GOVERNAR
Os garotos da rua resolveram brincar de governo, escolheram o presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos.
— Pois não — aceitou Martim. — Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança. Januário será meu ministro da Fazenda e pagará o meu lanche.
— Com que dinheiro? — atalhou Januário.
— Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do governo.
— E que é que nós lucramos com isso? — perguntaram em coro.
— Lucram a certeza de que têm um bom presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente.
— Assim não vale. O presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens.
— Eu sou o presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser presidente é moleza? Já estou sentindo como este cargo é cheio de espinhos.
Foi deposto, e dissolvida a República.
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HISTÓRIA MAL CONTADA
A história de Chapeuzinho Vermelho sempre me pareceu mal contada, e não há esperança de se conhecer exatamente o que se passou entre ela, a avozinha e o lobo.
Começa que Chapeuzinho jamais chegaria depois do lobo à choupana da avozinha. Ela vencera na escola o campeonato infantil de corrida a pé, e normalmente não andava a passo, mas com ligeireza de lebre.
Por sua vez, o lobo se queixava de dores reumáticas, e foi isto, justamente, que fez Chapeuzinho condoer-se dele.
Estes são pormenores da versão da história, ouvida por tia Nicota, no começo do século, em Macaé. Segundo ali se dizia, Chapeuzinho e o lobo fizeram boa liga e resolveram casar-se. Ela estava persuadida de que o lobo era um príncipe encantado, e que o casamento o faria voltar ao estado natural. Seriam felizes, teriam gêmeos. A avozinha opôs-se ao enlace, e houve na choupana uma cena desagradável entre os três. O lobo não era absolutamente príncipe, e Chapeuzinho, unindo-se a ele, transformou-se em loba perfeita, que há tempos ainda uivava à noite, nas cercanias de Macaé.
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IDÍLIO FUNESTO
A maior tristeza de Gregório era não entender a língua dos sapos brasileiros, que ele sabia ser muito rica em expressões idiomáticas, e particularmente aberta a efusões amorosas.
“Se eu aprendesse um pouco das finezas da língua deles”, lastimava-se, “seria o mais afortunado dos amantes, além de brilhar em tertúlias, pelo pitoresco de minha conversa. Mas dos sapos sei quase nada, e as mulheres não parecem dispostas a conceder-me seus favores por esse mínimo que adquiri passando noites em claro à margem do brejo.”
Um sapo condoeu-se de sua ignorância específica, e prometeu dar-lhe aulas intensivas por duas semanas, findas as quais Gregório se tornaria conversador cintilante e conquistador irresistível.
Mas o sapo não nascera para professor, e tudo se turvou na cabeça do aluno, que aprendeu apenas a coaxar, sem modulação nem sintaxe. Ganhou apelido de “Sapinho” porque era de porte reduzido. Renunciou à convivência humana e foi morar em frente ao brejo. Numa noite de luar, uma rã escutou sua algaravia, apaixonou-se por ele, e foram viver juntos. Os sapos, indignados, mataram-no. A rã admite que fez mal em se deixar seduzir por erros de linguagem: imaginara estar ouvindo um português mavioso.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.
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