segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Bucólico)


EDUARDO, AOS QUINZE ANOS, em cega obediência aos prementes desejos do seu desassossego, queria receber um sorriso dela. Ganhar de Ana Flor (era esse, o nome da jovem, um ano mais nova), um olhar demorado, trocar um “olá”, um “oi”, um “tudo bem?”. Na hora em que chegavam em frente ao portão da escola, ele imprimia um breve tempo em retardo para que ela subisse as escadas se antecipando a ele. Gostava de vê-la pelas costas. Um perfume suave emanava de seu corpo e batia em cheio dentro de seu nariz. Ele absolvia aquela fragrância com sofreguidão, tal como buscava no espaço o ar que o mantinha vivo. Na saída, Eduardo se deleitava acompanhando os passos dela até onde morava e a deixava no portal de sua residência.

Quanto a isso, havia uma urgência prementíssima que saltava de dentro de sua inquietação como um tigre furioso de encontro a uma presa incauta. Ele desejava estar ao lado dela todas as horas do dia e da noite. Desfrutar junto ao seu bem querer aqueles momentos em que ela se punha sentada num dos bancos do jardim defronte da igreja matriz para espiar a imensidão do mar. Nessas horas, os olhos de Ana Flor ficavam distantes. Brilhavam com uma intensidade paranormal. Os pensamentos, ah, os pensamentos, sabem Deus por onde vagavam...

Eduardo pressagiava mais em seus desvarios. Sua alma se via desprendida do corpo. Parecia tocar as mãos da charmosa, acariciar seus cabelos, mergulhar demoradamente dentro de sua tristeza para tentar entender de onde vinham, a um só tempo, tantas melancolias e sofrimentos.

Tinha consciência que maquinava, num futuro próximo, dar um jeito de ser a estrada onde ela passaria, o chão onde pisaria. Se possível, a cama onde as noites, em seu quarto, se deitaria para dormir. Também intentava se transformar nos cadernos dentro da mochila. No lápis, na borracha, na caneta esferográfica. Virar o autor dos romances que ela lia, o marcador de páginas que levava à boca... a xícara que tomava o café, a cadeira onde se acomodava para estudar, a escova que deslizava em seus cabelos compridos, as músicas que ouvia nos fones de ouvido certamente imbuída no mais belo tom romântico. Eduardo, aos quinze, “quimerava” em ser o sol que banhava todos os domingos o corpo dela na piscina do clube da cidade.

Daria a vida para ser o par de tênis, as meias, o chuveiro quente, o sabonete, a espuma, a toalha, os chinelos, o vento sibilante que soprava forte e majestoso tentando levantar (sem conseguir), a sua sainha plissada acima dos joelhos. Ele ansiava mais: na verdade, pelejava pelo impossível. Lutava ferrenhamente pelo inalcançável. Se esforçava além das suas faculdades de entendimento insistindo em não deixar perecer seus sonhos num redemoinho de ondas fortes de um mar bravio em colisão com uma cordilheira de rochas à semelhança de uma ilha inesperada no meio do nada. Ele necessitava urgentemente tê-la sua.

Como um presente, como uma prenda, como uma graça alcançada. Todavia, não sabia como por seus objetivos em prática visando o almejo dos sonhos desejados. Tinha pulsante, na consciência, que carecia de uma convicção robusta que prescindisse e voasse além do “sentir algo diferenciado”. Um fato robustecido e végeto (bem nutrido) o bastante, que transpusesse o banal corriqueiro e se sobrepusesse ao desejo abissal se estendendo para um horizonte inaudito, tipo um amanhã que ultrapassasse o incomum e o raro, como uma constrição que o envolveria acima de suas forças por aquela menina um ano mais nova que ele. Às vezes, Ana Flor parecia tão frágil e débil desprotegida e minguada, que seus olhos tinham vontade chorar de modo copioso.

