sábado, 31 de dezembro de 2022

Feliz 2023

 

Ademar Macedo (Vírus da Trova) – 2

 

Luzimagda Martin Ramos da Fonseca (Canteiro de Trovas)


A força das minhas mágoas,
ninguém pode calcular.
É mesmo feito a das águas,
que ninguém pode parar!
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Busco fé nas horas mortas,
quando a dor me faz chorar.
Busco ter saídas, portas,
para de novo sonhar.
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Carregado em emoções,
pode o livro conduzir…
Ao real, ou ilusões…
mas sempre ajuda a seguir.
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Com um futuro risonho,
sonhei poder alcançar...
Tudo não passou de sonho.
Apenas pude sonhar!
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Deixar o dia mais lindo,
incumbe-se a bicharada
primavera reluzindo,
sendo a mata agraciada.
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Em meio à tanta beleza,
tendo a paz a nos cercar,
veremos quanta riqueza,
criou Deus, ao nos criar.
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Este amor, outrora lindo,
deixou marcas, muita dor.
E, hoje, embora já findo,
não se tornou desamor!
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É triste a efemeridade
da nossa pobre existência,
confundindo a humanidade,
elucidando a ciência.
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Existe a felicidade,
sempre pronta a nos rondar,
obstáculo na verdade,
é nela, não confiar.
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Faz frio, junto ao fogão,
relembro a paz e o carinho,
horas mortas de ilusão...
que adornaram este ninho.
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Fez da mentira aliada,
no caminho que tomou
e a vida por Deus lhe dada,
em mentira se tornou.
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Foi por minha culpa e pressa,
que o meu destino mudou.
O tempo passou depressa...
e a vida nos afastou!
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Foi uma breve atração,
sentimento sem amor,
fogo intenso de paixão,
que provocou tanta dor!
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Havia serenidade
no aconchego dos meus pais.
Ternura muita bondade,
que não olvido jamais!
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Na emoção de um abraço,
criamos um novo alento…
Até mesmo a dor de fracasso,
se ameniza no momento.
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Não foi amor, foi paixão
que como fogo apagou.
Cremado virou carvão
E nem a cinza ficou!
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Não havia ali fartura,
mas tudo dava e sobrava.
No milagre da ternura,
o pão de multiplicava!
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Não me joguei nos seus braços...
Meu impulso dominei...
Entre dezenas de abraços,
lamento o seu...que deixei.
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Netos... são continuidade,
dos bebês que foram meus.
São bênçãos da eternidade,
presentes dados por Deus!
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O livro é porta aberta,
que nos exorta e conduz,
na busca da coisa certa…
Da luz, que brilha e reluz!
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O medo, não subestimem,
lhes  causa estagnação…
É forma com que oprimem,
seu livre arbítrio e ação.
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O meu lema é o amor,
norteando minha vida.
Meu baluarte na dor…
refrigério na ferida.
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O que dizer da verdade
intrínseca em cada ser?
O erro, na realidade,
é nossa forma de ver.
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O seu miado manhoso,
adorna-me e faz feliz.
É gostoso, carinhoso…
Gatinho, que sempre quis.
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O tempo passa corrido…
Tudo deixando pra traz.
Por tudo, que foi perdido…
Se perdem horas de paz.
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Para estudar, todo dia,
a condução era o trem.
Hoje revivo a agonia…
E a saudade deste bem!
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Plena em cores e alegria,
a nossa vida transcorre,
coloquemos poesia,
no nosso tempo que corre.
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Por vezes na adolescência,
por um simples, “não te ligo”,
amargamos consequência
de intenso e amargo castigo!
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Se este beijo existisse,
no momento da partida…
Talvez você não partisse…
Partindo assim minha vida.
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Sua imagem aparece
em todos os sonhos meus.
Acordo e se desvanece,
pois estás junto de Deus!
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Tempo perdido...eu lamento.
Você foi e não voltou.
Hoje, eu amargo o tormento,
pensando: – o vento levou…
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Teu amor, doce quimera,
me fez sorrir e chorar.
Tudo ficou no “quisera”!
Valeu a pena sonhar!
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Teu sorriso deslumbrante,
de uma riqueza sem par,
fez de mim eterna amante…
Sonhando te reencontrar!
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Ter como foco a criança,
será de grande nobreza,
ver surgir nova esperança,
recobrar a realeza.
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Um passado inesquecível,
está vivo na memória.
Tudo nos será possível…
Resgatando nossa história.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Adega de Versos 98: GP Feldman (Dilema)

 

Chico Anysio (Cotidiano)


Quem tem notícia de Helena
Por favor queira informar.
Quem souber desta morena
Venha, correndo, avisar


Começa a nascer um samba no pinho de Leonam. Mais um a ser guardado com os demais trinta e tantos, sem que cantor algum se interesse por gravar. Esse, como os demais, é um samba inventado. Mais um pouco e pode reunir a família a quem mostrará a canção e ouvirá as opiniões de sempre:

— Tá lindo, Leonam. Dá pro Nelson Gonçalves.

— Um lixo. Só gosto de música do Roberto.

— Mentira, pai, tá bonito.

— Tem uma coisinha ou outra que dá pé.

Os filhos, jovens demais para saber da vida, não entendem muito a filosofia dos sambas, mas Lídia sabe que ele só faz coisa boa. Havia de chegar o dia em que seria reconhecido. Diz que música dá dinheiro. Não vê que tudo que é compositor tem carro?

Resolve, como das outras vezes, deixar a segunda parte para amanhã. Deita o violão no alto da cristaleira. Ajuda a mulher a recolher os pratos e as migalhas do jantar. O cachorro safado fazendo de novo no tapete.

— Rinnk... ronnk...

Irrita-se com o rangido eterno da porta da cozinha que não há óleo que dê jeito. Senta-se na poltrona de estofado gasto para ler o resto do jornal, começado no trem.

Não tem ainda 40 anos e já começa a pensar na morte. Não por ele, que não é egoísta, mas pela família que, com ele morto, do que vai viver? Como e com que se alimentariam aquelas quatro bocas? Cinco, porque o cachorro safado, porção nojento, também come. E mais do que os meninos, até.

O serviço que faz — cobrador da Telefônica — não garante nada de ostentoso para o futuro, mas, com ele vivo, sempre há o dinheiro dos bicos, vendendo refresco na porta do Maracanã ou espetinho à frente do Mourisco, nos ensaios da Portela. Morto, cadê?

