sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Mia Couto (Homem no leito)


Lázaro está no leito de morte. No quarto se obscurecem muitos familiares. O velho tio está sobre a esteira sem roupa, mais despido que um sapo. Passaram dias de coma, sem comer, sem beber. Apenas lhe entornam, de vez em quando, uma tanta água. Não bebe pela boca, bebe pelo corpo. Assim dizem os fúnebres acompanhantes.

Nessa tarde, porém, o moribundo ergue a mão, num aceno de lenço murcho.

- Está a chamar!

Os parentes se aproximam, curiosos. O moribundo mantém-se de olhos fechados. Agora respira com mais peito. Começa a balbuciar, quase insonoro.

— Está a falar! Calem-se...

Debruçam se sobre o leito para melhor escutar. A voz dele vai ganhando contornos.

— Dois, dois pássaros.. .

Os presentes se entreolham. Dois pássaros? O homem está a delirar. Uma das mulheres entoa um choro. Uns se alarmam: visões de ave não trazem boas novas.

— Calem, não façam barulho. Estou a falar...

Era o moribundo, mais ciente e ordenoso. Já todo instalado na voz, prosseguiu:

— Me entraram dois pássaros nos olhos.

Os familiares estranharam. Houve quem gargalhasse. Mas o receio dominou: afinal, o tio falava de olhos fechados. E houve quem recriminasse:

— Lázaro, pá! Não brinca conosco. Nós estamos aqui, nas lágrimas.

— Estou a falar.

Ouvissem-no, então. Porque, segundo dizia, dois pássaros o tinham levado, ele subira em asas, voara de sonhar, se azulara por nuvens e alturas.

— Andei por lá, estes dias, sabem que eu vi?

Ninguém respondeu. Tio Lázaro falava sempre de olhos fechados. Mas mesmo antes, em saúde e vida, ele cerrava os olhos quando palavreava.

— Vi pedras. Há pedras lá no céu, pedras de cores, cores redondas. E vi mais. Vi ovos de montanha.

Mais risos.

— São ovos de onde nascem as montanhas.

Lázaro agarra o braço de um dos filhos e aperta o com força. O filho faz um esgar e, a chorar, avisa os outros:

— Ele está a me aleijar!

O moço, aflito, roga para que os mais velhos intervenham. Mas é Lázaro quem mais se ouve:

— Escutam bem. Eu não quero que vocês me enterrem aqui.

As respostas são confusas. Uns dizem: você não vai morrer, papá. Outros perguntam: Mas aqui onde?

— Aqui na terra da terra.

Alguns risos, deflagrações de nervos. O braço do doente se ergue, apontando os céus.

— Há um lugar para vocês me enterrarem lá.

— Fazemos tudo que está no seu desejo. Mas não abre os olhos, pai?

— Não posso, filha.

— É que comprime o peito ouvir o senhor assim. Abra os olhos, lhe peço.

— Não posso. Senão saem os pássaros e eu logo acabo de vez.

De repente, parece que o peito lhe estancou. Morreu? Não. Uma mão lhe força as pálpebras, abrindo os olhos. Ainda alguém tentou evitar aquele gesto. Tarde demais. Pois, no instante, deflagram duas manchas brancas que emergem do rosto. Os familiares se espantam: se trata do não ver da morte? Pela janela se escapam aquelas brevíssimas visões, cegas e luminosas dançarinas.

O homem, todos estão crentes, se definitivou. Contudo, a sua mão está tensa, encerrando um misterioso quê. Abrem lhe com firmeza os dedos. Tomba uma pedra negra que se quebra em casca. Parece um ovo. E, de dentro desse vazio, começa a emergir uma montanha.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

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