Sentia tudo isso quando na sala de aula ela se punha quase diante dele. Bastava um esticar de braço e a tocaria. Todos os dias, o ano inteiro, mesmo espaço mesmos colegas, idênticos professores... iguais trabalhos sendo pesquisados na biblioteca. Apesar das tantas tarefas curriculares, Eduardo capturava em seus menores gestos, uma solidão descomedida, e a achava, por tudo, cada vez mais bonita e atraente, principalmente quando a graciosa se misturava às colegas da turma onde sentavam quase a se esbarrarem umas às outras. Eduardo, nas aulas de inglês, mal escutava o que dizia o professor. As matérias suplementares só não se tornavam enfadonhas porque se constituíam no único elo real que o prendia às ininterrupções dela, ao seu lado a lado.

Na hora do lanche, por azar seu, a turma debandava. A escola inteira virava uma balbúrdia só. Mas a pétala mimosa, seguia um padrão diferente. Ana Flor não se misturava à confusão, ao burburinho. Ao contrário das demais garotas da idade, se recolhia sorrateira, num cantinho afastado e ficava sentada até a hora em que a campainha voltava a tocar anunciando o fim do recreio. Todos corriam para o tédio dos bancos das carteiras. Eduardo seguia firme no seu posto. Contemplava a sua paixão no solitário do incansável, como um menino bobo. Perdia um tempo enorme em deslumbramentos infantis. Por conta, viajava para longe da Terra e, ao menor movimento dela, pulava correndo na realidade que atropelava. Sua pequena dor de adolescente descompassava.

Sua pele suava fria. Se fizera comum sentir ímpetos de se aproximar, puxar conversa, porém, um medo impiedoso, sem pé nem cabeça, um receio maior e grandioso de levar um fora tolhia seus movimentos mais bacocos (toscos e idiotas). Ana Flor se constituíra, indubitavelmente, na dileção que fluía de dentro dele. O desejo tresloucado que alimentava em seu âmago um silêncio perene. Igualmente, o sofrimento extremamente desagradável que se estampava nas saliências de seu semblante.

“Será que ela sabe da minha existência? — Pensava o tatarola (pateta) com seus receios e apreensões.  O que pensaria dele? Deveria, com toda certeza, achá-lo um abestalhado!”.

— Mãe Santíssima, como me achego a essa joia de valor inestimável?

Assim voaram os anos. Ambos cresceram. Ela, aos vinte, mudou de rua, de casa, de escola, mas não de hábitos. Continuava todas as tardes indo até a calçada defronte a igrejinha onde se sentava no mesmo banco de pedra e ficava a contemplar os pombos, o mar imenso e distanciado. Ele, aos vinte e um, trabalhava no posto de gasolina manobrando os carros dos clientes, ora lavando os automóveis dos ricos da cidade, ora abastecendo os que vinham de fora. Ana Flor também arranjou um emprego de balconista numa lojinha de roupas para senhoras e crianças defronte. Nas horas de folga, ele se punha a olhar longamente para ela, a observar seus gestos mais sutis através da vitrine. A se debulhar apaixonado, os quatro pneus furados, como se tivesse com a cabeça e os pensamentos fora de órbita.

E estava! Ela saia às seis e ele, cinco minutos antes dela. A jovem seguia a pé para o novo bairro onde passara a morar. Continuava com os pais. A mãe fora nomeada promotora de justiça do fórum local, o pai ganhava nome e fama como renomado advogado. Por vezes, ela obstruía a marcha. Parava aqui e ali, arrancava uma flor acolá, cheirava, tornava a seguir adiante e quase chegando em destino, dava uma derradeira estancada. Contemplava a noite se aproximando. Ele, endoidecido, roendo as unhas, os batimentos acelerados, distava alguns passos atrás. Escoltava a pérola nacarada sem dizer nada, sem se deixar perceber. Como um anjo apenas observava e sofria. Padecia e observava, em um silêncio sempiterno (perene, infinito), a sua dor esfomeada de amor. Um afogo supliciado e inquieto de amor pelo gostar que, dia após dia, parecia crescer mais e mais dentro de seu peito em frangalhos.