— Quer um cafezinho? Passei agora! — oferece a mulher, 35 anos na carteira, 48 no rosto.

Ele aceita.

— Veja se está bom de açúcar.

— Está. — diz, sem provar, pela confiança que tem na mão da mulher que nunca errou na conta do doce, apesar de sempre perguntar a mesma coisa.

A mesma coisa.

Isso, é a vida dele. Cotidiano que escangalha a vida.

E a porta da cozinha rangendo rinnk. .. rooonnk; o cachorro encharcando o tapete 2 por 1, comprado na liquidação da Sears, os meninos brigando por um lugar melhor no sofá, a cabeça da vizinha, na janela, pedindo uma xícara de açúcar, a porta da cozinha rangendo... rinnk... ronnk...

— Chega pra lá, Helinho. Eu estava aqui antes.

— Quem vai ao vento, perde o assento.

— Mãe, olha o Helinho.

— Quer mais um cafezinho, Leonam?

— Para de me empurrar, Luciana.

— Rinnk.. . roonnk...

— Dona Lídia, me empresta uma xícara de açúcar?

— Pai, dá um jeito no Helinho.

— Veja se está bom de açúcar.

— Rinnk... ronnk...

Parece o barulho monótono das rodas do trem. Uniforme, fastidioso, insípido. E se é ruim com ele vivo, imagina depois de morto.

Pensa na morte como um fato que se dará amanhã. De olhos fechados, vê-se morto, imaginando o caos em que a casa mergulhará. A família, no mínimo, terá que mudar para um barraco. E o violão? Queria ser enterrado com ele.

Faz mi menor sem pestana e puxa, do fundo do peito, um verso novo.

Quero ser enterrado
Com o meu violão,
Companheiro adorado
Vai comigo no caixão.


— Que música mais besta, Leonam. Música que fala da morte... Bate na madeira.

Ele dá três pancadas nas costas do pinho, obedecendo por obedecer. E não é isso que faz todas as horas do dia? Os filhos, sim, são autônomos.

— Vá fazer os deveres de casa, Luciana.

— Depois, mãe.

— Helinho, já fez os deveres?

— Mais tarde.

— Leoninho...

– Psiu. Tô vendo a novela.

— Rinnnk... ronnk...

Novela acabada, cada um para o seu canto, boa noite, boa noite (se não é dia de amar) e até amanhã, quando tudo vai acontecer do mesmo modo: imutável e leso.

Luz apagada, os meninos na cama, Dona Lídia cobre-se com o lençol Santista Ouro, ainda do enxoval. Deixa uma perna descoberta, de propósito.

— Boa noite, Leonam.

— Boa noite.

E dorme antes dele, como sempre.

Para ajudar o sono a chegar, Leonam fecha os olhos e fica imaginando a porta da cozinha abrindo e fechando: rinnk... ronnnk... rinnk... ronnnk... até amanhã.

Até sempre.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XIX


AMOR SUPREMO

Meu coração recorda, emocionado,
o amor que norteou a minha vida,
e continua presente e bem guardado
na inspiração dos versos meus, querida.

Envolto nas lembranças do passado
preservo o que vivi, de fronte erguida.
Vou galopando pelo verde prado
onde a Esperança mora e faz guarida.

E enquanto o coração bater, sedento
vou prosseguir buscando o meu intento:
— continuar feliz por onde eu for.

Quero rever a Luz da madrugada
e despertar ao som da passarada
para viver, contrito, o nosso amor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

BARRA DO MENDES

Barra do Mendes no Sertão Baiano,
és bela, culta, forte e hospitaleira,
povo trabalhador, feliz e humano
em busca da amizade verdadeira.

A vitória de um povo veterano
na construção da paz alvissareira
garante que o progresso, soberano,
já chegou na cidade brasileira.

E quando chega alegre, o viajante,
ela oferece abrigo ao visitante
e as belezas do nosso Chapadão.

Eu quero te saudar, Barra do Mendes,
pelo denodo, fé e luz que acendes
nas glórias imortais de Militão!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

BENDITA SEJAS

Bendita sejas tu, musa divina
porque vens inspirar este poeta,
a tua voz suave me fascina
e chega ao fim a minha dor secreta.

Bendita sejas tu, que me ilumina
e nos meus versos tua luz projeta
além da fé, do amor que me domina
trazendo inspiração à minha meta.

Chegas tranquila, calma e de mansinho
pondo flores em todo o meu caminho,
vens perfumando o meu viver tristonho,

Que seja sempre assim, poesia amada,
amiga e companheira de jornada
buscando a paz nas regiões do sonho!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

CONSEQUÊNCIA

Brigamos sem motivo. Era Setembro,
o campo estava verde e havia flores.
O céu cheio de estrelas, eu me lembro,
e recordo também dos dissabores,

Bem alto ela me disse: "Não sou membro
desta família que me trouxe dores.
Quero partir, não fico outro dezembro,
quero ter, pelo mundo, outros amores".

E partiu... Nada fiz, fiquei calado,
o silêncio, por certo, dá um jeito
e não carece de nenhum cuidado...

O tempo vai passando e quando a vejo,
ela disfarça a dor que vai no peito,
e eu finjo que não sinto mais desejo.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

INTERROGAÇÃO
(Um pouco de filosofia)

Quando nascemos, dizem que o Destino
já vem traçado para o ser Humano,
e sendo assim cresci, desde menino,
envolto num mistério, num engano.

Como entender que o amor do ser Divino
possa me dar sentença de tirano?
Se a predestinação me fez cretino,
como me corrigir, se sou mundano?

Que culpa cabe a mim, se esta premissa
for verdadeira e a providência omissa
para me condenar sem indulgência?

Porventura, o que a vida nos promete
nada se cumpre e apenas nos remete:
— Por que nos deu o senso e a inteligência?
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O QUE É A VIDA?

A vida é uma jornada de aventura,
o ser humano nasce, vive e morre.
Uma réstia de sonho e de ventura,
eis o prêmio maior a que concorre.

A mocidade passa e a desventura
vem apressada e pela vida escorre
impondo ao coração esta amargura
que mata devagar... e não socorre...

Eis a vida, em resumo, companheiro,
mas a esperança e a fé falam primeiro
e amenizam, no mundo, a nossa dor.

Porque depois a vida é permanente
numa escola avançada e inteligente
sempre em busca de Deus, o Criador!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Lima Barreto (O moleque)


A Arnaldo Damasceno Vieira


Reclus, na sua Geografia universal, tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região. No Rio de Janeiro, há de fato nomes tupis tão eloquentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas. — Niterói — água escondida.

Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.

Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.

Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.

O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais. Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.

Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho...

Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.

Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.

Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto. Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de Janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.

Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo. É um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por quê, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casinhas sem que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa.

Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.

Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso — o que era preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se embaralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal embaralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões históricas.

Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.

A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra, que não tem querido guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por ela têm passado, ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene, soberba...

Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.

O “barracão” é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes “a sopapos”. É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso “rancho” roceiro, possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dois aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.

Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira. A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.

O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dois. Eram ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhor Romualdo, servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com dois filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.

A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:

— Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!

Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas essas raparigas por aí...

Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão — que lhe teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo — não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns “boas-noites”, umas flores de melão-de-sãocaetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás — o que encontrasse — para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramalhete.

Todos da rua dos Maricás — era este o nome daquele trilho de Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias à ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe perguntavam quem era:

— Uma vagabunda.

Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era “rica”. Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angú, em outros tempos, conseguira juntar alguma coisa e adquirira aquela casinha, a mais bem tratada da rua. Tinha “homem” enquanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angú, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande.
Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca — uma menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por “Baianinha”. E, ao ir às compras na venda, o caixeiro lhe dizia por brincadeira:

— “Baianinha”, tua mãe é negra.

A pequena arrufava-se e respondia com indignação:

— Negra é tu, “seu” burro!

A Baiana, porém, era “rica”, estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas inclinava-se para o espiritismo, frequentando as sessões do “seu” Frederico, um antigo colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.

Certa vez salvou um dos filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que se emendaria.

Dona Felismina morava com o seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.

Tinha todos os traços de sua raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita. Era-lhe este seu filho o seu braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez anos de idade. Doce, resignado e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o menor desvio de caminho. Se ia à casa do “seu” Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:

— Zeca, vai à venda e traz dois tostões de sabão “regador”.

Na venda, entre todo aquele pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitués do parati, como os há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento — entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:

— Caixeiro, “mi” serve já. Dois tostões de sabão “regador”!

Se o caixeiro estava atendendo à dona Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:

— “Mi despache”, caixeiro! Dois tostões de sabão “regador”.

“Seu” Eduardo, o caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às compras, fazia docemente:

— Espere, menino. Você não vê que estou servindo, aqui, a dona Aninha!

A mãe tinha vontade de pô-lo no colégio; ela sentia a necessidade disso todas as vezes que era obrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a “seu” Frederico, aquele “branco” que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?

À tarde, Zeca descansava, brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.

Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda-Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantemente as “fitas” que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las.

Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de povo.

Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar vista do divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar também. Como havia de ser uma “fita”? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que tudo aquilo falava?

Podia ter dinheiro para ir, pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...

Zeca, por seu procedimento, pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa. Muitos se interessavam com a mãe, para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único “homem”.

Uma vez quase cedeu. O “seu” Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de “pinhão”, e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:

— Não posso, “seu” coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem que é preciso aprender, saber, mas...

— Você vai lá para casa, Felismina; e não precisa estar se matando.

Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão — uma espécie de Protesto de Posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe pelas suas necessidades.

Certo dia, em começo do ano, o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.

— Foi tua mãe?

— Não, “seu” coronel.

— Quem foi, então, Zeca?

O pequeno não quis dizer e não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça. A atitude do pequeno, a sua recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.

— Dize, Zeca. Dize que eu te darei uma vestimenta de “diabinho” no Carnaval que está aí.

O pretinho levantou a cabeça e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.

Confessou; e Castro nada disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca. Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a roupa branca que estivera a secar. Atarefada com esse serviço, ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara de “diabo”.

Dona Felismina veio para o interior do barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca, distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.

A mãe, ao barulho dos guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:

— Zeca, que é isso?

Uma visão dolorosa lhe chegou aos olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:

— Que é isso, Zeca? Onde você arranjou isso?

— Não... mamãe... não...

— Você roubou, meu filho?... Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você arranjou isso, Zeca?

A pobre mulher quase chorava e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:

— Mas... mamãe... não foi assim...

— Como foi? Diz!

— Foi “seu” Castro quem me deu. Eu não pedi...

Dona Felismina sossegou e o pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:

— Mas para que você quer isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para gente rica, que pode. Enfim...

— Mas, mamãe, eu aceitei, porque precisava.

— Disto! Ninguém precisa disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!

— Eu precisava, sim senhora.

— Como, você precisava?

— Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! — ó moleque! — ó negro! — ó gibi!? Não lhe contei?

— Contou-me; e daí?

— Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.

— Que tem uma coisa com a outra?

— Queria amanhã passar por lá e meter medo aos meninos que me vaiaram.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 45

 

Leon Eliachar (A solução)


Marilene completou dezoito anos, disse para o pai:

— De hoje em diante, vou trabalhar. Quero ser uma moça independente.

E mergulhou no mundo dos anúncios classificados, deixando-se envolver pela avalanche de promessas: “Procura-se moça bonita para serviço de futuro imediato”. Só quando chegou lá foi que viu que o seu futuro não era tão imediato assim. “Procura-se moça que tenha sorriso bonito, olhos bonitos, lábios bonitos e cabelos bonitos, para fotografias.” Só então descobriu que não era fotogênica. “Procura-se jovem de dezoito anos para fazer companhia a um senhor de cinquenta. Exigem-se referências.” Marilene entendia cada vez menos de anúncios: não atinava por que um velho de cinquenta exigia referências de uma moça de dezoito.

Lápis vermelho na mão, gilete na outra, ia riscando e recortando as futuras decepções. Saía cedo de casa, voltava exausta, dizia para o pai:

— Até agora, nada.

E o pai:

— Filha minha só é independente depois que recebe o primeiro salário.

Em menos de uma semana, Marilene abandonou o ilusório mundo dos “procura-se” e passou a se dedicar ao complicado mundo dos “oferece-se”. Dias e dias bolando a forma de redigir o seu próprio anúncio: “Oferece-se, moça de dezoito anos”, parou um pouco, pensou em que atividade gostaria de se empregar. Seu sonho era ser manequim, desfilar para as grandes casas de moda, mas não tinha altura. Pensou em ser datilografa, mas não sabia escrever à máquina. Pensou em ser secretária de uma firma americana, mas não sabia inglês. Pensou em ser artista de cinema, mas não tinha vocação. Pensou em ser decoradora, mas não tinha a menor aptidão para a arte. Olhou de novo para o anúncio que estava redigindo, concluiu:

— Vai assim mesmo.

