sábado, 31 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 424

 



Arthur de Azevedo (O Lencinho)


O Juvêncio, explicador de matemáticas, era um homem lúgubre.

Nunca ninguém o viu rir, nunca ninguém lhe apanhou a expressão do olhar através dos óculos escuros.

Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida.

Trajava sempre de preto e usava chapéu alto.

Era distraído e parecia estar sempre vagando pelos intermúndios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos.

Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vão assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas toilettes, o explicador Juvêncio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicação no Catete. Era à hora de mais afluência. Os lugares eram conquistados à força de agilidade e destreza.

O explicador Juvêncio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvêncio, que era um viúvo positivista, não tinha olhos para a porção mais bela da humanidade.

No banco em que ele se sentou estavam três cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porção de capitosos perfumes.

O banco da frente estava ocupado por uma família: três elegantes senhoritas, acompanhadas pela mãe, que poderia passar pela irmã mais velha.

As três senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio.

Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se.

No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mão, foi cair - vejam que fatal casualidade! - foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvêncio.

Este, que ia entretido a ler um livro de matemáticas, não deu absolutamente pela coisa.

As cocottes riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caíra para entregá-lo à dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvêncio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atenção para o lenço.

O que se passou então foi extraordinário. O explicador Juvêncio disse consigo: - Quando me hei de corrigir das minhas distrações? Pois não é que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha.

Depois, tirou o chapéu à cocotte, dizendo:

- Muito obrigado, minha senhora - e continuou a ler imperturbavelmente.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 12


Aquela fronte sofrida,
que na cruz, tanto sofreu,..
Por ser a essência da vida
está viva e não morreu!
- - - - - -
As rendas da cor de neve,
na areia branca a brilhar...
São versos que o vento escreve
das ladainhas do mar!
- - - - - -
A todo instante eu tropeço,
ergo-me e fico sem jeito;
na dor da queda é que eu meço
a fé que existe em meu peito!
- - - - - -
Canta, velho sino, e espanta,
a dor que canta em teu peito,
que a dor que em meu peito canta
espanto do mesmo jeito!
- - - - - -
De que valem nossos laços,
arranjos lindos, perfeitos...
Se esses nós de teus abraços
ao por do sol, são desfeitos?
- - - - - -
Desde minha tenra infância,
seguem-me por onde eu for...
Os gritos da mendicância,
por meus pedidos de amor!
- - - - - -
Do amor, eu não me desfaço,
nele, a vida se agasalha...
Pois para o amor, sobra espaço
no meu casebre de palha!
- - - - - -
Esquece as mágoas pequenas,
e as grandes, torna a esquecer;
diante de Deus, nossas penas,
são dons do nosso viver!
- - - - - -
Eu vi num pobre andarilho,
a paz no rosto de alguém!
Honra e pobreza, meu filho,
é o que pouca gente tem!
- - - - - -
Mãos dadas! sempre juntinhos
curtindo os dias risonhos...
Quando formos dois velhinhos,
quem curtirá nossos sonhos?
- - - - - -
Meus poetas pirilampos,
um contraste nos conduz;
Uns, são luzes pelos campos;
o outro, sem campo e sem luz!
- - - - - -
Minha casa é uma surpresa;
é simples, do teto ao chão...
Se faltar pão sobre a mesa,
sobra amor no coração!
- - - - - -
Na infância, mamãe rezava,
à tarde, por devoção,
enquanto a gente jogava
bola de gude e pião!
- - - - - -
O homem deixa cicatrizes
por todo canto que passa,
trocando as horas felizes
por minutos de desgraça!
- - - - - -
O ocaso, que me seduz,
é o mesmo que me entristece,
quando a tarde apaga a luz,
puxa a cortina e adormece!
- - - - - -
O pai, que aconselha o filho,
ante a dor que fere o peito...
Mostra que o amor tem mais brilho,
depois de um sonho desfeito!
- - - - - -
Percebo em tuas retinas,
minha eterna flor de lís...
O olhar de duas meninas,
num ser que me faz feliz!
- - - - - -
Pondo em meus pés, teus espinhos,
e a tua cruz sobre as costas...
Rasguei velhos pergaminhos
com perguntas sem respostas!
- - - - - -
Por ironia ou por terdes
falso orgulho, é que, no entanto,
Há nos vossos olhos verdes
perpétuas gotas de pranto!
- - - - - -
Preso ao lar que não é dele,
canta o poeta passarinho
a dor, do pranto daquele,
que canta longe do ninho!
- - - - - -
Saudade - que me incendeia,
toda noite, que surpresa!...
Se apago a luz da candeia
sua chama fica acesa!
- - - - - -
Se amar é o gesto mais nobre
que a vida ensina e nos diz,
no amor, é que se descobre
um jeito de ser feliz!
- - - - - -
Se o tempo, desgovernado,
apaga tudo que alcança...
Por que poupar o passado
que apagou minha esperança?
- - - - - -
Sigo-te amor, fielmente,
e aprisionado aos teus laços,
como é leve esta corrente
quando estou preso em teus braços!
- - - - - –
Só depois que a idade avança,
o homem, já curvo e cansado...
Enxerga a luz da esperança
no olhar de um crucificado!
- - - - - -
Velho andarilho, na estrada,
tangendo o passo miúdo;
na mochila, quase nada,
no coração, quase tudo!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Miopia)


Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma bênção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.

Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.

Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da linguiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um dia, me contou.

Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios famintos!

Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.

- Sr. visconde, que é isso? - exclamou, rubra, a esposa do ministro.

A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:

- Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que estava aqui, a meu lado?

E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos o pince-nez, lamentou batendo na testa, com a mão espalmada:

- Maldita miopia!... Maldita miopia!...

E escanchou a bicicleta no nariz.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 423

 


Folhetim de Trovas “Copaíba” n. 1 outubro 2020 (Baixe grátis)

 
Em seu conteúdo:
 
O que é Copaíba.
 
Um breve resumo sobre Campo Mourão.
 
Trovas de trovadores de Campo Mourão, do Paraná e de outros rincões.
 
Concursos de trovas com inscrições abertas (atenção, que  um se encerra hoje, dia 30, outro amanhã e dois dia 5 de novembro)

Para ler o Folhetim, baixe para seu computador em pdf, no link
https://drive.google.com/file/d/16bXF4fHyZBTaqNq_k4w2VdFMmsWvNuTg/view?usp=sharing

Leon Eliachar (Um Nome Qualquer)


Encontraram-se depois de mais de dez anos:

— Afonso!

— Hermenegildo!

Abraçaram-se três vezes seguidas, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Lembra-se do Rogério?

— Lembro.

— Morreu a semana passada.

— Coitado.

Conversaram a mesma conversa que conversam os que não se veem há muito tempo:

— Que tens feito?

— Lutando. E você?

— Levando a vida.

Quando deram por si, estavam tomando cafezinho em pé, como fazem sempre os que não se veem há muito tempo:

— Você está mais gordo.

— E você, mais magro.

Foram andando, parando, relembrando incidentes pitorescos, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— E aquele mergulho no rio, atrás do internato, lembra-se?

— Se me lembro, quase você morre afogado.

— E foi você quem me salvou, nunca esqueci.

Pararam num ponto de ônibus pra se despedir, ficaram batendo papo mais de meia hora, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Você casou?

— Casei. E você?

— Mais ou menos. Estou com uma zinha aí mas ela é casada.

— Você nunca quis nada com o casamento, hein, malandro?

— Com essa até que eu casava.

— Como ela é?

— Baixotinha, gordota, tem um sinalzinho no rosto, mas eu gosto dela assim mesmo.

Afonso ficou apreensivo:

— Como é o nome dela?

— Cláudia.

Afonso ficou mais curioso:

— Ela tem filhos?

— Dois. Um menino de quatro e uma menina de três.

Afonso só faltou pedir o retrato pra ver, mas não teve coragem. Apressou a despedida:

— Bem, tenho de ir andando, estou atrasadíssimo.

Tomou o ônibus, foi direto para casa. No caminho, foi pensando: “Cláudia… dois filhos… um menino de quatro… uma menina de três… baixotinha… gordota… um sinalzinho no rosto…” era muita coincidência. Quando entrou em casa, só faltou arrancar a porta. Lá estava a mulher no meio da sala, com os dois filhos, baixotinha, gordota, com um sorriso na cara deste tamanho:

— Chegou cedo hoje, hein, Afonso?

Ele estava tremendo de ponta a ponta, quando perguntou:

— Diz depressa o nome de um homem.

— Como?

— Depressa, diz um nome de homem. Um nome qualquer.

Ela nem teve tempo de pensar:

— Hermenegildo.

Ele chegou a cambalear, foi preciso segurar no vão da porta:

— Quem diria, hein?

Sua mulher não entendia nada:

— Mas o que foi, Afonso? Está sentindo alguma coisa?

Ele foi categórico:

— Estou sim.

— Está sentindo o quê?

Ele arreganhou os dentes:

— Estou sentindo ódio de mim mesmo, por ter salvo aquele desgraçado. Devia ter deixado ele morrer afogado.

Cláudia caiu de bruços e como caiu, ficou, inteiramente desacordada.

O médico disse que era normal.

