Daí muitos desses folguedos de Natal serem tão variáveis. E não se pense que essa variabilidade ou o modo de se apresentar esse ou aquele auto é criação nossa. Entre os povos cristãos da Europa nós os vamos encontrar em variantes bem semelhantes.
No Brasil há bailes pastoris tradicionais como o do Marujo, o do Meirinho, o da Lavadeira, o do Elmano, os dos Quatro Pastores, o da Catarina, o do Velho Terêncio e tantos que seria quase impossível enumerá-los, muitos deles são fragmentos e adaptações de outros tantos de procedência peninsular.
É preciso compreender que esses autos e bailes pastoris não variam apenas de estado para estado, cidade ou lugar, mas até de ano para ano.
Isso porque o povo que os apresenta, não os cria originalmente, presencia-os, observa-os em qualquer lugar, em qualquer época e, só então, apresenta-os com características suas ao seu feitio.
Cumpre, pois, aos mais instruídos recolhê-los e sem deturparem as características regionais, reconstitui-los isentos de erros e lacunas que só nos viriam diminuir.
É o caso do Auto das Pastoras 24 de Dezembro, coligido em Pernambuco, sua terra natal, pela mestre musicóloga Ceição Barros Barreto que o apresentou, ao público, lindamente reconstituído.
Os grupos pastoris percorrem as ruas durante as noites festivas, parando diante das casas previamente avisadas. Ao canto do pedido de licença, as portas se abrem de par em par. O grupo festivo entra e desenvolve o poema musicado.
Melo Morais Filho, o grande cultor de nossas tradições, durante algum tempo organizou interessantes grupos de pastoras, para festejar o ciclo do Natal. De sua residência em São Cristóvão partia o grupo alegrando as ruas do então aristocrático bairro, visitando as residências amigas que o recebiam festivamente. A jornada terminava, com o bumba-meu-boi.
Esse brinquedo natalino é uma perfeita amálgama de reminiscências.
A principal figura é o boi, arcabouço de pau, grosseiramente coberto, escondendo um homem, cujos movimentos, marcha e cabeçadas são semelhantes aos do boi. A cabeça ou é de papelão ou é uma caveira autêntica, revestida de qualquer maneira, deixando respontar os chifres do animal. O vaqueiro, caracterizado como os nossos caboclos sertanejos, traz o agulhão, vara comprida com um ferrão na ponta, com que tange o boi.
Há personagens vários como o rei, com coroa de latão; o secretário, pomposamente vestido; o doutor; a Catarina; o padre; o Mateus; negro escravo; o capitão do mato. lembrança da escravidão: o Sebastião; o Arrequinho, corruptela de Arlequim; pastoras, negros, índios e outros mais.
O cavalo-marinho, o mestre Domingos, a cobra verde, o sapo, o diabo são personagens variáveis. O grupo é guiado pelo Mateus, em alguns pontos confundido com o vaqueiro, que vai gritando: Eh! Boi. Eh! Boi. Nas casas e lugares previamente marcados o bumba-meu-boi desenvolve o poema até que o animal cai inanimado. O vaqueiro então grita dramaticamente: O meu boi morreu, quem matou meu boi?
Enquanto o médico e o mágico pretendem reanimá-lo o vaqueiro vai cantando uma versalhada referente do exame do boi até que o médico inicia o testamento ou partilha do boi, mais ou menos neste estilo:
A rabada
É pra rapaziada;
O mocotó
É pro seu Jacó;
Um pé e a mão
É pra seu capitão;
A tripa de cima
É pra minha prima;
A tripa de baixo
É pro seu Camacho;
Os panos do figo (fígado)
É pra meus amigos;
E o bofe
É pro regabofe;
A ponta do janeiro
Pra fazê um tabaqueiro;
A testa do boi
É pra vocês doi;
O rim
Eu quero pra mim;
E a tripa gaiteira
É pras moças solteiras.
É pra rapaziada;
O mocotó
É pro seu Jacó;
Um pé e a mão
É pra seu capitão;
A tripa de cima
É pra minha prima;
A tripa de baixo
É pro seu Camacho;
Os panos do figo (fígado)
É pra meus amigos;
E o bofe
É pro regabofe;
A ponta do janeiro
Pra fazê um tabaqueiro;
A testa do boi
É pra vocês doi;
O rim
Eu quero pra mim;
E a tripa gaiteira
É pras moças solteiras.
E assim improvisando rimas, vai o doutor distribuindo as diversas partes do boi até que ele ressuscita. Acaba a representação com a despedida em coro:
Retirada, meu bem retirada.
