Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem uma viagem. A raposa convidou o gambá para seu companheiro, e o corvo convidou o caracará*. Partiram. Chegando no meio dos montes, veio a noite e foram pedir rancho na casa da amiga onça. A onça andava por fora atrás de um rebanho de carneiros, e chegou na casa muito tarde, trazendo um grande carneiro morto. Os hóspedes, que se achavam em casa, ficaram com medo.
Disse a raposa:
— Compadre corvo, as coisas não estão boas.
Disse o caracará:
—Ora, esta é boa, não temos de que temer; mas você, comadre raposa, é que deve estar em maus lençóis, sem ter onde se meter!
A raposa deu uma gargalhada e disse:
—Serei eu pior do que compadre cachorro?
O caracará:
— Comigo ninguém pode, não corro por terra, porque não corto bem o chão, mas corto o vento. Você, amiga raposa, e compadre gambá, é que têm de se ver hoje, quando ela pegou o compadre carneiro, que é maior de que vocês, quanto mais!
Chegou a hora da ceia. A onça convidou os seus hóspedes para cearem. Só a raposa é que pôde comer, por causa do feitio do prato. A onça fez mais mingau e espalhou numa pedra, e a raposa tornou a lamber. Depois o corvo disse:
— Comadre onça, eu não acho boa esta moda: quem lambe, come, quem pinica com fome fica! Foram todos dormir.
O corvo disse para o caracará:
— Nós não havemos de ficar com fome.
Quando a onça pegou no sono, o corvo agarrou nos filhotes da onça, e os devorou com o bico; o caracará fez o mesmo. Safaram-se, deixando a raposa e o gambá dormindo.
Quando a onça acordou, procurou os filhotes e só viu os ossos, e investiu para a raposa, que escapou-se e foi ao encontro de seus companheiros de viagem e os encontrou na casa do macaco.
A raposa disse:
—Agora é ocasião de vingar-me do que vocês me fizeram.
Mas como era hora de jantar, ela esperou. No fim do jantar viu um cachorro, teve medo e despediu-se. Foram o corvo e o caracará para a casa do galo e a raposa já lá estava, esperando pela ceia.
Chegada a hora, foram todos cear. O galo espalhou milho por toda a casa e disse:
Venham de bico
Que me despico:
Quem tem focinho.
Nem um tico.
A raposa meio desconfiada:
Façam o que quiser,
Durmam vocês, é que se quer.
Foram todos dormir, e a raposa foi convidar mais amigas para virem dar cabo de seus inimigos de penas. Deram cabo de todos, só deixando o gambá, por ser muito fedorento.
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* Caracará = ave de rapina semelhante ao falcão.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais, entre eles, o Diário de Pernambuco, a República, o Liberal, o Correio de Pernambuco e o Americano. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Ao defender sua tese, travou uma discussão com um de seus examinadores, o professor Coelho Rodrigues. A agressão resultou em um processo, que não teve consequências. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.
Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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