Estava esperando o terceiro filho.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Baú de Trovas XIX


 Meu lar, embora modesto,
é um ninho de beija-flor,
com dois filhotes travessos,
pelos quais morro de amor!
ADAÍS COSTA CARVALHO
- - - - - -
Solidão, indiferença...
tudo é ontem para mim!
Só a saudade é presença,
presença que não tem fim!...
ANGELA SARMET
- - - - - -
Ouve a súplica serena
de minha alma que te diz:
- num simples beijo, morena,
tu me farias feliz!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Peço a Deus que teus encantos
se conservem sempre assim,
mas rogo a todos os santos
que não te esqueças de mim.
FRANCISCO PIMENTEL
- - - - - -
Beijo tantas, tantas vezes,
teu retrato, meu amor,
que o tenho há bem poucos meses
e já vai perdendo a cor...
FRANKLIN COUTINHO
- - - - - -
Como a estrela matutina
de uma aurora colorida,
tens sido a luz peregrina
nas noites de minha vida.
GAMALIEL BORGES PINHEIRO
- - - - - -
Tua carta colorida,
que eu guardo, perdeu a cor...
Mesmo assim, teve mais vida
que as tuas juras de amor.
GERALDO GUIMARÃES
- - - - - -
Você me olhou, nos olhamos,
e nós dois então sorrimos.
Nada mais, nem nos falamos,
mas, no peito, o que sentimos!
GODOFREDO CARDOSO
- - - - - -
Que ideia maravilhosa:
— transformar Nosso Senhor
cada mulher numa rosa,
e fazer-me beija-flor!
GUIMARÃES BARRETO
- - - - - -
A tua alma quanto é bela
só Deus sabe, além de mim:
— eu porque hoje vivo dela,
Deus por tê-la feito assim!
HEITOR BELTRÃO
- - - - - -
Riquezas, tenho-as sem conta,
pois, crê, de nada preciso.
Basta-me o sol que desponta
nas manhãs do teu sorriso...
HELENY DE MORAES SIQUEIRA
- - - - - -
Este bem consolador
é minha felicidade:
ter presente o teu amor
no milagre da saudade.
HÉLIO C. TEIXEIRA
- - - - - -
Em minhas longas viagens,
dispenso livros, porque
gosto de ler, nas paisagens,
a saudade de você.
HÉLIO GARCIA DE MATTOS
- - - - - -
Nossa Senhora das Dores,
aos meus amores, fazei
que se convertam em flores
os dissabores que dei.
HÉLIO NOGUEIRA
- - - - - -
Na vida há céus constelados
e cardos pelos caminhos...
— E há poetas deslumbrados,
pondo estrelas nos espinhos!...
IRACI DO NASCIMENTO E SILVA
- - - - - -
Por mais humilde que for,
de viver jamais se cansa
quem tem no peito um amor
e, na vida, uma esperança!
IRENE DE ARAÚJO MONZON ABRIL
- - - - - -
Saudade de um ser amado,
que foi e não voltou mais,
cura-se com o beijo dado
nos lábios de outro rapaz!...
IVANISE LOBO TRINDADE
- - - - - –
Se os olhos teus eu tivesse,
sempre os traria cerrados,
— que olhares ninguém merece
dos teus olhos encantados.
IVO DOS SANTOS CASTRO
- - - - - -
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam!...
J. G. DE ARAÚJO JORGE
- - - - - -
Tu podes me desprezar
com teu orgulho medonho,
mas não podes evitar
que sejas minha no sonho!
J. MONTE LOPES
- - - - - -
Vai, barqueiro, na bonança,
sem temores da procela,
que Deus solta uma esperança
quando desliza uma vela!
JACINTO DE CAMPOS
- - - - - -
Este silêncio que instala
esta quietude entre nós
é a voz de tudo que fala,
sem ser preciso de voz.
JEFFERSON LEÃO DE ALMEIDA
- - - - - -
Quanto mais teu corpo enlaço,
mais padeço o meu tormento,
por saber que meu abraço
não prende o teu pensamento.
JESY BARBOSA
- - - - - -
"Bom dia", morena linda,
minha doce Ave-Maria!
O meu dia é noite ainda,
até que eu te dê "Bom dia"!
JOÃO FELÍCIO DOS SANTOS
- - - - - -
Numa alegria incontida,
sou bem feliz, porque ponho,
na taça escura da vida,
o claro vinho do sonho!
JOÃO RANGEL COELHO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Figueiredo Pimentel (O Peixe Encantado)


Roberto era muito trabalhador e serviçal. Sempre que alguém precisava dos seus serviços, prestava-os de boa vontade, sendo por esse motivo estimadíssimo toda a gente que o conhecia.

Tinha ele três filhas, cada qual mais bonita, principalmente a mais moça, de beleza extraordinária, chamada Marocas.

A pobre família vivia da pesca que o homem fazia todas as madrugadas, indo, durante o dia, vender o peixe pelas ruas da cidade próxima. O seu único sustento e de toda a sua numerosa família era a pesca. Parte da noite, até romper a manhã, Roberto passava pescando. Durante o dia, ia vender o peixe de casa em casa. À tarde tratava da canoa, das linhas e das redes. Feliz no seu negócio, trazia sempre a canoa cheia de peixes grandes e bons.

Um dia lançou a rede ao mar e nada trouxe. Lançou-a outra vez, e só vieram peixinhos peixinhos, que nada valiam.

