sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Chico Anysio (Cotidiano)


Quem tem notícia de Helena
Por favor queira informar.
Quem souber desta morena
Venha, correndo, avisar


Começa a nascer um samba no pinho de Leonam. Mais um a ser guardado com os demais trinta e tantos, sem que cantor algum se interesse por gravar. Esse, como os demais, é um samba inventado. Mais um pouco e pode reunir a família a quem mostrará a canção e ouvirá as opiniões de sempre:

— Tá lindo, Leonam. Dá pro Nelson Gonçalves.

— Um lixo. Só gosto de música do Roberto.

— Mentira, pai, tá bonito.

— Tem uma coisinha ou outra que dá pé.

Os filhos, jovens demais para saber da vida, não entendem muito a filosofia dos sambas, mas Lídia sabe que ele só faz coisa boa. Havia de chegar o dia em que seria reconhecido. Diz que música dá dinheiro. Não vê que tudo que é compositor tem carro?

Resolve, como das outras vezes, deixar a segunda parte para amanhã. Deita o violão no alto da cristaleira. Ajuda a mulher a recolher os pratos e as migalhas do jantar. O cachorro safado fazendo de novo no tapete.

— Rinnk... ronnk...

Irrita-se com o rangido eterno da porta da cozinha que não há óleo que dê jeito. Senta-se na poltrona de estofado gasto para ler o resto do jornal, começado no trem.

Não tem ainda 40 anos e já começa a pensar na morte. Não por ele, que não é egoísta, mas pela família que, com ele morto, do que vai viver? Como e com que se alimentariam aquelas quatro bocas? Cinco, porque o cachorro safado, porção nojento, também come. E mais do que os meninos, até.

O serviço que faz — cobrador da Telefônica — não garante nada de ostentoso para o futuro, mas, com ele vivo, sempre há o dinheiro dos bicos, vendendo refresco na porta do Maracanã ou espetinho à frente do Mourisco, nos ensaios da Portela. Morto, cadê?

— Quer um cafezinho? Passei agora! — oferece a mulher, 35 anos na carteira, 48 no rosto.

Ele aceita.

— Veja se está bom de açúcar.

— Está. — diz, sem provar, pela confiança que tem na mão da mulher que nunca errou na conta do doce, apesar de sempre perguntar a mesma coisa.

A mesma coisa.

Isso, é a vida dele. Cotidiano que escangalha a vida.

E a porta da cozinha rangendo rinnk. .. rooonnk; o cachorro encharcando o tapete 2 por 1, comprado na liquidação da Sears, os meninos brigando por um lugar melhor no sofá, a cabeça da vizinha, na janela, pedindo uma xícara de açúcar, a porta da cozinha rangendo... rinnk... ronnk...

— Chega pra lá, Helinho. Eu estava aqui antes.

— Quem vai ao vento, perde o assento.

— Mãe, olha o Helinho.

— Quer mais um cafezinho, Leonam?

— Para de me empurrar, Luciana.

— Rinnk.. . roonnk...

— Dona Lídia, me empresta uma xícara de açúcar?

— Pai, dá um jeito no Helinho.

— Veja se está bom de açúcar.

— Rinnk... ronnk...

Parece o barulho monótono das rodas do trem. Uniforme, fastidioso, insípido. E se é ruim com ele vivo, imagina depois de morto.

Pensa na morte como um fato que se dará amanhã. De olhos fechados, vê-se morto, imaginando o caos em que a casa mergulhará. A família, no mínimo, terá que mudar para um barraco. E o violão? Queria ser enterrado com ele.

Faz mi menor sem pestana e puxa, do fundo do peito, um verso novo.

Quero ser enterrado
Com o meu violão,
Companheiro adorado
Vai comigo no caixão.


— Que música mais besta, Leonam. Música que fala da morte... Bate na madeira.

Ele dá três pancadas nas costas do pinho, obedecendo por obedecer. E não é isso que faz todas as horas do dia? Os filhos, sim, são autônomos.

— Vá fazer os deveres de casa, Luciana.

— Depois, mãe.

— Helinho, já fez os deveres?

— Mais tarde.

— Leoninho...

– Psiu. Tô vendo a novela.

— Rinnnk... ronnk...

Novela acabada, cada um para o seu canto, boa noite, boa noite (se não é dia de amar) e até amanhã, quando tudo vai acontecer do mesmo modo: imutável e leso.

Luz apagada, os meninos na cama, Dona Lídia cobre-se com o lençol Santista Ouro, ainda do enxoval. Deixa uma perna descoberta, de propósito.

— Boa noite, Leonam.

— Boa noite.

E dorme antes dele, como sempre.

Para ajudar o sono a chegar, Leonam fecha os olhos e fica imaginando a porta da cozinha abrindo e fechando: rinnk... ronnnk... rinnk... ronnnk... até amanhã.

Até sempre.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

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