Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali era diferenciado, lotado de singularidades.
Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava atrás de nós. Ou melhor, de Renato.
Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono?Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer, não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto, chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso notávamos.
Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas agruras da vida, não latia em momento algum. Também não era afável; a relação deles não envolvia carinho baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre um animal e seu dono.
Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse, sofresse o que fosse. Que tipo de relação estoica era aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos cardos e abrolhos da vida, que jamais davam demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro – como se atraíam naquele nível sobrenatural?
Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.
Para que você tenha uma perfeita ideia, quando brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e possivelmente de mais alguém naquele ponto...
Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara – pois ele não era desses, ele não era do comum dos cachorros – senti um baque que não podia entender. O estranhamento de alguma forma nos vinculara.
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
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