No dia seguinte aconteceu-lhe o mesmo que na véspera. Deitou a rede diversas vezes; e, nada tendo conseguido, ia voltar para casa, desolado, pensando que naquele dia sua família não teria o que comer.

De súbito ouviu uma voz que partia do mar:

– Roberto, terás muito peixe, se me prometeres trazer o que avistares, assim que chegares à casa.

O pescador respondeu que daria, pois sempre chegava à praia, encontrava o cachorrinho de Marocas, que ia esperá-lo, latindo a saltando alegremente.

Tendo-o prometido, os peixes começaram a saltar para a canoa, e ele nesse dia obteve muito dinheiro com a sua venda.

De volta o pobre velho ia quase embicando à praia, contentíssimo por ter dinheiro para dar à família, quando ao olhar para a terra viu sua filha mais moça, Marocas, justamente aquela por quem tinha maior predileção.

Ficou desesperado, aturdido, triste, lembrando-se da promessa e chegando à casa contou à família o que se tinha passado.

Quando acabou de falar a menina respondeu:

– Meu pai, não chore por tão pouco. Eu vou e estou certa de que é para meu bem. Com certeza serei muito feliz, e demais minha família terá sempre com que se sustentar.

Roberto vendo como a filha se sacrificava por ele de tão boa vontade, ficou menos pesaroso. No dia seguinte, pela madrugada, embarcou com ela na canoa de pesca. Assim que chegou ao lugar onde ouvira a voz, as águas se separaram um pouco, e o pescador atirou Marocas, que desapareceu imediatamente.

Voltou para terra com a canoa cheia de peixes, sem ter sido preciso lançar a rede.

A moça foi ter a um palácio no fundo do mar, habitado pelo Rei dos Peixes, que fora quem havia falado ao pescador.

Encontrou aí tudo quanto lhe era necessário: salas e quartos mobiliados, vestidos riquíssimos e jóias de subido (exorbitante) valor. Entre essas jóias havia um anel de brilhantes, muito rico, com uma dedicatória feita pelo soberano dos peixes. Contudo, apesar de tudo isso, Marocas vivia tristíssima, porque não via pessoa alguma, principalmente os seus. O serviço da casa era feito por encanto, pois nunca vira um ser vivente no palácio, e os objetos estavam sempre em ordem.

Depois de já estar habituada àquela solidão, na noite, quando já estava deitada, a formosa Marocas ouviu ruído. Sentiu-se receosa, assustada, esperando ver entrar algum monstro, algum bicho que viesse matá-la. Sossegou, porém, ao ver entrar um enorme peixe, com uma coroa de ouro na cabeça. Era o rei dos Peixes. Entrou silencioso, quase sem fazer ruído, andando naturalmente em seco como se estivesse na água.

O rei entrou, e logo após saiu, aparecendo aos olhos deslumbrados da jovem um moço elegante e lindo, ricamente vestido à corte, com trajes de gala, que bem indicavam o seu nascimento real. Sempre calado, aproximou-se da moça e pôs-se a contemplá-la, enleado, maravilhado.

Marocas disse-lhe então:

– Príncipe, porque não vieste há mais tempo?

– Porque receei que, vendo um peixe tão feio, tivesses medo. Se vim hoje admirar tua beleza, foi porque julgava que dormias.

Desde esse dia, Marocas e o rei dos Peixes viveram juntos, completamente felizes. O serviço do palácio continuava a ser feito por encanto. O único ser vivo que a moça via era o Rei-peixe e sempre nessa figura.

Apenas uma vez, de sete em sete dias, deixava aquela aparência, para vir a ser o príncipe encantador, divinamente belo, que era em verdade.

Estavam casados havia já um ano, quando uma vez, Marocas lhe pediu, rogou, suplicou, insistentemente que a deixasse ir ver sua família.

– Podes ir, respondeu o príncipe, mas com a condição de só te demorares lá uma semana. Quando quiseres voltar, põe este anel no dedo, que imediatamente estarás aqui.

E deu-lhe um anel de aço.

A moça pôs num baú muita roupa e presentes que levou à família, e no dia seguinte quando o velho Roberto veio pescar, apareceu na canoa e foi com ele para terra.

Em casa ficaram todos muito alegres ao vê-la, e sua mãe e suas irmãs começaram a indagar como vivia ela; se estava satisfeita; se o noivo era bonito. Marocas respondeu que julgava que era, que não garantia, pois só via o príncipe de noite.

Lembraram-lhe, então, a conveniência de levar para o fundo do mar um pedaço de vela, para ver se o rei de fato era bonito. A jovem concordou. Ao sexto dia, chegando ao palácio, não dormiu à noite, esperando que o príncipe adormecesse primeiro que ela.

Assim que o ouviu ressonar, saiu da cama, com a vela acesa, e foi se certificar da beleza do noivo. Tendo porém, chegado a vela muito perto, deixou cair um pingo de sebo no peixe. Ficou trêmula de medo, receando que ele acordasse, e com o tremor, derramou mais outros pingos, os quais se transformaram em chagas.

