quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Talita Batista (A solidão misteriosa de Alice)


Alice foi minha vizinha por muitos anos, desde os meus dez anos de idade. Na infância e adolescência, ela morou na mesma casa com seus pais, um irmão e uma irmã. Sempre foi discreta e caseira. Não tenho conhecimento de que saía de casa, sequer para trabalhar. Aos poucos, a vida foi-lhe tirando os familiares da convivência doméstica. Seus irmãos se casaram e mudaram, Seus pais faleceram, E Alice continuou residindo ali, só, absolutamente só...

Eu continuei morando na mesma residência, vizinha à de Alice. Sempre preocupada com a sorte das pessoas que moram sozinhas, agora o alvo de meus cuidados era a silenciosa e discreta Alice, por quem desenvolvi espontaneamente uma espécie de responsabilidade moral.

Para mim, a vida também mudara muito, pois eu lecionava em várias escolas e tinha dois filhos para criar. Ainda assim, com essa vida atribulada, nunca pude me furtar a essa responsabilidade.

Afinal, havia apenas um simples muro que separava nossas casas.

Pela manhã, antes de eu sair para o trabalho, falava-lhe, do lado de cá do muro, elevando um pouco o tom de voz:

- Bom dia, Alice!

(Na verdade, queria saber se ela me respondia algo, se estava bem, se precisava de alguma coisa ou, pelo menos, se continuava viva.)

O único sinal que se poderia observar naquela casa era o movimento, ao anoitecer, quando Alice acendia uma lâmpada da cozinha. Eu vigiava atentamente isso, ao observar a claridade, pela parte superior da janela de vidro translúcido de sua cozinha. Só então eu saía para trabalhar despreocupadamente no curso noturno onde lecionava.

Durante alguns anos, quando era mais jovem, Alice costumava vir à noite até o muro da frente de sua casa para ver o movimento da rua. E não é que, certa vez, por ali passou um homem de bicicleta, e parou para lhe fazer a corte? Aí, veio a novidade: Alice arrumou um namorado...

O casal era muito discreto; nunca alguém viu sequer um gesto mais ousado deles. Alice e o ciclista conversavam muito. Ele, posicionado do lado de fora da calçada e ela, do lado de dentro, na frente da casa. Era bonitinho ver que ele vinha todos os dias para conversar com ela e ela se enfeitava toda para aquele encontro!...

Alice não era uma mulher feia, de pele muito alva e olhos extremamente azuis e brilhantes, faziam-na um tipo diferente.

Certa vez, estando eu de férias escolares, fiz uma viagem um tanto longa em companhia de meus filhos. Quando voltei, percebi que Alice tinha-se enclausurado de vez e nem vnha mais à frente de sua casa. Criando coragem, perguntei-lhe pelo muro:

- Alice, por que você não conversa mais à noite, com aquele senhor?

Então, ela me informou que ele tinha falecido, vítima de um atropelamento, tipo de acidente muito comum em nossa cidade, onde há muitos ciclistas.

A partir daí, minha preocupação se redobrou com a enclausuramento de Alice. Ela era uma pessoa determinada e absolutamente livre para só dispensar sua atenção a quem e quando ela quisesse ou até simplesmente se recusar a fazê-lo. Não atendia a quase ninguém que a chamasse ao portão,

Muitas vezes recusava-se a responder até a um empregado de seus familiares, que lhe ia levar algumas compras para a sua subsistência. Quando eu comprava pão para minha casa, comprava também para ela, e ela fazia sempre uma exceção para receber meu filho, que era uma criança/adolescente. Conhecia a sua voz e vinha prazerosamente buscar o seu pãozinho quente. Nos fins de semana, quando eu fazia uma comidinha melhor, sempre arrumava um prato especial e mandava meu filho levar para ela,

E assim se passaram muitos e muitos anos, com Alice fazendo parte da minha vida, O destino foi levando de minha casa muitas pessoas queridas e Alice, de alguma maneira, sempre me fazia companhia. Diariamente, eu continuava observando a luz que Alice acendia na cozinha por cima da bandeira da janela envidraçada.

Mas... Um dia Alice não acendeu a luz da cozinha! Naquela noite não tive condições emocionais de ir lecionar na faculdade! Chamei insistentemente Alice pelo nome. Pedi a meu filho que a chamasse com sua voz bem conhecida e tão prontamente atendida por Alice. Silêncio e preocupação invadiram os nossos corações, à medida que a noite tomava conta de nos. Chamei os vizinhos. Batemos muito à porta de Alice. Só o silêncio respondia aos nossos gritos e aumentava a nossa ansiedade.

Os vizinhos queriam arrombar a porta. Mas não havia ali um parente dela para nos autorizar a fazê-lo e ficamos sem saber que decisão tomar. Deus, então, fez vir à minha mente um número de telefone (ainda que eu nunca guarde de cor o número de telefone de ninguém). Era um número que Alice, vez por outra me dava, pedindo-me o favor de ligar para sua irmã. Como por milagre, me lembrei deste número e do nome dessa irmã dela, que então foi chamada e nos autorizou a arrombar a porta...

Por cima da porta caída entramos, e caminhamos, corações aos pulos, até o quarto de Alice, onde a encontramos morta, deitada na cama, completamente nua!

Até em seu último momento, pela postura em que a vimos, me parecia querer demonstrar, com coragem, sua forma autêntica de ser absolutamente livre para se comportar ou se vestir, imagem forte de que nunca me esqueci. Por Alice até hoje rezo e, por coincidência, ao escrever esta história, encontrei na internet uma "Oração para Santa Alice", da qual eu nunca tinha ouvido falar. Ei-la:

"Faça, Senhor Deus, e nosso Pai, que aspiremos incansavelmente ao descanso que preparastes em Vosso Reino, Dai-nos força e inteligência nesta vida, para suportarmos as agruras que nos rodeiam, para promovermos o Bem e a Justiça e servirmos a nossos irmãos. Santa Alice, rogai por nós! Que assim seja! Amém!"

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli.

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