Acabou-se a nossa função;
Não tenho mais alegria
Nem também consolação.
Bateu asas, cantou o galo,
Quando o Salvador nasceu,
Cantam anjos nas alturas,
Glória in excelsis Deo!
Acabou-se a nossa função;
Não tenho mais alegria
Nem também consolação.
Bateu asas, cantou o galo,
Quando o Salvador nasceu,
Cantam anjos nas alturas,
Glória in excelsis Deo!
O testamento do boi, partilha simulada entre os presentes, nada mais é que a comunhão simbólica usada em todas as religiões. A partilha faz desaparecer a culpa. A ressurreição do boi representa a remissão geral.
O auto do bumba-meu-boi, ingênuo divertimento popular, é a expressão singela dos antigos rituais de sacrifício. Por toda a parte, do solar a choupana a mesma alegria sadia e pura na noite de Natal.
Nessa noite nos lares não faltava a ceia — ou melhor — consoada. Nelas figuravam as guloseimas típicas; rabanadas ou fatias do céu, bolo de Natal, castanhas, nozes, amêndoas, avelãs, passas, figos secos, tâmaras, canjiquinhas, bolos de bacalhau, um mundo de coisas gostosas. À meia noite abria-se o vinho, a champagne, todos bebiam e se congratulavam desejando Bom-Natal, Boas-Festas.
Em muitas casas havia bailes e era hábito também os seresteiros percorrerem as ruas fazendo serenatas.
Esse costume de desejar Boas Festas, que hoje usamos, foi legado pagão, que as mais antigas civilizações nos deixaram. As congratulações com troca de presentes, festas com cantos e danças eram usadas pela volta da primavera, marcando o início das colheitas, conforme encontramos na mitologia.
Os gregos conservaram a tradição transmitindo-a aos romanos. Os primeiros cristãos adaptaram a usança à sua data magna — o Natal de Jesus. Desde então é o mesmo entusiasmo por essa época festiva.
Nos bons tempos as casas se enchiam de forasteiros. As cidades, as vilas e mesmo os lugarejos se movimentavam. As vitrinas e os mostruários das lojas transbordavam de novidades, presentes de toda a espécie, "festas" que uns davam aos outros, tradição que o encarecimento da vida está fazendo desaparecer.
Dar festas era quase que uma obrigação. Cada um a cumpria de acordo com suas posses. Os "senhores" abastados não trepidavam em oferecer de festas um escravo prestimoso ou uma crioula chibante. Desde as vésperas de Natal os escravos cruzavam as ruas levando festas "que meu sinhô mandô, desejando Bom Natal e Boa Saídas e Melhores Entradas". E eram presentes de valor: baixelas e faqueiros de prata, jarrões da China, animais de montaria, leitões, perus, joias, perfumes, flores. Até os escravos gozavam regalias excepcionais nesse dia. Ganhavam roupa nova, tinham licença para ir à missa do galo, recebiam uns cobres e assim gozavam a folga à "tripa forra".
As crianças eram surpreendidas, pela manhã, com as meias de brinquedos nos sapatinhos e não davam sossego à família com os apitos, gaitas e chocalhos. Mas, as meias e o Papai Noel de importação europeia, são relativamente recentes e variam nos diversos pontos do Brasil conforme a influência imigratória.
Os caixeiros das velhas casas comerciais, que antigamente permaneciam abertas até às dez horas da noite, dormiam nas lojas, às vezes sobre os balcões e tinham poucas saídas anuais. Pelo Natal puxavam das velhas arcas ou dos baús de folha, a roupa de "ver a Deus e à Joana", como se dizia então, calçavam sapatos rinchadores e saiam a tirar o "pó do lodo" ao menos naquela noite. As casas comerciais presenteavam os fregueses com caixotes de vinhos, champagne, presuntos, caixas de passas e outros brindes caros. Os mais modestos enviavam folhinhas de cromos coloridos com a respectiva propaganda da casa.
Os jornais enchiam-se de cartões de boas-festas, que os amigos desejavam entre si, os negociantes e as casas comerciais, faziam anúncios espetaculares de suas especialidades.
Assim era o Natal de outros tempos.
Fonte:
Mariza Lira. "A festa do Natal no folclore do Brasil". Diário de Minas. Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1951. In Jangada Brasil, dezembro 2010 - Ano XIII - nº 143 – Edição Especial de Natal
Mariza Lira. "A festa do Natal no folclore do Brasil". Diário de Minas. Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1951. In Jangada Brasil, dezembro 2010 - Ano XIII - nº 143 – Edição Especial de Natal
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