O Peixe-rei acordou, sofrendo horrivelmente, e exclamou:

– Foste tu a causa destas chagas Se quiseres viver comigo, tens que me procurar num lugar muito distante daqui, chamado pico do Amor.

Assim que o peixe acabou de dizer essas palavras, desapareceu por encanto, e Marocas viu-se num lugar deserto, em meio de uma mata virgem.

Começou a caminhar muito triste; e, como estava fatigada, sentou-se debaixo de urna árvore, e ouviu esta conversa:

– O rei dos Peixes está muito mal e ninguém pode pô-lo bom, porque não sabem qual é o remédio necessário.

Disse outra voz:

– Nada mais fácil, basta apanhar três de nós, torrar-nos e colocar esse pó nas feridas.

Disse uma terceira voz:

– Ai de nós, se souberem disso!...

A moça levantou-se para ver onde estavam as pessoas que assim falavam. Ficou admirada quando viu três andorinhas, que conversavam no alto de uma árvore.

Armou um laço e apanhou-as. Imediatamente torrou-as, guardando cuidadosamente o pó.

Continuou a andar, até que chegou finalmente ao pico do Amor, por onde se entrava para o palácio do rei dos Peixes. Soube que ele estava quase para morrer e pediu que a deixassem falar com o rei, o que os criados não consentiram. Não desanimou. Insistiu outra vez, tanto, tanto, que conseguiu mandar-lhe um prato de mingau.

O príncipe começou a comê-lo, e quando pôs a segunda colherinha na boca, sentiu que havia um caroço misturado no mingau. Foi ver o que era, e reconheceu o anel que tinha dado à filha do pescador.

Ordenou que trouxessem a mendiga ao quarto e conheceu a moça. Dias depois já estava restabelecido, graças ao remédio das andorinhas que Marocas trouxera.

Voltaram ao Palácio do Mar apanharam todas as riquezas e foram morar em terra. Mandaram buscar o pescador Roberto e sua família, e casaram-se dias depois.

O príncipe desencantou-se de uma vez e nunca mais se transformou em peixe.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 422

 

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 2: O morto no caixão


DE VEZ EM QUANDO A GENTE precisa colocar em evidência a parte social da vida, ou seja, aquele eventual em que literalmente nos propomos a fazer um programa de índio, e por ser exatamente de índio, este nativo deverá literalmente surgir em cena paramentado, com tudo o que tem direito, como aldeia, arco, flecha, tacape, a borduna (clava), o chuço (lança) e etc, etc.

Com este pensamento, bem cotidiano à flor da pele, fomos acompanhar o amigo Varíola Pegajoso que havia perdido um parente e os funerais do falecido se daria logo cedo, numa bela manhã de um sábado radiante e apetitosamente convidativo à um banho de mar.

— Carretão — observou ele —, só vamos mesmo porque o cara era meu tio e acredito, minha tia ficaria deveras chateada se não me visse na hora do derradeiro adeus.

— Fique tranquilo, Varíola. Os amigos são para os momentos bons e ruíns. Saiba, desde sempre, estamos  junto nesta para o que der e vier.

— Tenho certeza que apesar do convite meio que esquisito —  observou ele, a certa altura — você irá gostar e quem sabe até se apaixonar ao ver uma prima minha, a Chiquinha do Catatau. Cara, um pedaço de mau  caminho!

Chegamos no ato fúnebre à hora exata em que o padre Bentão  celebrava a missa de corpo presente.

A capela estava lotada, com gente saindo pelo ladrão —  ladrão não, esta expressão é, sem dúvida alguma, uma modalidade vulgar e chula de falar, claro. O certo, seria, como de fato soa melhor, ‘com gente saindo à francesa’. Pois bem! O povo dava uma escapulida básica usando uma porta discretamente estratégica que desembocava para uma lanchonete com as iguarias mais apetitosas para um cemitério tido como o eterno Jardim da Paz.

Dona Canindé Formigão, esposa do ‘de cujus’, tia de Varíola Pegajoso, o rosto cerrado em transe, as vistas  derramadas à bom chorar, mostrava em meio às lágrimas, um par de olhos vermelhos como dois tomates recém colhidos. Apesar da imoderada dor ingente que a consumia, eles não deixavam de revelar o fulgor da sua juventude.

A triste senhora se fazia acompanhar de familiares próximos, entre os quais, Jericó, seu filho mais novo e, ao lado dele, um pedacinho engalanado de um aconchegante futuro promissor vestido numa saia azul celeste, com todos os tropeços que a vida ofereceria a quem tivesse a sorte e o prazer de cair nas graças daquela beldade.

