domingo, 4 de dezembro de 2022

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 79, 80 e 81


DUAS SOMBRAS

Por que Meneses tinha duas sombras em vez de uma, como toda gente? Ele não sabia nem se importava com isto.

Há casos de pessoas que perderam a sombra e lutaram por trazê-la de volta, mas o fenômeno de duas sombras iguais era totalmente inédito. A cidade interessou-se a princípio; acabou se acostumando e mesmo tirando partido. Meneses era a única atração turística de um lugar pobre de paisagem e de prazeres.

— Já que me tornei polo turístico — disse ele — devo tirar proveito desta condição. A prefeitura tem de me pagar uma quantia mensal.

O prefeito coçou a cabeça. Pagar a um indivíduo por ter sombra dupla? Não estava certo. Por outro lado, viajantes começaram a chegar de estados vizinhos e até do exterior. Dinheiro chovendo.

Meneses trancou-se em casa e, atrás da porta, negociou, com a autoridade, participação na renda. Ou isto, ou se mudava para longe. Esta foi a origem da Taxa das Duas Sombras, que vigorou até a morte de Meneses, rico e afamado. Só que, nos últimos tempos, uma das sombras diminuíra de tamanho, e um vereador da oposição propôs que lhe fosse cassada a sinecura. Mas uma sombra e meia era nova atração, e a proposta foi rejeitada.
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ENTRE FLORES

As flores estavam inquietas porque o arquiteto-paisagista havia projetado uma flor diferente de todas as existentes. O projeto fora encaminhado à comissão de notáveis, que deu parecer sugerindo a adoção da nova flor como a primeira do país e seu símbolo oficial. “Com uma flor diferente de nós todas e erigida em marca nacional — murmuravam a um só tempo os crisântemos, as dálias, os cravos e muitas outras espécies, inclusive a flor de fedegoso, que pelo nome não era muito apreciada — institui-se discriminação no reino vegetal. Além do que, flor sintética não é flor que se cheire.”

A rosa não quis opinar, porque ainda conserva ilusões de rainha. Uma delegação de flores procurou o arquiteto-paisagista, que se recusou a recebê-la, mandando dizer que estava muito ocupado. Seguiu-se a greve floral durante 45 dias, em que ninguém mandava flores ou tinha condições de colhê-las, pois todas passaram a ter espinhos, e algumas, cheiro de enxofre.

Mesmo assim, a flor de proveta foi institucionalizada, e muitas variedades, como a cinerária, o lírio amarelo e o jacinto, que antes formavam no coro das reclamantes, levaram-lhe cumprimentos no dia de sua glorificação. Os espinhos e o mau odor desapareceram, e até a rosa lhe mandou telegrama de parabéns e votos de eterno florescimento.
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GARBO E MARLENE

Greta Garbo me escreveu na semana passada, perguntando se a esqueci. Isto porque todos os anos lhe mando um cartão de Natal, que ela agradece com outro, e assim temos mantido acesa a minúscula mas duradoura chama da nossa perene amizade.

Dezembro último, a Garbo não recebeu a minha mensagem. Esperou-a até maio, supondo que se houvesse extraviado, e que o correio, finalmente, a fizesse chegar às suas mãos. A verdade é que não faltei a essa grata obrigação, mas, não sei por que, em vez de botar no envelope o nome e endereço da minha amiga, escrevi os de Marlene Dietrich, que jamais conheci na vida, a não ser em filme, e cujo endereço figurava numa revista sobre a mesa.

Marlene devolveu-me o cartão (em que figurava o nome de Garbo) sem qualquer comentário. E eu, encabuladíssimo, não tive ânimo de encaminhá-lo à verdadeira destinatária, transcorridos meses.

Venho meditando sobre a troca, sem chegar a conclusão alguma. Terei pretendido, subconscientemente, ofender Marlene, revelando-lhe minha preferência pela Garbo? Seria de mau gosto. Estaria, no fundo da minha admiração, substituindo uma por outra? Não posso acreditar.

Dar-se-á que procurei fundir as duas estrelas num corpo único, juntando naturezas tão diversas? Van Jafa, que já morreu, poderia ajudar-me a destrinchar o enigma.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.

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