sexta-feira, 28 de março de 2025

Newton Sampaio (O cântico)

| I |
Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda, em seus agudos instantes de plenitude.

Eu amo, eu amo a luta como se me apresenta, quando a vida me sorri, e quando a vida me castiga. Porque a luta tem a beleza intrínseca, como a fonte tem a água e o sol tem a luz.

| II |
Eu não gosto do céu nessas noites macias em que a lua romântica vai tecendo madrigais a seu amante milenário.

Eu gosto do céu quando o sol faz doer os olhos dos homens atrevidos.

Eu gosto do céu quando o céu enche o mundo de claridades que deslumbram.

| III |
Eu não gosto do mar quando as ondas só fazem carícias à praia brancacenta.

Eu gosto do mar quando o mar é fúria desencadeada enchendo o ar com estrondejamentos de apocalipse.

| IV |
Eu não gosto do vento quando a folhagem apenas baila um bailado pequenino.

Eu gosto do vento quando os cedros descrevem curvas penosas, e toda a floresta fica gemendo na devastação absoluta.

| V |
Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores que suam em trabalhos rudes.

Eu me sinto orgulhoso quando minha própria fronte é um só porejar abundante.

Eu bebo meu suor sem nojo, como os selvagens deglutem religiosamente os restos de seus guerreiros mortos.

| VI |
Eu bendigo o rosário de inquietações que o destino me concedeu, porque por essas contas se há de medir a força de minha mocidade.

Eu bendigo os golpes com que o mundo me faz sofrer, porque esses golpes estão pondo à prova as energias de meu espírito.

Eu bendigo, eu bendigo a sanha dos que me combatem e a impiedade dos que me odeiam, porque, com esse ódio e com esses combates, incendiarei substâncias novas do meu ser.

| VII |
Eu abomino as horas longas e largadas; porque nas horas largadas e longas, não se erguerão as catedrais imperecíveis.

Eu fujo do silêncio porque o silêncio é mensagem da noite e a noite é ausência do Sol.

| VIII |
Eu não quero morrer na posição que todos ensaiam, no fim do dia.

Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis. Ou rasgando o chão pela força de velocidades inauditas. Ou sentindo, no fundo da vida, onomatopeias de sangue gorgolejando, de todas as carnes se abrindo...

| IX |
Porque o cântico do homem novo é um cântico de guerra.

Escreve a última frase, larga a caneta. Chega-se à janela e respira fundo, deliciado.

Consulta o relógio.

— Tão cedo! Podia passar tudo a limpo, agora. Reflete.

— Não. De noite é melhor

Arruma o cabelo, prepara o nó da gravata, enquanto relê os períodos mais importantes.

— Modéstia à parte, esse negócio está bem passável. Só que me saiu um tanto bolchevista. Mas não faz mal. De vez em quando se deve assustar os burgueses...

Veste o paletó. Examina-se ao espelho. Sai do quarto assobiando um samba vitorioso.

Na sala de jantar, Clarita estuda um figurino.

— Que é isso? Tomando vento nas costas? Não tem medo de uma pneumonia?

— De uma não. Só de duas.

— Engraçadinha!

Fecha a porta do corredor.

— Onde está meu guarda-chuva?

— Pra que guarda-chuva?

— Ora, pra quê...

— Com esse tempo firme?

— Tempo firme, nada! Então eu não conheço este Rio de Janeiro?

Mira-se no espelho da étagère (estante). E recomenda:

— Não discuta mais com seu Gonçalves, ouviu? Não quero nenhuma encrenca com vizinhos.

(Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda...)

— Mas o rádio do português é insuportável, Raimundo.

— Embora.

— Você fala assim porque não passa o dia inteiro em casa, como eu.

Não retruca. Faz o último exame no traje.

— Bem. Vou indo.

— Há mais tempo.

Ganha a rua. Um automóvel passa chispando. Tapa o nariz com o lenço, por causa da poeira.

— Maluco!

Espera que o sinal fique bem aberto, antes de atravessar.

— Vou eu aí quebrar a cabeça, por imprudência...

(Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis).

Perto do poste de parada, os homens da Companhia trabalham ruidosamente. Um negro exibe ao sol o dorso nu. Sua em bica.

— Xexéu safado!

(Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores...)

O veículo não tarda.

— Fazem um barulho, estes bondes...

(Eu fujo do silêncio porque...)

Procura lugar, pedindo licença a meio mundo. Senta-se.

A perspectiva de mais um inútil dia de repartição lhe dá certa melancolia. Conforta-o, entretanto, o acontecimento da nova página.

O bonde faz a volta da rua Bambina, e Raimundo dos Santos Filho começa a recapitular, inteiramente absorto, o “Cântico do Homem Novo”.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

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