De fato, neste ponto, o Varíola Pegajoso não medira esforços para descrever a belíssima prima Chiquinha do Catatau. A  exuberante fazia jus à fama que o meu amigo houvera feito de seu conjunto dos caracteres exteriores, figura extraordinariamente admirável e pecaminosamente infernal. Nos aproximamos a ponto de (à certa altura) nos juntarmos aos aparentados, quase a tropeçarmos nos regozijos que emanavam da bela Chiquinha Catatau.

O sacerdote, tecia comentários elogiosos sobre  o extinto e, exatamente naquele momento da nossa chegada, ele apregoava, à alta voz,  o seguinte:

— Estamos diante de um grande homem, dono de um coração magnífico, excelente pai de família, bom marido, católico incondicional, amigo de todas as horas, vizinho exemplar e colaborador assíduo da nossa humilde paróquia. A isto, acrescentaríamos um primoroso trabalhador ‘pau pra toda obra’ e peremptório cumpridor de seus deveres...

Foi nesta sequência da esparramação dos elogios, que a viúva  cutucou Jericó num cochicho vapt vupt. Toda a igreja, ainda que não quisesse, captou e fez escancarar as bocas cheias de dentes (e as banguelas também) irmanadas num Oh! retumbante e espantado, doido e único, ao tempo em a cônjuge varoa soltou o que parecia estar engasgado em sua garganta:

— Jericozinho, meu filho se aproxime ali do caixão de seu pai, discretamente...

E completou, sem mais delongas:

— Veja, estou pra lá de aperreada. Perceba, minha agonia. Confesso a você, com todo este rol  de mesuras e rasgação de sedas que o padre Bentão está trazendo à baila...

— Mas por que isto agora, mamãe?

— Filho meu, com toda certeza, quero crer estamos todos aqui velando o defunto errado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Isabel Furini (Poema 21) Escrever

  

Luiz Damo (Trovas do Sul) XIII


Água pura tem faltado,
lagos em estagnação,
nem o peixe foi poupado
de tamanha poluição.
- - - - - -
Através do sofrimento
também podemos crescer,
tão valioso ensinamento
é o que tem a oferecer.
- - - - - -
Cedo, sentimos saudade,
das coisas belas da vida,
fontes de tranquilidade
lembrando a paz já vivida.
- - - - - -
Conte um conto alegremente,
cante um canto de louvor,
sente e sinta lentamente
ressurgir novo valor.
- - - - - -
Dá-nos a força, Senhor,
pra podermos divulgar,
tua mensagem de amor
para quem necessitar.
- - - - - -
Dependem da preferência
todas nossas decisões,
umas com total prudência
outras sem as convicções.
- - - - - -
Estão nos primeiros passos
os segredos da vitória,
longe de quaisquer fracassos
descrevemos nossa história.
- - - - - -
Jamais se sinta culpado
de algo que não cometeu,
pois, pode ser perdoado,
se do mal se arrependeu.
- - - - - -
Não subornes a verdade
pois, dela dependerá
a força da liberdade
que sempre te guiará.
- - - - - –
Num encontro surpreendente,
bem antes da integração,
o desejo mais latente
talvez seja a interação.
- - - - - -
Num mundo controvertido,
pela vida, nós lutamos,
num semblante pervertido
pouco brilho constatamos.
- - - - - -
O desgosto de perder
não gere dor ou lamento,
muito pior é vencer
sem qualquer merecimento.
- - - - - -
O lar que não tem crianças
é como um jardim sem flores,
ao lar faltava esperanças
e ao jardim as nobres cores.
- - - - - -
O mundo nem sempre ensina,
o homem como deve andar,
aprende com disciplina
e um constante caminhar.
- - - - - -
O sino no alto das torres
num apelo às orações,
convida seus oradores
a umas breves reflexões.
- - - - - -
Os peixes vão se tornando
artefatos de ficção,
uns até se transformando
em bichos de estimação.
- - - - - -
Por menor que seja a dor
sentida por um doente,
é sempre confortador
ter a família presente.
- - - - - –
Primavera exuberante
refletindo tantas cores,
eterniza cada instante
no aroma das suas flores.
- - - - - –
Quando nos palcos, alguém
tudo promete fazer,
escutando, siga quem
lhe fizer sem prometer.
- - - - - -
Quem caminha quer buscar
algo traçado na mente,
mesmo às nuvens a ofuscar
não desiste, segue em frente.
- - - - - -
Se não chovesse, seria,
um deserto permanente,
vegetação não teria
e sequer algum vivente.
- - - - - –
Se hoje somos ambiciosos,
amanhã, nunca rivais,
uns dos outros respeitosos
porque à lei somos iguais.
- - - - - -
Sempre que for necessário
pelos mares navegar,
trace bem o itinerário
e aonde pretende chegar.
- - - - - -
'Se o conselho fosse bom
ninguém dava, mas vendia'.
E se fosse a solução
problemas ninguém teria.
- - - - - -
Se quiser frutos colher
não se canse de esperar,
deixe a planta florescer
pra depois frutificar.
- - - - - -
Sob a sombra da ignorância
a inveja senta e descansa,
espelhada na arrogância
rompe qualquer aliança.


Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Roberto Melo Mesquita (A Língua Portuguesa)


A Língua Portuguesa é um instrumento facilitador da organização do pensamento. Quem possui o conhecimento da estrutura da língua, tem plena consciência do que diz e automaticamente pensa melhor. A Língua é como a roupa: usa-se conforme a ocasião.

A variação linguística ainda é considerada um tabu entre os próprios professores de português. E o que mais me incomoda nessa questão é o conceito irreal de que temos uma “unidade linguística no Brasil”. A verdade é que esse tabu prejudica em muito o avanço à construção da nossa educação. É preciso reconhecer a grande diversidade do português falado pelos nossos irmãos brasileiros por esse Brasil afora.

Somos mais de 210 milhões de falantes, marcados por variantes e não por uma língua comum, única, sem diversidades. Estamos vinculados a uma série de fatores de ordem geográfica, econômica, de escolarização, de faixa etária que influenciam fortemente nessa diversidade. E aptos a entendermos que, quando falamos em Língua Portuguesa, estamos falando de uma unidade que se constitui de muitas variações: diatópicas (nacionais e regionais), diacrônicas (de uma época para outra), diastráticas (de um grupo social para outro), diafásicas (de uma situação para outra) e diamésicas (de uma modalidade – oral – para outra – escrita).

Se uma pessoa usar em sua fala expressões como “fósfro”, “home”, “trabaiá”, “môio ingrês”, a maioria vai achar, inclusive professores, que ela está falando errado.

Com o emprego dessas expressões, somos levados a abordar apenas as variedades diatópicas e diastráticas, que por sua vez, se estendem sobre a linguagem urbana e a linguagem rural. Aqui é que aparecem os dialetos ou falares regionais. E é neste momento que me permito fazer uma incursão ao nosso dialeto caipira, sempre tão bem estudado por Amadeu Amaral e muito bem representado por Cornélio Pires como nos lembra a estudiosa professora Durce Gonçalves Sanches. Cornélio coletou inúmeros dizeres caipiras. Já Amadeu estudou linguisticamente esse fenômeno.

Assim, em “Nóis vai, nóis vorta, o preço do ônibo é o mesmo” vale a pena marcar o “r” retroflexo tão característico de região definida por isoglossas como sendo “região do dialeto caipira”. Já em “Faiz mar, tomá banho de mar?Num faiz; é só tomá cuidado com o sar, por causa do sor”, temos uma expressão marcada como “apenas fenômeno no dialetal” e não como erro. É o caso de “Sarta da carçada, sordado marvado, que lá vai porva".

Daí, concluirmos que "se uma pessoa usar em sua fala expressões como 'fósfro', 'home', 'trabaiá', 'môio ingrês', a maioria vai achar, inclusive professores, que ela não está falando errado". Lembrando que, enquanto os gramáticos (normativos) lidam com erro e acerto, os linguistas trabalham com adequado e inadequado.

O brasileiro de uma forma geral tem camuflado o preconceito racial. Nesse momento, temos de lembrar sempre que, na linguagem, são refletidos não apenas a maneira de pensar e a evolução dos acontecimentos, mas também os preconceitos e tabus sociais. A função social da linguagem é permitir a compreensão entre os membros de uma comunidade. Muitas vezes a palavra exata é constrangedora em determinados momentos, usando-se então uma expressão atenuadora, o eufemismo. O ato de roubar, por exemplo, é nomeado de acordo com a posição social do sujeito que o pratica. O gerente desvia o dinheiro. Já o marginal assalta o banco.

O prestígio da linguagem das classes sociais elevadas é enorme, pois a maneira de falar de um superior sempre parece a nós invejável e se apresenta como símbolo de uma vida suposta como ideal. Os hábitos linguísticos vindos do que a sociedade considera inferior são sempre desdenhados — seja pela região geográfica, seja pela classe social.

Os usos procedentes do Centro-Sul, do eixo Rio-São Paulo são logo socializados. Seu padrão de vida é tido como invejável e imitável, além de exportado pela TV para todo o país.

Segundo pesquisas, apenas 26% das pessoas entre 15 e 64 anos são plenamente alfabetizadas, isto é, têm domínio das habilidades de leitura e escrita. Essas pesquisas nos deixam muito preocupados. Mas a vida continua e queremos que a nossa educação melhore. Então, a escola precisa aprender a desenvolver nos alunos habilidades e competências, no seu processo de ensino-aprendizagem. Aprender a focar a formação acima da informação, transformar o aluno em cidadão participante consciente. Fazer com que ele desenvolva a capacidade de raciocinar, de interpretar, de interferir na realidade, de resolver os problemas do dia a dia. Ao construir o próprio conhecimento, a partir da observação, da manipulação, da pesquisa, da análise, o aluno vai vivenciar o conceito ao invés de recebê-lo pronto. Vai internalizar, chegando com mais profundidade ao conhecimento. A escola ainda há de realizar um currículo com conteúdos contextualizados, próximos da realidade do aluno, e trabalhados de maneira interdisciplinar, em conteúdos interligados.

