Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda, em seus agudos instantes de plenitude.
Eu amo, eu amo a luta como se me apresenta, quando a vida me sorri, e quando a vida me castiga. Porque a luta tem a beleza intrínseca, como a fonte tem a água e o sol tem a luz.
| II |
Eu não gosto do céu nessas noites macias em que a lua romântica vai tecendo madrigais a seu amante milenário.
Eu gosto do céu quando o sol faz doer os olhos dos homens atrevidos.
Eu gosto do céu quando o céu enche o mundo de claridades que deslumbram.
| III |
Eu não gosto do mar quando as ondas só fazem carícias à praia brancacenta.
Eu gosto do mar quando o mar é fúria desencadeada enchendo o ar com estrondejamentos de apocalipse.
| IV |
Eu não gosto do vento quando a folhagem apenas baila um bailado pequenino.
Eu gosto do vento quando os cedros descrevem curvas penosas, e toda a floresta fica gemendo na devastação absoluta.
| V |
Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores que suam em trabalhos rudes.
Eu me sinto orgulhoso quando minha própria fronte é um só porejar abundante.
Eu bebo meu suor sem nojo, como os selvagens deglutem religiosamente os restos de seus guerreiros mortos.
| VI |
Eu bendigo o rosário de inquietações que o destino me concedeu, porque por essas contas se há de medir a força de minha mocidade.
Eu bendigo os golpes com que o mundo me faz sofrer, porque esses golpes estão pondo à prova as energias de meu espírito.
Eu bendigo, eu bendigo a sanha dos que me combatem e a impiedade dos que me odeiam, porque, com esse ódio e com esses combates, incendiarei substâncias novas do meu ser.
| VII |
Eu abomino as horas longas e largadas; porque nas horas largadas e longas, não se erguerão as catedrais imperecíveis.
Eu fujo do silêncio porque o silêncio é mensagem da noite e a noite é ausência do Sol.
| VIII |
Eu não quero morrer na posição que todos ensaiam, no fim do dia.
Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis. Ou rasgando o chão pela força de velocidades inauditas. Ou sentindo, no fundo da vida, onomatopeias de sangue gorgolejando, de todas as carnes se abrindo...
| IX |
Porque o cântico do homem novo é um cântico de guerra.
Escreve a última frase, larga a caneta. Chega-se à janela e respira fundo, deliciado.
Consulta o relógio.
— Tão cedo! Podia passar tudo a limpo, agora. Reflete.
— Não. De noite é melhor
Arruma o cabelo, prepara o nó da gravata, enquanto relê os períodos mais importantes.
— Modéstia à parte, esse negócio está bem passável. Só que me saiu um tanto bolchevista. Mas não faz mal. De vez em quando se deve assustar os burgueses...
Veste o paletó. Examina-se ao espelho. Sai do quarto assobiando um samba vitorioso.
Na sala de jantar, Clarita estuda um figurino.
— Que é isso? Tomando vento nas costas? Não tem medo de uma pneumonia?
— De uma não. Só de duas.
— Engraçadinha!
Fecha a porta do corredor.
— Onde está meu guarda-chuva?
— Pra que guarda-chuva?
— Ora, pra quê...
— Com esse tempo firme?
— Tempo firme, nada! Então eu não conheço este Rio de Janeiro?
Mira-se no espelho da étagère (estante). E recomenda:
— Não discuta mais com seu Gonçalves, ouviu? Não quero nenhuma encrenca com vizinhos.
(Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda...)
— Mas o rádio do português é insuportável, Raimundo.
— Embora.
— Você fala assim porque não passa o dia inteiro em casa, como eu.
Não retruca. Faz o último exame no traje.
— Bem. Vou indo.
— Há mais tempo.
Ganha a rua. Um automóvel passa chispando. Tapa o nariz com o lenço, por causa da poeira.
— Maluco!
Espera que o sinal fique bem aberto, antes de atravessar.
— Vou eu aí quebrar a cabeça, por imprudência...
(Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis).
Perto do poste de parada, os homens da Companhia trabalham ruidosamente. Um negro exibe ao sol o dorso nu. Sua em bica.
— Xexéu safado!
(Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores...)
O veículo não tarda.
— Fazem um barulho, estes bondes...
(Eu fujo do silêncio porque...)
Procura lugar, pedindo licença a meio mundo. Senta-se.
A perspectiva de mais um inútil dia de repartição lhe dá certa melancolia. Conforta-o, entretanto, o acontecimento da nova página.
O bonde faz a volta da rua Bambina, e Raimundo dos Santos Filho começa a recapitular, inteiramente absorto, o “Cântico do Homem Novo”.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing
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