No dia seguinte, saiu o anúncio: “Oferece-se, moça de dezoito anos”. Seu telefone não parou. Hoje, Marilene é uma moça completamente independente, com mais de quinze empregos.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Caldeirão Poético LVIII


Ana Amélia

O BAMBUAL


A brisa passa e o bambual murmura...
Porém tão mansamente que parece
um gemido, uma súplica, uma prece,
esse murmúrio cheio de ternura.

Subitamente a brisa em vento cresce.
Tolda-se o céu, um raio já fulgura.
Então o bambual ruge, em tortura;
a chuva torrencial sobre ele desce.

Enroscam-se os bambus convulsamente,
varrendo o chão ao peso da torrente.
Enorme vegetal! Domado agora,

tem os uivos de dor de um leão ferido;
mas eu leio, através do teu rugido,
que tens um coração que pulsa e chora.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
 
Antônio Siqueira

ALEGRIA DE VIVER


Deixo a inquietude da constante lida,
em busca de beleza e de esplendor;
e, assim, de alma liberta, nesta vida,
para os teus braços corro, meu amor!

É a ventura que, agora, me convida
a desfrutar a primavera, em flor,
dos teus carinhos que me dão guarida
e dos teus beijos, onde há mais sabor!

Nunca é tarde demais para querer,
quando se tem o coração sorrindo
na sublime alegria de viver.

E, em te querendo, como sempre quis,
nessa felicidade me iludindo,
sou, dos mortais, o menos infeliz.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Augusta Campos

MÃOS


Tenho saudade de umas mãos amigas,
mãos de silêncios doces e eloquentes,
mãos que teciam versos e cantigas
na luz dourada e mística dos poentes.

Resta-me, agora, o peso das fadigas.
E, agora, em minhas mãos sós e frementes,
em vez da ardência das paixões antigas,
sinto horas frias de emoções ausentes.

Mãos amigas, amantes, namoradas,
mãos que embalaram ternas madrugadas
e acalentaram formas e segredos.

Em minhas mãos morreram primaveras.
E eu tenho, agora, inverno e vãs esperas
e saudades chorando nos meus dedos.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Barreto Filho

SONETO


O teu caminho é longo, e hás de, triste e cansada,
repousar num vergel que do fim muito diste.
É longo o meu caminho, e hei de, cansado e triste,
dormir onde não for ainda uma pousada.

No meu lento pendor eu tenho a alma fanada,
mas nessa luta vã meu coração resiste.
E tu, tu que a princípio aos álamos sorriste,
estás pálida assim ao meio da jornada.

Pelo mesmo caminho ambos juntos seguimos...
O teu trêmulo andar é um voo de alegrias,
e enches cada rosal de carícias e mimos.

Tu não me olhavas nunca, e eu também não te olhava;
e, contudo, eu fiquei sabendo que sorrias,
e ficaste também sabendo que eu chorava.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Barreto Sobrinho

CONSELHOS... CONSELHOS...


Quando eu, aflito e desolado, faço
um fervoroso apelo, aos que andam rindo,
e peço apoio a um poderoso braço,
para acalmar o meu martírio infindo,

dão-me conselhos... e se vão fugindo...
—“Tenha calma (diz um), este embaraço
há de ter fim...” E alegre vai seguindo,
desfrutando a fortuna, a cada passo...

—“Seja forte (diz outro), tudo passa...”
E eu, a ficar aqui, nesta desgraça,
no mesmo estado, no feral castigo!...

Só minha mãe já não me dá conselhos!...
Vendo de pranto os olhos meus vermelhos,
inclina o colo e vem chorar comigo!...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Caio Maranhão

SÓCRATES


Sócrates, o mais justo e sincero dos sábios
do seu tempo, que é bom e sensato e erudito,
com o riso da inocência a transbordar dos lábios,
impassível, enfrenta o tribunal de Anito...

Depois — segundo consta em velhos alfarrábios —
condenado a morrer sem provas de delito,
com sublime altivez, sem ódios nem ressábios,
exproba a acusação iníqua de Melito!

E brada Apolodoro, em fúria, após a liça:
— “Já não suporto mais a dor que isso me custa!
É falso o veredito! É torpe essa justiça!"

E Sócrates, divino, erguendo a fronte augusta,
profere esta lição esplêndida e castiça:
"— E queres que a sentença, acaso, seja justa?!...”

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Stanislaw Ponte Preta (A moça que foi a Paris)


Era uma vez uma mocinha. Não era dessas mocinhas de óculos não. Nem dessas que têm espinhas e as espinhas custam mais a sair do rosto e por isso elas vão sendo sempre as primeiras no colégio. Sim, porque – estranha coincidência - mocinha que tira primeiro na turma é sempre espinhenta.

Mas, voltando à mocinha desta história. Ela não tinha espinhas e nem usava óculos, também não precisava desses sutiãs que têm espuma de borracha para impressionar o eleitorado. Ela era muito bem feitinha de corpo. Tão bem feitinha que, um dia, sem que a família dela soubesse nem nada, saiu premiada pra rainha de já nem me lembro mais o que, com voto comprado.

Ela explicou depois que quem comprou os votos dela foi um "amiguinho".

A mocinha usava saia balonê, sabia dançar rock e falava um pouco de inglês (aprendido com oficiais de um porta-aviões que esteve aqui), mas o forte dela era ser soçaite. Ia nesses lugares bacanas, com deputados e gente bem, por causa de que ela era um bocado querida dessa gente. Por isso, foi uma surpresa para a família dela quando ela resolveu deixar essas futilidades pra lá e se dedicar à arte. Quem é de artimanha nunca se dá bem com arte - a gente costuma ouvir dizer. Mas com a mocinha, esta de que estamos falando, parecia ser diferente.

Ela chegou em casa e comunicou:

- Vou a Paris, aprender violino.

A família botou as mãos na cabeça (isto é, o pai botou a mão na cabeça, a mãe botou a mão na cabeça, o irmão mais velho - que já manjava as coisas - botou a mão na cabeça e diversas tias botaram a mão nas respectivas cabeças). Mas não adiantou nada, por causa de que ela manteve a coisa.

Quando quiseram saber onde ela ia arranjar dinheiro para a viagem e o curso de violino, ela explicou que ninguém precisava se preocupar; o tal "amiguinho" - que adorava violino - ia financiar tudo.

