quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Aluízio Ferreira de Abreu (À sombra do Bandarro)


“Aquilo” só podia ser febre de leite. A menina nascera como abóbora benza-a Deus! — na fortidão da lua, e tudo correra normalmente, às mil maravilhas, com grande valentia da Candoca, que nem parecia de primeira embarcada.

Nhá Porciana conhecia, de fato, “daquelas coisas”. Dera o seu lidar por terminado, com o pinchamento d’água suja da gamela de raiz de figueira, e estava pronto.

Ela mesma recebera a Candoca, há várias floradas das guaricicas*, quando as árvores pareciam ajuntar na arca verde das copas todo o ouro do sol, e a Fortaleza da Barra, “sarvava com tiros de pórva sêca”, no alumiamento de mais um aniversário da República de Deodoro.

Também, de quase toda aquela gente, beirando os “trinta”, crescida e permanecente ali, desde o costão do Bandarro, raro o que não chegara pelas suas mãos encaroçadas pelo artritismo, mas experimentadas. Não havia, pois, motivos para aquela aflição, para o rumor baldado que o Gumercindo Vicente viera fazer atendo-lhe à porta hora alta, — até assustar a galo, velho e esporado, no poleiro de mangue bravo, que deitou a cantar, agourentando, “como se estivessem roubando moça no Superagui...”

Uma febrinha que mal chegava a amornar vexou-o com a obsessão da dianha* da puerperal. Era verdade que Aninha da Galheta se finara, não fazia tempo, levada numa recaída; mas a entendida fora outra, que não ela, “costumada no desempenho”. E mostrou o acerto, com o empachamento dos peitos da Candoca, abrasados e vermelhantes, com o queimor da “esipra*”.

— Uma coisinha à toa, facir de aresorvê...

Nhá Porciana pediu um punhado de sal, torrado no calor da “mãe do fogo”, e um pente feito de chifre. O sal quente, ela o derramou sobre o embolamento dos seios, “penteando-os”, em seguida, de alto a baixo, das raízes até a extremidade dos bicos. Simpatia infalível, ensinada pela mãe Rita, herdeira universal da velha Xandoca, que a animara nos afazeres dos partos. Tudo acompanhado de palavras rezadas baixinho, quase sem movimentação de lábios, para não serem apreendidas.

Coincidência ou não, “por isso ou por aquilo”, momentos depois o leite descia sem estorvo à sucção faminta da recém-nascida, a temperatura voltava a 36º e o enrijamento desaparecia, com o reconhecimento de Gumercindo Vicente e da Candoca, enfim, recuperados na sua confiança no futuro.

Nhá Porciana debochou, bondosa:

— Óia, Gumercindo, se Mané da Ribeira fosse ansim, e se aborrisse por um tiquinho nada, ele já tava que só pêxo cambira! Esse unzinho de onte, foi o doze com que Deus o favoreceu...

O “unzinho” que nascera na véspera passou a chamar-se Antonio, conhecido pela abreviatura de Toninho, acrescida do apelido paterno, no diminutivo. Gumercindo Vicente, por sua vez, deu à filha o nome esquisito de “Eduvirges”, em memória, não sabida da Candoca, de um rabicho polaco, em Ponta Grossa, quando galgara o planalto, reclamado pelo serviço militar.

É que nas praias, por entre tanta simpleza das coisas e dos corações, a flor da malícia também encontra ambiente, vicejando por vezes...

O Morro do Bandarro azumbrado* nas imediações da Barra do Superagui serve de referência à navegação, na direitura da Boia do Cigano. Nas suas fraldas borbulha uma vertentezinha sem nome, chorona, que vai escorrendo para a praia, como um fiapo úmido de luar, rastejando no crepúsculo do mato.

Bem aí, nesse longe, estava fincada a casa de Gumercindo Vicente, parelhando com a de Maneco da Ribeira, as duas mirando abstratamente a largueza do oceano. Toninho e Duvíge foram medrando nesse apartado da terra, desconhecendo o que fosse o mundo além daquelas lonjuras do mar, analfabetos por ausência de mestre, verminados e amarelentos à míngua de medicina, entretanto alegres do seu viver naquele largueirão de ermo.

Entretinham-se vendo passar os vapores, sem diferenciá-los e por vezes os seus olhos embeveciam-se no luzimento dos aviões varando pelo céu, roncando como um besourão de prata. Nem sequer perquiriam do rumo daqueles barcos caturrando entre as ondas, ou das máquinas brunidas que furavam o azulão, mergulhando nas nuvens. Que lhes poderia interessar o destino dos outros, a eles que viviam separados de toda a gente, na agrestia daquela ilha surrada pelos vendavais?

