terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Cecy Barbosa Campos (Ensaio de carnaval)


Fevereiro sombrio na mente de Turíbio. Os dias de sol e as noites quentes não conseguiam clarear as ideias que lhe vinham à cabeça ou esquentar a friagem que lhe ia na alma.

Nem parecia que o Turíbio tinha nascido num dia de Carnaval, bem no meio da folia. A mãe se recusou a abandonar o desfile por causa do neném que estava pra nascer, e foi aquele corre-corre na hora do samba, com a cabrocha parida e o Turíbio berrando pra alegria de todos os amigos da escola.

Cresceu no samba e até compositor ele era. No ano passado, foi o campeão, ganhou o concurso do samba enredo de parceria com um mais letrado, que arrumou as palavras e pôs no papel a inspiração do Turíbio, pois, além da música, a inspiração era dele.

Quieto, parado, alguma coisa havia com o Turíbio. Cadê aquela animação, aquela alegria que contagiava, que se espalhava por todo lugar em que o moço chegava?

Ele andava zonzo, ninguém sabia, mas andava zonzo, com os ouvidos cheios da risada cantante de Clodomira, que, rindo, se esquivava e ia pra longe, nem sempre querendo os afagos do "nego" que em outro tempo era o seu xodó. E, zonzo, lembrava dos carinhos da mulata e dos seus recuos, e sua risada, num riso crescente, virava deboche nos ouvidos de Turíbio e punha loucura na sua cabeça.

Já nâo era de hoje que nos ensaios da escola sentia que os requebros de Clodomira não eram pra ele. Não eram pra ele o gingado sensual, o sorriso rasgado, o olhar cobiçoso. Companheira de tantos carnavais, desde o primeiro em que tinham resolvido dividir o barraco, os trapos, as misérias e as gostosuras da vida, era cheia de dengos, não esquecendo de preparar um quitute caprichado e a batida preferida do seu nego, o que cada vez mais prendia o Turíbio.

Entretanto, agora... Andava com um jeito desligado, um olhar debochado, que punham Turíbio roendo ciúme, criando maldade, odiando e querendo a sua Clodô.

— Mulata boa, a danada... Mas traição nâo aturo. Acabo com ela, com o outro e comigo, que vida sem ela não é vida... la pensando confuso, seguindo com os olhos a cabrocha faceira, esquecido do samba que jorrava na quadra, pasmaceira nas pernas dormentes, sem sangue, que o sangue subia à cabeça a cada requebro de sua Clodô.

À frente, ela seguia sem ver nem sentir, sem lembrar do seu nego, das juras trocadas, de nada lembrava, senão do seu samba e do novo amado, que em passos treinados driblava com ela no meio da quadra.

O cheiro suado e a linguiça frita aguçavam os sentidos do negro Turíbio, que via e ouvia, num mesmo compasso, as risadas e o corpo da sua Clodô, que ia e que vinha, num crescendo de ânsia, jogado pro lado daquele malandro, novato no morro, mas já estimado e parte da ala a desfilar na Avenida.

— Que é isso, compadre?! Esquecendo do samba? Tá doente?

Notou, espantado, o amigo do peito, que viu o sem graça do Turíbio, parado no meio da quadra, sem passo e sem fala. Porém, o samba não deixa parar pra saber e, seguindo o batuque, perdeu, outra vez, o Turíbio de vista, que depois noutra volta veria e levava prá pinga a fim de animar.

Quem viu primeiro foi a mulata Clodô. Atrás da barraca de linguiça frita, no meio do abraço do seu novo amado, envolto em fumaça e faca na mão. Tempo não teve pra gritar ou correr. Foi só gemer e cair com o amante, num tombo só, num só sangue, enquanto pro lado caía o Turíbio. Vida pra ele não mais queria, pois tudo se fo¬ ra com o amor de Clodô. Com olhos vidrados, banhado em seu sangue, ainda ouviu os acordes do samba que a turma tocava.

Era o seu samba, a sua vitória que, no ano passado, empolgara aos amigos e à Clodomira, que requebrava o dia inteiro, repetindo o refrão. E, a ouvir o seu samba, Turíbio se foi, com um sorriso feliz, lembrando da glória.

— Acudam! Socorro! Desgraça!

Gritou alguém que chegou àquele canto do terreno baldio, que servia de banheiro ou refúgio para os amantes cansados do samba. Logo, a multidão correu, deixando a quadra. Compreendendo a tragédia, após um momento de impacto, todos repetiram em coro o refrão do samba do Turíbio, em homenagem ao amigo querido.

A Rádio Patrulha, subindo o morro, acabou com o ensaio que já havia acabado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

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