Então ela foi a Paris. Por estranha coincidência o amiguinho foi também, dias depois, e ela voltou feliz da vida.   

Não aprendeu a tocar bulhufas mas, em compensação, o filhinho que ela trouxe de lá, chama-se Violino. Numa homenagem.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Tia Zulmira e eu. 1961.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Marvila


As hortas e as pequenas quintas desapareceram em poucas décadas, com o advento da industrialização. As fábricas e as vilas operárias moldaram a paisagem de Marvila e o caráter da sua gente. Hoje, Marvila é um bairro a descobrir com urgência.

O sítio de Marvila, tão velho quanto a fundação da nacionalidade, é dos bairros mais típicos da zona oriental da cidade de Lisboa. Até o século XlX, sucediam-se agradáveis quintas nesta vasta zona de Lisboa e era grande a fertilidade das terras banhadas pelo Tejo. Por isso, Marvila era, até há pouco tempo, uma freguesia essencialmente rural, onde proliferavam as quintas e as hortas. Ainda hoje, os exemplos são fáceis de detectar: a Quinta dos Ourives, a da Rosa, a das Flores, a das Amendoeiras, a do Leal, a do Marquês de Abrantes ...

Estas propriedades eram exploradas, na sua maioria, por gente originária do norte do País, e abasteciam os mercados ambulantes espalhados pelo bairro e pela vizinhança e, mais tarde, por toda a Capital.

Ao antigo mercado da Praça da Ribeira, a mercadoria chegava transportada por carroças. Essa população originária do norte trouxe muitos dos seus hábitos e costumes, nomeadamente, a Feira da Espiga, que deve ter origem num costume dos hortelões nortenhos. Mas, de zona rural, Marvila transformou-se, com o passar dos anos, em zona urbana de fisionomia bairrista e fabril. Todavia, ainda hoje se vêem vestígios de uma grande atividade hortícola.

O Palácio do Marquês de Abrantes, na Rua de Marvila, ou o Palácio da Mitra, na Rua do Açúcar, são verdadeiros exemplos dos vários solares que ali foram edificados. Também os monumentos de caráter religioso abundavam, como o antigo Mosteiro de Marvila.

No século XX, continuou a instalação de unidades fabris desde a Rua do Açúcar até Braço de Prata. São deste período as tanoarias da Rua Capitão Leitão e os armazéns de vinhos de Abel Pereira da Fonseca (que, pouco antes de morrer disse aos seus descendentes: “enquanto o Tejo tiver água, nunca deve faltar vinho a Lisboa”). Hoje, estes armazéns estão transformados em centros culturais.

A atual Marvila, freguesia criada em 1959, é bem significativa da zona periférica de uma grande cidade europeia em franco crescimento. Beneficiou, consideravelmente, com a realização do grande evento que foi a Expo 98.

A Sociedade Musical nasceu a 3 de Agosto de 1885, em pleno Poço do Bispo, tendo sido transferida pouco tempo depois para o Pátio Marquês de Abrantes, vulgarmente conhecido como Pátio do Colégio. Esta coletividade centenária tem vindo assistir, do interior do seu palácio medieval, à vertiginosa transfiguração do seu bairro, em parte devido à realização da Expo 98.

Contudo, no pátio onde está instalada a sua sede, o cariz e as tradições ainda continuam populares. A Sociedade Musical que organiza a Marcha de Marvila, representa orgulhosamente na Avenida da Liberdade toda a área das freguesias de Marvila e do Beato.
 
MARCHA DE MARVILA
(Milenar Marvila)


Letra de Mário Silva
Música de Álvaro Martins


1ª Estrofe
Imaginação, futuro!...
Milênios, passados são!...
Outro tempo e outro mundo:
Marvila, quer tradição!
Foguetão vem do futuro
Pelo tempo viajando.
E, atravessando o “muro”,
Procura a animação.

1º Refrão
Santo António milagreiro
Como amigo e companheiro
Deslumbra’mente surgiu
Com resplendente clarão!
E o santo do passado,
Como um novo coração
Pro futuro é transportado
Já a dar inspiração !
(BIS)

2ª Estrofe
Este foguetão parou
Aterrando no passado!...
Veio ouvir os sons da alma
De novo, ser programado!
E surge um milagre novo!...
E tudo se transformou!...
Os “robots” já são o povo
Que a marcha antiga adaptou!

2º Refrão
De joelhos, o futuro
Pede ao Santinho perdão!
Por ter esquecido que a alma
É raiz da tradição.
Marvila aqui presente
Nesta festa popular:
Vê o terceiro milênio
A apar’cer e a raiar!
(BIS)

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 20

 

Isabel Furini (Namoro pela internet)


Entrou na internet, ficou fascinada pelas redes sociais. Fazer amigos em todos os lugares do mundo. A época de globalização exige isto – dinamismo, contatos, novos horizontes. Até casamento. Estava tão entusiasmada!

Trocou mensagens com um rapaz tão simpático. Ele perguntou se ela era linda daquele jeito ou se a foto era photoshop. E ela se sentiu a mulher mais linda do mundo. Foi honesta, a foto era verdadeira.

Falando e falando... Ele disse que queria conhecê-la, mas lamentavelmente ele trabalhava numa empresa do governo de Portugal e tinha um cargo importante. Não podia falar sobre isso. Mas, se ela pudesse ir até a cidade de Lisboa, ele poderia arranjar algum tempo livre para levá-la aos melhores lugares. A moça achou a proposta interessante, mas... Ele insistiu. Insistiu. Ela decidiu que viajaria no Carnaval.

Ele disse que conhecia uma empresa de turismo muito boa em Curitiba. Amigos de amigos. De confiança. Fabíola se deixou convencer. Foi até a agência de viagem que o José Joaquim indicou e realmente foi muito bem recebida. Comprou pacote incluindo passagem área ida e volta e hotel.

– Podemos incluir alguns tours para que conheça a cidade.

– Não preciso! Um rapaz que mora lá vai me acompanhar. Talvez comecemos um namoro.

A funcionária sorriu.

Fabíola viajou. A viagem foi ótima, o hotel maravilhoso, mas o rapaz não deu sinal de vida. Nos três primeiros dias, ficou no hotel esperando uma ligação. Não aconteceu. Ela ligou para o número que ele lhe dera, mas ninguém atendeu.

