesse valor, jamais uma filha de judeus ofereceria dinheiro por ela. Tenho a certeza de que ela voltará e aumentará sua oferta. Aconselho-te a não vender a bola sem me consultar.” 

Falei assim, lembrando-me das palavras de Saadi de que aquele pedaço de chumbo me tornaria rico se o destino assim o determinasse. Por Alá, a judia voltou e, usando as mesmas manhas e chamando a joia “aquela coisinha sem valor” e “aquela miséria”, ofereceu por ela assim mesmo cem dinares de ouro. Era óbvio naquela altura que o achado era uma joia rara, de valor inestimável. 

Ofereci-a à judia por 100 mil dinares, dizendo: “Outros joalheiros que conhecem essas raridades melhor que teu marido me ofereceriam mais ainda. Mas eu nunca fui ganancioso. E juro por Alá que não aumentarei este preço.” 

Após protestar como diante de uma ousadia escandalosa, a judia disse: “Comprar e vender não é comigo. Falarei a meu marido. Se ele se interessar, virá procurar-te. Até lá, promete-me não vender a outrem esse vidrinho de nada.” 

Prometi, e a mulher saiu apressada. Como previra, o joalheiro apresentou-se em nossa casa naquela mesma noite. Via-se no seu rosto toda a astúcia de seu povo e sua determinação de arrancar-me o destino das mãos. Após queixar-se do tempo, dos maus negócios, das dificuldades que atravessava, após dizer que mal ganhava o pão dos filhos, jurando constantemente por Aarão e Jacó, disse que só queria aquela brincadeira de vidro para agradar à mulher grávida, pois “nós os homens devemos submeter-nos às fantasias de nossas esposas nesta fase, senão corremos o risco de ter filhos deformados.” 

Pediu-me ver o ovo. Mandei tirá-lo das mãos das crianças que brincavam com ele; fechei portas e janelas e coloquei o ovo em cima de um consolo. A casa ficou iluminada como se fosse meio dia. O judeu ficou tão maravilhado que deixou escapar o segredo de que aquela bola era uma das joias que haviam pertencido a Soleiman (Salomão). Lamentou, logo em seguida, suas palavras, mas não soube como retirá-las. 

Finalmente, perguntou-me que preço pretendia pelo ovo; respondi: “100 mil dinares, como disse à tua mulher. E se não tivesse dado minha palavra, que um bom muçulmano sempre respeita, aumentaria o preço dez vezes ou mais, agora que sei que a joia pertenceu a Soleiman.” 

O joalheiro levantou-se com ar trágico: “Queres arruinar-me?” perguntou. “Se vendesse minha joalheria e minha casa e meus filhos e minha mulher e a mim mesmo, não conseguiria juntar esta soma. Pensei que a tivesses mencionado a minha mulher por brincadeira.” 

Vendo-me, todavia, firme, e receando que eu voltasse atrás na minha palavra, disse: “O dinheiro está aí.” E chamou pela janela seus servidores que esperavam com sacos cheios de dinares. 

Achando-me assim fabulosamente rico, parei de trabalhar, fechei a loja e construí uma casa suntuosa. Dei à minha família todo o conforto e luxo possíveis e distribuí presentes generosos a
parentes, amigos e aos necessitados. 

Um dia, Saad e Saadi procuraram saber de mim. Encontrando a loja fechada, pensaram que eu tinha morrido. Mas os vizinhos indicaram-lhes minha nova morada. Vieram até mim, surpresos e alegres e, após ouvirem minha história, Saadi regozijou-se e disse triunfalmente a Saad: “Vês?” 

Estávamos ainda conversando, quando meus filhos que brincavam no jardim entraram em casa, carregando o ninho de uma grande ave que um de meus escravos apanhara no alto de uma palmeira. Para meu espanto, verifiquei que este ninho tinha sido construído na base de uma banda de turbante - minha banda e meu turbante. Dentro deles encontrei os cento e oitenta dinares embrulhados exatamente como os havia colocado. 

Não tínhamos ainda nos recuperado da excitação produzida por esse milagre, quando um dos meus servidores entrou com uma jarra de farelo que reconheci logo ser aquela jarra. 

O servidor explicou que a comprara para um de nossos cavalos. Procurei dentro da jarra e encontrei os duzentos dinares. Desde então, eu e meus dois amigos temos dirigido nossas vidas pela hipótese de que ninguém é capaz de prever as maravilhas do destino quando ele for generoso. 

Saad, que era um pouco poeta, compôs estes versos: Quando o destino for generoso para contigo, sê generoso para com os outros: Nem a liberalidade te perderá se ele for favorável; nem a parcimônia te salvará se e1e for adverso.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing