quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLVIII


NEM O BEM NEM O MAL DEFINE O MUNDO
 
Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal.
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.
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NESTA GRANDE OSCILAÇÃO
 
Nesta grande oscilação
Entre crer e mal descrer
Transtorna-se o coração
Cheio de nada saber;

E, alheado do que sabe
Por não saber o que é,
Só um instante lhe cabe,
Que é o reconhecer a fé -

A fé, que os astros conhecem
Porque é a aranha que está
Na teia, que todos tecem,
E é a vida que antes há.
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NESTA VIDA, EM QUE SOU MEU SONO
 
Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me  encontro quando de mim fujo.

Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.
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NO CÉU DA NOITE QUE COMEÇA
 
No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.

Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como  em sossego,
Pra sono falta-me dormir.

Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.
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NO FIM DA CHUVA E DO VENTO
 
No Fim da chuva e do vento
Voltou ao céu que voltou
A lua, e o luar cinzento
De novo, branco, azulou.

Pela imensa 'stelação
Do céu dobrado e profundo,
Os meus pensamentos vão
Buscando sentir o mundo.

Mas perdem-se como uma onda
E o sentimento não sonda
O que o pensamento vale
Que importa? Tantos pensaram
Como penso e pensarei.
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NO MEU SONHO ESTIOLARAM
 
No meu sonho estiolaram
As maravilhas de ali,
No meu coração secaram
As lágrimas que sofri.

Mas os que amei não acharam
Quem  eu era, se era em si,
E a sombra veio e notaram
Quem fui e nunca senti.
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NOS JARDINS MUNICIPAIS
 
Nos jardins municipais
As flores também são flores.
Assim, na vida e no mais,
Que a vida é de estupores,

Podemos todos ser nossos
E fluir como quem somos.
Quando a casa é só destroços
É que a fruta é dó de gomos.
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O ABISMO É O MURO QUE TENHO
 
O abismo é o muro que tenho
Ser eu não tem um tamanho.
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O AMOR É QUE É ESSENCIAL
 
O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
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O AMOR
 
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer.

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

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