Estava deprimida, pensando que algo ruim devia ter acontecido a esse maravilhoso rapaz. Algo muito ruim para ele não vir até o hotel, nem ligar, nem responder e-mails, nem fazer contato pela internet.

A recepcionista a viu tão desiludida, tão triste, que sentiu pena dela:

– Você é jovem, divirta-se. Tem outras pessoas no mundo.

– Mas eu vim aqui por ele, pelo José Joaquim.

– Minha querida... – disse por fim a recepcionista. - você não é a única. Esse rapaz nem mora em Portugal. Ele mora no Brasil mesmo e usa nome falso na internet. Na realidade ele ganha a vida desse jeito. Recebe comissão das passagens que consegue vender.

Fabíola terminou anotando alguns tours para conhecer a cidade e falar com outras pessoas, e conseguiu mesmo um namorado! Está noivando e com data marcada para o casamento.

– Afinal aquele canalha me trouxe sorte! – escreveu no seu blog.

Fonte:
Blog da escritora. 20 jan 2016.
https://isabelfurini.blogspot.com/2016/01/namoro-pela-internet.html

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 5

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.
 

A flor da quaresma abre,
logo depois cai no chão...
São assim os meus desejos,
vem chegando, lá se vão.
= = = = = = = = =

A flor de minha esperança
expandiu perfume santo.
Hoje triste se retrata
na lagoa de meu pranto.
= = = = = = = = =

As nuvens pretas são chuva,
as brancas são ventania,
não se me acaba a esperança
de te lograr algum dia.
= = = = = = = = =

Botei o preto por gala,
o branco por bizarria,
o verde por esperança
de ainda gozar-te um dia.
= = = = = = = = =

Coração que bate, bate,
quando não puder, descansa.
O alívio de quem ama
é viver só de esperança.
= = = = = = = = =

Correu no céu uma estrela:
Deus te salve zelação!
Corresse eu para os teus braços,
junto do teu coração.
= = = = = = = = =

Depois de um dia vem outro,
depois de outro, outro vem...
Não te entregues ao primeiro,
espera o que te convém.
= = = = = = = = =

Dia e noite, céus e terra,
pela sorte a gente chama ...
Eu não! Só tenho um desejo:
– É dormir na tua cama.
= = = = = = = = =

Dos teus braços para dentro
não admito ninguém.
Espera, tem paciência,
que eu mesmo serei teu bem.
= = = = = = = = =

Garça branca, cor da neve,
plumosa bem como arminho,
voa, voa, vem depressa
pousar aqui no meu ninho.
= = = = = = = = =

Lá em cima daquele morro
corre água de beber.
Ou mais cedo ou mais tarde
hei de em teus braços morrer.
= = = = = = = = =

Manjericão quer dizer
uma esperança perdida.
Quem não goza o que deseja
melhor é perder a vida.
= = = = = = = = =

Meu amor caiu doente,
eu também adoeci.
Eu queria tratar dele,
para ele tratar de mim.
= = = = = = = = =

O desejo em peito triste,
é flor no sertão nascida,
que vinga, floresce e morre
sem se tornar conhecida.
= = = = = = = = =

O mar se embalança e cai
nos alvos seios da praia:
Deus queira, de um tombo assim
que nos teus braços eu caia.
= = = = = = = = =

O verde é cor de esperança,
prometida a quem quer bem.
Nosso dia não é chegado,
não desespere, meu bem!
= = = = = = = = =

O verde diz esperança,
esperança tenho em Deus,
inda pretendo passar
meus braços por entre os teus.
= = = = = = = = =

Plantei um pé de pimenta
pra comer, quando for dando.
Tenho uma menina em casa,
que pra mim estou criando.
= = = = = = = = =

Quem espera, desespera,
quem espera, sempre alcança.
Não há maior alívio
do que viver de esperança.
= = = = = = = = =

Quem me dera estar agora
onde está meu pensamento!
De Porto Alegre para fora,
de Cacheira para dentro.
= = = = = = = = =

Quem me dera ter agora
um cavalinho de vento,
para dar um galopinho
onde está meu pensamento.
= = = = = = = = =

Quem não bota água no cravo,
como quer que o cravo pegue?
Não me dando as esperanças.
como quer que eu viva alegre ?
= = = = = = = = =

Se eu soubesse com certeza
que tu me tinhas amor,
caía nesses teus braços
como o sereno na flor.
= = = = = = = = =

Tudo muda neste mundo,
só meu mal não tem mudança.
O bem de ontem é saudade,
o bem de hoje é esperança.
= = = = = = = = =

Uma esperança, algum dia,
consoladora, nos diz
que entre os dias desgraçados
lá vem um dia feliz.
= = = = = = = = =

Um desencontro no mundo
me desanima a esperança:
Ver cobiçar quanto foge,
desprezar quanto se alcança.
= = = = = = = = =

Vai-se um ano e vem o outro,
pensas tu que desespero?
Ama a quem for de teu gosto,
que amor de dois eu não quero.
= = = = = = = = =

Você diz que hei de ser sua,
pois tem querer e poder...
Isto não basta, benzinho,
faça antes por merecer!

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 82, 83 e 84


GOVERNAR


Os garotos da rua resolveram brincar de governo, escolheram o presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos.

— Pois não — aceitou Martim. — Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança. Januário será meu ministro da Fazenda e pagará o meu lanche.

— Com que dinheiro? — atalhou Januário.

— Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do governo.

— E que é que nós lucramos com isso? — perguntaram em coro.

— Lucram a certeza de que têm um bom presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente.

— Assim não vale. O presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens.

— Eu sou o presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser presidente é moleza? Já estou sentindo como este cargo é cheio de espinhos.

Foi deposto, e dissolvida a República.
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HISTÓRIA MAL CONTADA

A história de Chapeuzinho Vermelho sempre me pareceu mal contada, e não há esperança de se conhecer exatamente o que se passou entre ela, a avozinha e o lobo.

Começa que Chapeuzinho jamais chegaria depois do lobo à choupana da avozinha. Ela vencera na escola o campeonato infantil de corrida a pé, e normalmente não andava a passo, mas com ligeireza de lebre.

Por sua vez, o lobo se queixava de dores reumáticas, e foi isto, justamente, que fez Chapeuzinho condoer-se dele.

