quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Mariza Lira (A festa do Natal no folclore do Brasil) – parte 1


O ciclo das festas de Natal vai de 24 de dezembro até o dia 6 de janeiro, dia de Reis, mas os preparativos começam muito antes. Essa festa tradicional que desde o alvorecer da Idade Média se vem filtrando através das gerações, chegou ao Brasil trazida pelas primeiras levas de colonizadores lusos.

A festa de Natal propriamente dita abrange a missa que é rezada à meia-noite e segundo se diz, o povo a chamou de "missa do galo", porque a essa hora é que os galos começam a cantar. Há ainda os presépios e os autos pastoris.

A noite de Natal também é conhecida, no Brasil, como "noite santa". E o maior atrativo da "noite santa", para os católicos é a missa do galo, que se realiza em quase todas as paróquias do país. Não é que o santo ofício não seja assistido pelos fiéis com toda a religiosidade, mas, a saída e o regresso da missa é que constituíam o encanto dos namorados e o divertimento dos gaiatos.

Antigamente nos coretos que se armavam nos adros das igrejas, a filarmônica local, a "charanga", como se diz por aí, alegrava o povo tocando músicas ruidosas. Os namorados dos velhos tempos aproveitavam a confusão para um piscado de olho significativo, um sorriso cheio de promessas e alguns, mais ousados, ao aperto de mão, ao beliscãozinho, que antigamente se usava, ou mesmo a uma ligeira jura de amor. Os gaiatos na confusão da saída amarravam as pontas dos xales das rotundas "carolas", isto é, das velhotas igrejeiras, prendiam com alfinetes, duas a duas, as saias das negras ou punham rabos nos fraques e sobrecasacas dos senhores austeros. As vitimas quando se apercebiam do ridículo, quase sempre mostravam o seu desagrado energicamente e os mais irritados ameaçavam "céus e terra". Os pândegos de longe gozavam as reações das vítimas. Os valentões e capoeiras, "por dá cá aquela palha", trocavam tabefes e rasteiras, mas tudo não passava de "um susto e uma carreira", como se dizia então.

Depois da missa era quase que uma obrigação a visita aos presépios, fossem eles armados nas igrejas ou em qualquer casa particular. A ideia de reproduzir a cena de Belém, partiu de São Francisco de Assis, que em 1223 armou o primeiro presépio com pessoas e animais verdadeiros desenvolvendo cenas reais. E agradou de tal modo a ideia, a todo o mundo católico, que, desde então, o hábito de se armarem presépios pelo Natal, espalhou-se por toda a Europa cristã.

Em Portugal, segundo frei Luiz dos Santos, o primeiro presépio foi armado no convento das Terras do Salvador, em Lisboa, também com personagens e animais verdadeiros.

No Brasil desde o século XVI, se armam presépios na Bahia, Rio e em Pernambuco, onde o primeiro foi devido à iniciativa do franscicano Frei Gaspar de Santo Antônio.

Há uma antiga descrição em verso , feita pelo poeta baiano Joaquim Serra da qual se conclui que os presépios do passado pouco diferem dos presépios do presente:

Céu de estrelinhas douradas,
Estrelas de papelão:
Brancas nuvens fabricadas
De plumagem de algodão!
Anjos soltos pelos ares,
Peixes saindo dos mares,
Feras chegando d'além.
Marcha tudo, e vem na frente
Os Reis Magos do Oriente
Em demanda de Belém!

E está a Lapa; o Menino
Nas palhas deitado
Com um sorriso de alegria,
Todo doçura e amor!
Contempla o quadro divino
São José ajoelhado,
E a santíssima Maria
De Jericó meiga flor


Ao presépio o povo ligou uma superstição. Está generalizada em todo o Brasil a crença de que quem arma presépio um Natal tem que fazer durante sete anos para alcançar as bênçãos de Deus e se não o fizer tudo andará para trás.

Ingênuas crendices do povo.

No Rio antigo ficou registrado, nas velhas crônicas, o presépio do cônego Felipe, na ladeira da Madre de Deus; era tão completo e tão suntuoso que era honrado com a visita de dom João VI.

