quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Os aplausos da desgraça)


UM MOSQUITINHO TEIMOSO, mal saído dos desabrochos das fraldas, se vira para sua mãe e manda a pergunta:

— Mamãe, me deixa ir ao cemitério com tio Pernilongo?

— Com uma condição filho.

— Qual mãe?

— Que volte cedo.

— Assim será.

Montado nessa “prometência”* o sujeitinho parte todo alegre. Ama ver os coveiros abrindo um monte de sepulturas e depois descendo os caixões às covas. Percebe que seu tio perturba incessantemente as pessoas que assistem àquelas cerimônias estranhas fazendo voos de reconhecimento, ora pousando no nariz de uma, ora na orelha de outro. As criaturas se abanam nervosas, usando as mãos, jornais e lenços.

No final da semana seguinte importuna, de novo, a mãe que trabalha catando restos de comidas num amontoado de lixo próximo no qual se escondem:

— Mamãe!

— Fala meu filho.

— Me libera para eu ir ao cinema?

— Com quem?

— Com a tia Pulguinha.

— Que filme irão ver?

— “A Mosca” com um tal de David Cronenberg e Greena Davis.

— Uau! Estou gostando da sua curiosidade à flor da pele. Percebo que meu filhote está afiado com a sua geração. Parabéns. Pode ir. Mas já sabe. Acabou o espetáculo, caminho de casa.

— Está bem, mamãe. Acabando a seção, voltarei correndo.

Mais uma vez, o mosquitinho sai a passear, desta feita, com a pulguinha grudada em seus costados, de carona. Como dissera à mãe, voltou tão logo o filme “epilogou”. Durante a exibição, ficou deveras boquiaberto ao ver como a pulguinha pulava de uma cadeira à outra, enraivecendo a galera que assistia a película. Em questão de minutos, todo mundo se coçava, como se alguém tivesse jogado pó de  mico nas poltronas. Outro final de semana não demorou a aportar. E o mosquitinho, animado e alegre, foi ter com a genitora o papo de sempre. Havia virado rotina:

— Mamãe.

— Fale, meu lindo.

— Tia Muriçoca me convidou para ir à praia. Como eu não conheço o mar...

— Se me prometer que ficará longe das ondas.

Com esse “sim”, o mosquitinho, feliz da vida, nem cabia em si de contentamento:

— Com certeza, mãe.  Voarei bem longe das tais ondas...

— Lembre, filhote, que você não sabe nadar.

— Tô ligado, mãe. Tô ligado!

— Só na areia?

— Só na areia.

— Não caia na besteira de querer surfar como a desmiolada da sua tia. Muriçoca não tem um pingo de juízo naquela cabeça de vento.

— Eu sei, mamãe...

— Estamos combinados. Pode ir. Guardarei seu almoço.

— Ta legal, mãe.

— Farei pra você aquele prato que mais gosta. Não esqueça.

O pequeno inseto parte contente para a nova aventura. Quase não acredita no encantamento a se ver diante do mar. Se queda extasiado e promete a si mesmo que aquela ocorrência divinal não ficará só na lembrança da primeira vez. Voltaria em outras ocasiões para continuar o seu deleite frenteado à imensidão de tanta água que se perdia lá longe de encontro ao céu. Não deixou de reparar, evidentemente, na tia Muriçoca, que tirava literalmente a paz e o sossego dos banhistas. Toda vez que se movia, pousava em seus  lanches e refeições “piqueniqueados” por toda a superfície da areia escaldante. No domingo seguinte, o mosquitinho, como de costume, não deixa por menos. Buzina sonoro, no ouvido da primeiríssima:

— Mamãe. eu posso ir ao shopping?

— Depende, meu pequerrucho. Quem irá com você?

— Meus amigos aqui dos pneus.

— Tenho medo!

— Do quê, mamãe?

— É muito perigoso. Shopping nos finais de semana... meu Deus, só de pensar na aglomeração das pessoas...

— Mamãe, vou me comportar...

— Quem garante?

— Dou a minha palavra.