Estes são pormenores da versão da história, ouvida por tia Nicota, no começo do século, em Macaé. Segundo ali se dizia, Chapeuzinho e o lobo fizeram boa liga e resolveram casar-se. Ela estava persuadida de que o lobo era um príncipe encantado, e que o casamento o faria voltar ao estado natural. Seriam felizes, teriam gêmeos. A avozinha opôs-se ao enlace, e houve na choupana uma cena desagradável entre os três. O lobo não era absolutamente príncipe, e Chapeuzinho, unindo-se a ele, transformou-se em loba perfeita, que há tempos ainda uivava à noite, nas cercanias de Macaé.
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IDÍLIO FUNESTO

A maior tristeza de Gregório era não entender a língua dos sapos brasileiros, que ele sabia ser muito rica em expressões idiomáticas, e particularmente aberta a efusões amorosas.

“Se eu aprendesse um pouco das finezas da língua deles”, lastimava-se, “seria o mais afortunado dos amantes, além de brilhar em tertúlias, pelo pitoresco de minha conversa. Mas dos sapos sei quase nada, e as mulheres não parecem dispostas a conceder-me seus favores por esse mínimo que adquiri passando noites em claro à margem do brejo.”

Um sapo condoeu-se de sua ignorância específica, e prometeu dar-lhe aulas intensivas por duas semanas, findas as quais Gregório se tornaria conversador cintilante e conquistador irresistível.

Mas o sapo não nascera para professor, e tudo se turvou na cabeça do aluno, que aprendeu apenas a coaxar, sem modulação nem sintaxe. Ganhou apelido de “Sapinho” porque era de porte reduzido. Renunciou à convivência humana e foi morar em frente ao brejo. Numa noite de luar, uma rã escutou sua algaravia, apaixonou-se por ele, e foram viver juntos. Os sapos, indignados, mataram-no. A rã admite que fez mal em se deixar seduzir por erros de linguagem: imaginara estar ouvindo um português mavioso.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.

Estante de Livros (Margot, de Alfred de Musset)


Numa bela narrativa, o famoso novelista francês Alfred de Musset (Paris/França, 1810 – 1857) retrata com perfeição como as diferenças de cultura e de classe determinam o desfecho de uma história de amor na França do século XIX.

Em Margot, do francês Alfred de Musset, uma velha senhora vive tranquilamente em Paris no começo do século XIX com sua dama de companhia, que na verdade revela-se uma ladra. Depois de tentar substituí-la sem sucesso por duas vezes, a Senhora Doradour manda buscar então a filha dos zeladores de sua casa de campo, uma jovem de 16 anos que é o orgulho da família Piédeleu. Graciosa e ingênua, a jovem Margot troca então o interior pela efervescente Paris.

Na mansão da senhora Doradour, tudo para ela é deslumbramento, dos espelhos do quarto à banheira de água morna enfeitada de grifos dourados. Mas principalmente Gaston, filho da dona da casa, um oficial dos Hussardos que passa ali alguns dias de folga e que, ao parar diante da janela, a surpreende no banho, despertando nela ilusões pueris. Descobrindo-se subitamente apaixonada, a jovem conhece então as agruras de um amor impossibilitado pelas diferenças sociais na França do século XIX. Sem ter seus sentimentos correspondidos, a inocente Margot torna-se protagonista de uma história de arrebatamento e frustração.

A obra confirma a versatilidade do estilo de Musset, que, nela, atinge momentos de inigualável sutileza.

Acompanhamos nessa curta história, a imagem do autor de como são as jovens: inocentes e sonhadoras, que se apaixonam profundamente e que são capazes de morrer, se não correspondidas.

Para época, é uma imagem muito comum das garotas, apesar de muito estereotipada. O livro também explora as relações sociais da época, principalmente as diferenças entre classes sociais.

É um romance muito bem escrito, com uma leitura fluida. Mas o melhor do livro é o final: realmente surpreendente.

Musset por vezes indica alguns pensamentos filosóficos:

"É que a sabedoria é um trabalho, e para ser apenas razoável, temos de dar um monte de problemas, enquanto que para bobagens, você só tem que deixar ir. "

Uma análise profunda do psicológico despertar do amor em Margot, ao pensar na "alegria de uma família".

"Sentar-se entre os seus oito irmãos, ela brilhou e se alegraram a vista, como um milho em um buquê de trigo. "

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 04

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 70


Domingo? Oba!

Acordar sem pensamentos, com preguiceiras, alma flutuando. Abrir os olhos sem buscas de nada, sorriso para o Outro no espelho, sentir-se  apenas.

Café bebido, olhares primeiros, primeiras conversas. Crescentes. Risadinhas, risadas, gargalhadas. Elas liberam, combatem, aliviam,  desestressam. Sem custo.

Alguém me contou que risadas são um remédio e tanto.

E saber-se que tudo isso não seria possível se não estivéssemos aqui com otimismo, alacridade, olhares para o alto, respirando fundo.

É a essência? É o sumo? Nem pensei...

Mas se estiver no bojo do pote, deve ser misturado aos mistérios do dia a dia.

Carregar as baterias com luz solar, ares puros, ouvindo os pássaros, o joão-de-barro se desmanchando em cantos, os beija-flores bebericando, olhar o céu azul, contemplar...

Domingo é para desligar ?

Escondo a prancheta, abandono as ideias, guardo a caneta.

Ave, domingo !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecy Barbosa Campos (Ensaio de carnaval)


Fevereiro sombrio na mente de Turíbio. Os dias de sol e as noites quentes não conseguiam clarear as ideias que lhe vinham à cabeça ou esquentar a friagem que lhe ia na alma.

Nem parecia que o Turíbio tinha nascido num dia de Carnaval, bem no meio da folia. A mãe se recusou a abandonar o desfile por causa do neném que estava pra nascer, e foi aquele corre-corre na hora do samba, com a cabrocha parida e o Turíbio berrando pra alegria de todos os amigos da escola.

Cresceu no samba e até compositor ele era. No ano passado, foi o campeão, ganhou o concurso do samba enredo de parceria com um mais letrado, que arrumou as palavras e pôs no papel a inspiração do Turíbio, pois, além da música, a inspiração era dele.

Quieto, parado, alguma coisa havia com o Turíbio. Cadê aquela animação, aquela alegria que contagiava, que se espalhava por todo lugar em que o moço chegava?

Ele andava zonzo, ninguém sabia, mas andava zonzo, com os ouvidos cheios da risada cantante de Clodomira, que, rindo, se esquivava e ia pra longe, nem sempre querendo os afagos do "nego" que em outro tempo era o seu xodó. E, zonzo, lembrava dos carinhos da mulata e dos seus recuos, e sua risada, num riso crescente, virava deboche nos ouvidos de Turíbio e punha loucura na sua cabeça.

