domingo, 11 de dezembro de 2022

Arthur de Azevedo (O Galo)


A cena passa-se na roça, a uma légua da estação menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominação geográfica, mas que pertence ao município do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores não suponham que estou inventando uma historieta.

 Havia no lugarejo em questão uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher, que todos os domingos iam à povoação mais próxima vender os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim atamancavam eles a vida, pedindo a Deus que não lhes desse muita fazenda mas lhes conservasse a saúde.

Ora, um belo dia a saúde desapareceu: o marido, apesar de ter a resistência de um touro, foi para a cama atacado por umas cólicas terríveis, que o faziam ver estrelas.

A mulher, coitada! Estava sem saber o que fizesse, pois que já havia em vão experimentado todas as mesinhas caseiras, quando ali passou por acaso, ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas léguas. A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possível.

O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o nó do dedo grande e explicou a moléstia com palavras difíceis que aquela pobre gente não entendeu. Depois, abriu o saco de viagem que levava à garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteúdo derramou algumas gotas num copo d'água, e disse doutoralmente:

    - Aqui fica esta poção para ser tomada de três em três horas.

    - Ah! Seu doutor, nós aqui não podemos contar as horas, porque não temos relógio!

    - Regulem-se pelo sol. O sol é um excelente relógio quando não chove e o tempo está seguro.

    - Não sei disso, seu doutor, não entendo do relógio do sol...

    - Nesse caso não sei como... Ah!...

    Este ah!, com que o doutor interrompeu o que ia dizendo, foi produzido pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente.

    - Ali está um relógio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar, dê-lhe uma colher do remédio. E adeus! Não será nada: Depois de amanhã voltarei para ver o doente.

    Foi-se o médico, e daí a dois dias voltou ao trote do seu jumento.

    Quem o recebeu foi o marido:

    - Que é isto?... já de pé...

    - Sim, senhor: estou completamente bom, não tenho mais nada. E não sei como agradecer...

    Mas a mulher interveio com ar magoado:

    - Sim, ele não tem mais nada, mas o pobre galo morreu.

    - Morreu? Por quê?.

    - Não sei, doutor... ele bebeu todo o remédio.

    - Quem?... o galo?...

    - Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendação do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tão bonito!

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