— Tudo bem, meu filho, pode ir. Por tudo quanto é sagrado. Não se meta em encrencas. Seus amiguinhos aqui dos pneus não são flores que possam ser cheiradas.

— Mamãe. Fala sério.  Sei me cuidar...

— Espero que sim, meu príncipe. Espero que sim...

Como sempre o díptero gurí leva à termo seu intento. No shopping, ou mais precisamente na praça de alimentação, aprende com os coleguinhas como pousar nas guloseimas e quitutes, a relaxar as asas nos copos de refrigerantes e bebidas, além de soltar a baba peculiar dos varejeiros de sua estirpe. Tem consciência que essa mucosidade, entre outros estragos, contamina os alimentos que o povaréu ingere. Impreterivelmente outro final de semana se faz às portas. O mosquitinho larga seus desenhos preferidos na televisão preto e branco, toma o lanche e corre a encher o saco da mãe que passa as roupas de papai mosquito:

— Mamãe posso ir ao restaurante?

A jovem arregala uns olhos que por pouco  não lhe cabem nas órbitas:

— O que você vai fazer no restaurante?

— As “manas mutucas” vão me ensinar a picar as pessoas.

— Bom, muito bom. Aliás, excelente. Quero que você, meu filho, aprenda com precisão esse ofício.

— Eu sei, mamãe. As “manas” me falaram...

A mãe lhe faz um carinho demorado no rosto:

— Disso depende a nossa sobrevivência.

— O que é sobrevivência?

— Continuarmos vivos.

— Legal, aliás, trilegal. Vou aprender e prometo picar o maior número de pessoas. Vivaaaaaa...

— Só não pique, “sem querer querendo”, a sua velha mãe.

— Credo!  Por que eu faria tal besteira?

De fato, o mosquitinho se aprofunda em como picar as pessoas e a passar doenças para os seres humanos. Regressa saltitante  para o lar e a mãe, ao ver a alegria, se contagia com o filhote amado.  O domingo seguinte entra pelos  furos das caixas de papelão do quarto de mosquitinho e inunda a sua felicidade de adolescente. Lê, emocionado,  a mensagem dos amiguinhos no whatsApp. Isso mesmo, no whatsApp. Salta correndo:

— Mamãe, mamãe, acabei de ser convidado para logo mais a noite ir ao teatro.

— Não, filho. Tudo menos teatro. Teatro é perigoso.

— Ah, mãe, deixa eu ir. É só hoje.

— Não, não, não e não. É superperigoso. Você nem imagina.  Seu pai quase foi pro beleléu.

— Mamãe, é só hoje.

— Meu Deus, quem vai com você?

— Todas as filhotas das suas amigas larvas e, claro, as minhas coleguinhas da escola que residem aqui no nosso depósito de entulhos.

— OK, meu filho. Vá. Mas cuidado com as palmas. Fique longe delas. São mais perigosas que as ondas do mar e  as loucuras da sua tia. Enfim...

O mosquitinho nesse momento está na primeira fileira, junto com os demais.  Adorou a peça, os atores, as roupas, as falas. No final do primeiro ato, entretanto, as luzes se apagam.

O público em grande manifesto vocal, apesar da escuridão, se coloca em pé e ovaciona. E não só isso:  berra, se esgoela, e brada. O mosquitinho sorri matreiro e acha tudo aquilo muito interessante, embora não aprove os modos esquisitos das pessoas em alvoroço descomedido. De repente a luz se faz e, dois minutos depois, tudo mergulha, num breu, desta feita mais prolongado. A plateia inteira volta a explodir em vivas, urras e aclamações. A balbúrdia inesperada e a todo vapor, segue alarmada. Entretanto, num descuido do mosquitinho, a fatalidade e o inesperado mostram as suas faces ocultas. O que a sua mãe mais temia. No espocar dos gestos efusivos, o infeliz mosquitinho termina esmagado, entremeiado aos apupos e às palmas das mãos grossas de um cidadão que grita, estridentemente: “bravo, bravo, bravoooooo!...”.
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Nota:
* Prometência – Variante de promitência. O mesmo que promessas feitas.


Fonte:
Texto e nota enviados pelo autor.

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