E junto com essa tribulação, literalmente mais e mais ele se afeiçoava dela. Até que um dia... um dia (sempre existe um dia na vida de cada um de nós), ele finalmente criou coragem, se encheu de força rija, poderosa e dominadora, superando a própria razão. Deixou de lado o terror, a desesperança, a inquietação e resolveu que chegara a hora de se aproximar. Roubou uma rosa bonita de uma residência onde um jardim bonito crescia à natureza notória e indubitável:

— Hoje falo com ela. Me declaro. Sou um homem, ou um rato?

Nessa hora, Ana Flor, como sempre seguia na sua rotina. Voltava para o aconchego de seu lar. Agora não mais na mesma escola. Vinda da cidade próxima. Ela cursava a faculdade de direito, Eduardo medicina.

Ana Flor saltava da van escolar, ele minutos depois de outra condução. A maviosa parava aqui, estancava ali, fingia derrubar alguma coisa.  Olhava para trás e pressentia o contínuo dele em seu encalço. Nesse começo de noite ela percebeu que ele se achegara além da linha divisória do “de sempre”. Tinha pleno conhecimento que aquele rapaz a seguia. Todos os dias. De longe, a passos calculados. Fazia muitos anos... não falava nada, só marcava território. Depois desaparecia.  Então aconteceu:

— Ana, eu queria te dar esta flor...

Ana se virou pasma e junto trouxe no rosto uma candura indescritível:

— Posso me sentar ao seu lado?

Ela fez um gesto com a cabeça sinalizando um “sim” cheio de dulçor:

— Pode.

Eduardo se acomodou, ainda receoso.  Ela ajeitou o rosto, se abriu numa carinha de apaixonada. Seus lábios, de perto eram mais sensuais e tentadores. A boca perfeita...

— Desde que te vi, pela primeira vez, tanto tempo passado, e você sabe disso, senti que você seria a mulher da minha vida...

Ana Flor nada disse. Apenas ouvia. E sorria. Seu interior dava a impressão de explodir a qualquer momento:

— Ana... quer ser a minha... meu Deus... quer ser a minha namorada?  

Eduardo, desde os quinze anos, em cega obediência aos prementes desejos do seu desassossego, queria receber um sorriso dela. Ganhar de Ana Flor (era esse, o nome da jovem, um ano mais nova) um olhar mais demorado, trocar um “olá”, um “oi”, um “tudo bem?”.

Na hora em que chegavam em frente ao portão da escola, ele imprimia um breve tempo para que ela subisse as escadas se antecipando a ele. Gostava de vê-la pelas costas. Um perfume suave emanava de seu corpo e batia em cheio dentro de seu nariz Ele absolvia aquela fragrância com sofreguidão, tal como buscava no espaço o ar que o mantinha vivo:

— Ana, me diga alguma coisa. Por tudo quanto é sagrado. Eu te amo. Eu te amo desde...

Ana Flor colocou sua mochila de lado, tomou as mãos dele entre as suas. Num gesto inesperado, pegou a flor que ele roubara e a colocou nos cabelos:

— Eu também te amo, Eduardo. Sempre o amei. Mas tinha medo...

Um novo sorriso inundou seu rosto e ela então deixou fluir o que igualmente sentia:

— Achava que você me faria à corte... mas você só me seguia... me dava esperanças, me vigiava na loja... Eduardo, eu também te amo.

Tomou fôlego e com a mesma empolgação, completou:

— Claro que aceito ser a sua namorada, sua esposa, mulher, mãe de seus filhos... preciso dizer mais alguma coisa?

O céu inteiro veio abaixo. Eduardo, por dentro, parecia que se detonaria por inteiro no segundo seguinte. Fez-se em lágrimas de contentamento, as mãos tremeram, o coração bateu mais forte, a alma disparou em festa, seus medos, receios... Ana Flor o abraçou. Naquele trocar de sensações a radiosa selou todos os temores e receios de Eduardo. Desta feita, foi a vez dela em tomar a iniciativa. Um beijo apaixonado, longo, sem pressa, envolvente e vulcânico se entrelaçou na troca de salivas. Abraçados no calor daquele momento, a emoção, falou mais alto. O AMOR, FINALMENTE, VENCEU.     

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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