Já nâo era de hoje que nos ensaios da escola sentia que os requebros de Clodomira não eram pra ele. Não eram pra ele o gingado sensual, o sorriso rasgado, o olhar cobiçoso. Companheira de tantos carnavais, desde o primeiro em que tinham resolvido dividir o barraco, os trapos, as misérias e as gostosuras da vida, era cheia de dengos, não esquecendo de preparar um quitute caprichado e a batida preferida do seu nego, o que cada vez mais prendia o Turíbio.

Entretanto, agora... Andava com um jeito desligado, um olhar debochado, que punham Turíbio roendo ciúme, criando maldade, odiando e querendo a sua Clodô.

— Mulata boa, a danada... Mas traição nâo aturo. Acabo com ela, com o outro e comigo, que vida sem ela não é vida... la pensando confuso, seguindo com os olhos a cabrocha faceira, esquecido do samba que jorrava na quadra, pasmaceira nas pernas dormentes, sem sangue, que o sangue subia à cabeça a cada requebro de sua Clodô.

À frente, ela seguia sem ver nem sentir, sem lembrar do seu nego, das juras trocadas, de nada lembrava, senão do seu samba e do novo amado, que em passos treinados driblava com ela no meio da quadra.

O cheiro suado e a linguiça frita aguçavam os sentidos do negro Turíbio, que via e ouvia, num mesmo compasso, as risadas e o corpo da sua Clodô, que ia e que vinha, num crescendo de ânsia, jogado pro lado daquele malandro, novato no morro, mas já estimado e parte da ala a desfilar na Avenida.

— Que é isso, compadre?! Esquecendo do samba? Tá doente?

Notou, espantado, o amigo do peito, que viu o sem graça do Turíbio, parado no meio da quadra, sem passo e sem fala. Porém, o samba não deixa parar pra saber e, seguindo o batuque, perdeu, outra vez, o Turíbio de vista, que depois noutra volta veria e levava prá pinga a fim de animar.

Quem viu primeiro foi a mulata Clodô. Atrás da barraca de linguiça frita, no meio do abraço do seu novo amado, envolto em fumaça e faca na mão. Tempo não teve pra gritar ou correr. Foi só gemer e cair com o amante, num tombo só, num só sangue, enquanto pro lado caía o Turíbio. Vida pra ele não mais queria, pois tudo se fo¬ ra com o amor de Clodô. Com olhos vidrados, banhado em seu sangue, ainda ouviu os acordes do samba que a turma tocava.

Era o seu samba, a sua vitória que, no ano passado, empolgara aos amigos e à Clodomira, que requebrava o dia inteiro, repetindo o refrão. E, a ouvir o seu samba, Turíbio se foi, com um sorriso feliz, lembrando da glória.

— Acudam! Socorro! Desgraça!

Gritou alguém que chegou àquele canto do terreno baldio, que servia de banheiro ou refúgio para os amantes cansados do samba. Logo, a multidão correu, deixando a quadra. Compreendendo a tragédia, após um momento de impacto, todos repetiram em coro o refrão do samba do Turíbio, em homenagem ao amigo querido.

A Rádio Patrulha, subindo o morro, acabou com o ensaio que já havia acabado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas) 2


DE VOLTA ÀS RAÍZES


Viajando por caminhos olvidados,
Eunice, deslumbrada, se reclina
às janelas de tempos já passados
que a luz do seu talento descortina.

E vêm à tona vultos embuçados
viver de novo as sagas da campina,
atravessando escarpas e valados,
ao sol, à chuva, ao vento ou à neblina.

Nessa volta saudosa até as raízes,
ela nos mostra, em gama de matizes,
o que foi nossa terra e nossa gente.

E nos envolve tanto em seu relato
que nos sentimos parte do retrato,
quais fantasmas roubados ao presente.
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GRAÇAS À MINHA CIDADE

Itararé que amo tanto,
que me viste, pequenina,
da brisa ao meigo acalanto,
a correr pela campina,

ou de teus rios num recanto,
me envolver na espuma fina,
ver o sol no eterno encanto
ir descansar na colina...

Segui sempre te querendo,
e extasiada estou vivendo
a sublime maravilha

de entre sonhos tão antigos,
ter IRMÃOS nos meus amigos,
e me chamares de FILHA!

(Declamada pela autora ao receber seu título de CIDADÃ ITARAREENSE)
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GRUTA DAS ANDORINHAS

Um cataclismo parte o chão rochoso
E o rio se atira para o novo leito;
em paredões de granito limoso,
corre o Itararé, rude e violento.

Agora para, retomando alento,
na gruta escura, no silêncio umbroso,
mas logo segue aos saltos, barulhento,
e some, além, esquivo e misterioso,

À tarde, as andorinhas, em revoadas,
descem, doidas, quais flechas disparadas,
buscando nas cavernas o degredo.

E o mistério do rio... sempre inviolável...
Nada se sabe do abismo insondável.
Só as andorinhas... mas guardam segredo.
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RIO VERDE

Mudaste quase nada... eu mudei tanto, tanto,
que nem sabes quem. sou, se me encontras agora;
mas tu conservas sempre o teu eterno encanto,
és ainda o meu doce e lindo rio de outrora.

Ao sabor da água verde e da calma sonora,
eu flutuava, feliz, ao teu meigo acalanto,
e os sonhos que afagava, então, a mil por hora,
vinham estimular-me o cérebro, entretanto.

És sempre o mesmo rio, as encantadas águas
Em que segues levando as delícias e as mágoas,
rolando ao mesmo tom, mesma tranquilidade.


Não mudaste... eu mudei... porém, se na memória,
revives, como eu, daquele tempo a história,
hás de estar, como estou... morrendo de saudade.
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RUA SÃO PEDRO

Nossa rua comprida, tão bonita...
Sobre a raiz da árvore eu sentava,
e quanta vez corri, chorosa e aflita,
quando um “bicho peludo” me queimava!

Bonito quando as tropas de boiada
ou de mulas, que vinham lá do Sul,
passavam lentas, em fila espaçada,
erguendo poeira para o céu azul!

Meus pais e alguns amigos, na calçada,
divertidos, a olhar a criançada,
sorviam goles de bom chimarrão.

E à noite, em roda, sob a luz da lua,
nosso riso inocente enchia a rua,
na cadência feliz de uma canção!
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Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.
Livro enviado pela poetisa.