Não menos famoso foram os do convento da Ajuda e da ladeira de Santo Antônio.

Outro presépio, citado pelos cronistas antigos foi o do Barros, carpinteiro estabelecido com uma oficina, à rua dos Ciganos, hoje Constituição.

Sempre houve espalhados aqui e ali, nos vários pontos da cidade, presépios que o povo visitava com religiosidade e encantamento.

Muito popular foi um armado numa casa modesta da rua Ana Néri, próximo à matriz de Nossa Senhora da Luz. Era uma cenografia ingenuamente pitoresca, mas com movimentação elétrica, ao som dos discos passados em vitrola. O povo afluía a ele de todos os pontos da cidade.

Os autos pastoris foram introduzidos em Portugal, em 1502, no reinado de dom Manuel. A rainha dona Beatriz encomendara ao poeta Gil Vicente, um auto pastoril para festejar o nascimento do príncipe dom João. A câmara da rainha foi transformada num presépio e o príncipe profanamente comparado ao Menino Jesus.

Anos após chegavam ao Brasil os autos pastoris. Informa Serafim Leite que um dos primeiros autos representados no Brasil foi a Écloga Pastoril, exibida em Pernambuco, em 1574. Essa festividade teve o máximo esplendor no norte a leste do Brasil e ainda constitui aí a nota tradicional mais pitoresca.

Adquirindo feição própria e variável nos vários estados do Brasil, esses autos natalinos tomaram denominações diversas; autos ou bailes pastoris; pastoras ou pastoris; cheganças e reisados; marujadas; fandangos da barca.

Revivendo uma reminiscência pagã, no norte, centro e leste do país, o mais típico desses autos é o bumba-meu-boi, havendo variantes como o boi-bumbá e outros. Na região do São Francisco há o "rancho da burrinha", como devem haver outros festejos desse tipo, com outras denominações, espalhadas por esse Brasil afora.

É interessante observar que enquanto o auto das pastoras e pastorinhas conserva o aspecto geral da primitiva pureza e ingenuidade, os pastoris, o bumba meu boi e suas variantes tornaram-se um tanto profanos e até com acentuado sabor livre, de acordo com o feitio do organizador e o meio donde surgiu.

Nos autos das pastoras o argumento gira em torno do nascimento de Jesus, enquanto que nos pastoris, no bumba-meu-boi e seus congêneres, prende-se ao tema da morte e ressurreição. Nas cheganças e marujadas o motivo principal é a luta entre mouros e cristãos.

Todos eles são constituídos de monólogos, diálogos declamados, canções, duetos, coreografia numa dramatização conhecida, tradicional mesmo ou organizados por apreciadores do divertimento.
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Continua…
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Mariza Lira (Maria Luísa Lira de Araújo Lima), folclorista e musicóloga, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 17/7/1899, e faleceu na mesma cidade, em 4/9/1971. Diplomada pela Escola Normal, do então Distrito Federal, foi diretora de escola técnica secundária do Rio de Janeiro e membro da Comissão Nacional de Folclore.

Uma das pioneiras dos estudos da música popular urbana, vinculou seus conhecimentos musicais a uma abordagem sociológica, como ilustram seus artigos para a Revista de música popular (1955-1956), do Rio de Janeiro.

Além de numerosa produção jornalística no campo folclórico, publicou Brasil sonoro, Rio de Janeiro, 1938; Chiquinha Gonzaga, Rio de Janeiro, 1938; Cânticos militares, Rio de Janeiro, 1943; Migalhas folclóricas, Rio de Janeiro, 1951; Achegas para a história do folclore no Brasil, Rio de Janeiro, 1953; História do Hino Nacional Brasileiro, Rio de Janeiro, 1954; Calendário folclórico do Distrito Federal, Rio de Janeiro, 1956.


Fontes:
Mariza Lira. "A festa do Natal no folclore do Brasil". Diário de Minas. Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1951. In Jangada Brasil, dezembro 2010 - Ano XIII - nº 143 – Edição Especial de Natal

Enciclopédia da Música Brasileira. SP: Art Editora e Publifolha. 1998.

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