Duvíge cresceu com a afoiteza da bananeira brotada na lombada do Bandarro, para a primeira cacheada. Toninho, ao contrário, não passava de um caboclinho minguado — peri de beirada d’água — atrasado pelo amarelão.

Disparidade impiedosa, cúmplice natural da aproximação dela com o Mingote da Ribeira, irmão mais taludo de Toninho, já tirando para homem, com escassos pelos assombreando o beiço, sobre a dentuça carcomida. No íntimo de Toninho, porém, essa desigualdade manifestava-se de modo adversante.

A sua benquerença por Duvíge avolumava-se com impetuosidade de onda e o ciúme escacava* o seu peito, mordente como a espinhada de pira-mamangava, que um dia lhe picara os dedos, na cambulhada* dos camarões da tarrafa, doendo como esporada de arraia-chita.

A boca amargava-lhe com o travor da artemisa-da-praia, quando ela passava ao lado de Mingote, ele empertigado no seu domingueiro de listão, subindo pelo caminho ramposo do Bandarro até o seu alto, extasiados no seu querer, as imagens refletindo-se na poça da pedra, bem na assomada, como um quadro em moldura de pedra, falando de coisas que lhe azinhavravam* a alma, turvando-a como água revolvida de lama.

Seus olhos fuzilavam como brasas, e a razão encadeava-se-lhe. Azoado sentia o badalejar dos dentes, como em acesso de maleita, e punha-se a correr eito a fora, os maus pensamentos afeleando-lhe* o coração, que nem a bafagem do vento abrandava.

Só noitinha voltava ao ranchão, estropiado do andejamento, para a dormida agitada, de pesadelos, que era o seguimento vivo da sua grande agonia.

Mingote da Ribeira e Duvíge, tripulando a segura canoa dos seus sonhos, navegaram com as velas pandas de esperanças pelos mares serenos do seu bem-querer, indo poitar* os destinos sob o olhar imobilizado da Santa dos Prazeres, na igrejola da Ilha do Mel.

Foi o desflorir outonal das ilusões de Toninho.

Ali mesmo, ao pé do altarzinho caboclo, ruminou matar o irmão, afogando-o. Azucrim não cessava de trabalhar-lhe a mente esquizofrênica, atormentando-o de morte.

— Duvíge não podia ser de mais ninguém...

Mais tarde, Maneco da Ribeira pôs em reparos o ensoamento do filho, chamando-o para o assombramento da gameleira troncuda, onde uma andorinha calmamente trissava*, refazendo-se do volutear exaustivo.

Bem-avindo*, admoestou-o num ralho de paciente afeição, que ele recolheu com os olhos parados na areia, boiantes de tristura. Nem tentou abrir a boca precocemente amargurada, para um protesto ou uma desculpa. Deixou-se ficar, vencido, o olhar perdido no vazio das coisas, ensimesmado dentro da sua amargosa decepção.

Na casa, sob o teto rústico de juçara, corria o ajantarado das esponsais. Uma viola, ponteada, ia chorando algures...

Já a luzerna* do Farol das Conchas rastejava no mar escameado de prata, quando alguém topou, pelas bandas do Banco de Inácio Dias, com a canoa de canela preta alagada, indo com a vazante...

O fandango estalava na moradia, no festejo das bodas, sem que alguém notasse a ausência de Toninho, arredio que andava, tresmalhado de todos. E no rancho do porto de Maneco da Ribeira, quase no anco da praia, só os rolos de cacheta branquejavam no grande espaço vazio, tomado de uma pesada sombra...
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* Notas:
Afeleando = amargurando, angustiando.
Azinhavravam = oxidavam.
Azumbrado = dobrado, curvado.
Bem-avindo = conciliado, amigado.
Cambulhada = grande quantidade.
Dianha = diacho.
Escacava = despedaçava.
Esipra = erisipela.
Guaricica = pau-amarelo ou pau-de-vinho, é árvore típica da Floresta Atlântica de planícies e de ínicio de encosta, onde forma agrupamento denso na fase de capoeira alta. Madeira de cor bege-clara é de peso médio e durabilidade moderada. Usada principalmente em caixotaria, tábuas, obras internas, remos e canoas. Produz boa lâmina e lenha de boa qualidade. É de árvore sempre-verde, muito usada para fins ornamentais, por sua vistosa floração.
Luzerna = facho de luz.
Poitar = ancorar.
Trissar = canto da andorinha.


Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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