E é bom que se diga que o domínio da leitura e escrita é fundamental para o aprendizado em todas as disciplinas. Ensinar a ler e a escrever é tarefa de toda a escola e não só do professor de Língua Portuguesa.

Fonte:
Língua e Tradição

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 421

 


Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 11



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor

Fernando Sabino (O Ricochete Telefônico)


“Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.”
Carlos Drummond de Andrade


TIRO o fone do gancho e uma voz me pergunta:

— Quem está falando?

Isso é que é eficiência — ainda nem disquei!

— Você. Não falei nada.

Desligo e tento de novo. Desta vez vou obtendo logo um sinal de ocupado, antes de discar.

O que eles querem é que eu desista. Não adianta, sou teimoso como uma mula.

Mais uma tentativa — desta vez não acontece nada.

Pois então vamos ver quem tem mais paciência.

Deixo o fone fora do gancho e vou cuidar da vida. De vez em quando volto para dar uma escutadinha.

Nada.

Ao fim de dez minutos, ganho a parada: obtenho uma linha.

Só que é daquelas que continuam tocando depois que a gente disca.

Então está bem.

Consigo outra. Novo sinal de ocupado depois de discar o número da estação.

Estou progredindo.

Com diabólica obstinação me submeto à provação do ricochete telefônico, ou seja, a sequência de insólitos fenômenos auditivos que faz do completamente de ligação uma loteria nem sempre esportiva:

— Eu gostaria de esclarecer umas dúvidas.

— Pois não. Com muito prazer.

— Sinal de ocupado antes da hora?

— Sobrecarga de chamadas. Congestionamento na estação.

— Aquela linha boba que não pára?

— Defeito no equipamento. O jeito é tentar outra.

— Chamada que não se completa?

— Sobrecarga.

— Número errado o tempo todo?

— Defeito.

Quando não é sobrecarga, é defeito. E aquele sinal de ocupado que vem depois que a gente liga, pensa que me enganam? Aquele sinal é falso, não está ocupado coisa nenhuma.

— Só nas novas estações acontece isso.

— E nas outras?

— Não acontece nada.

Estou falando com um representante da Companhia Telefônica Brasileira, da seção de Relações Públicas, para esclarecer umas tantas coisas. Pelo telefone, depois de meia hora de tentativas. Ele não falou propriamente assim, estou resumindo: foi amável, interessado e convincente, Quando soube que eu pretendia escrever sobre o assunto, se dispôs logo a colaborar. Disse que a CTB não estava tentando livrar a cara, pelo contrário: é a primeira a reconhecer que o sistema é deficiente e está procurando melhorá-lo. Por exemplo: este ano vão inaugurar novas estações, a partir de abril — uma por mês. O que quer dizer que haverá menos sobrecarga. Outras providências que estão tomando reduzirão os defeitos.

Mantivemos uma instrutiva conversa de quase uma hora, durante a qual não aconteceu nada: nem linhas cruzadas, nem ruídos (ou música, como costuma acontecer), nem queda de ligação, como se diz hoje em dia, quando a chamada pifa. Ao fim, eu estava satisfeito: conseguira falar ao telefone. Agradeci e desliguei. Não sem antes defender uma velha tese minha, segundo a qual uma das maneiras mais eficientes de melhorar os serviços telefônicos seria incentivar a utilização dos Correios e Telégrafos.

“Telefonavas, telefonavas”
Manuel Bandeira


Reconheço publicamente que sofro da síndrome de Graham Bell. Doença terrível no Rio de hoje — a dos maníacos como eu, que não podem passar sem um telefone: tornei-me sério candidato a uma temporada de cura e repouso no Pinel.

— E a linha cruzada?

— Contato nos cabos. Quando chove penetra umidade no cabo, e dá linha cruzada.

É o serviço telefônico mais barato do mundo: permite participar da conversa de uma porção de gente ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.

— Quantos telefones tem no Rio?

— Tem 12 aparelhos para cada 100 pessoas. Não pode se comparar a Washington, por exemplo, que tem 98, ou Nova York, que tem 60.

Não estou comparando, estou só perguntando:

— E quantos entre estes cem podem falar ao mesmo tempo?

— Vinte e cinco.

Considerando-se que estarão falando com outros 25, já são 50 — nada mal.

— Que acontece se os cem resolvem falar ao mesmo tempo?

— O sistema entra em colapso.

Como costuma acontecer quase toda tarde. (Dizem que a culpa é do jogo do bicho.) Tenho um amigo que conseguiu se livrar dos que o importunavam pelo telefone, pedindo que o chamem sempre entre cinco e sete da tarde.

“Meu telefone agora vive mudo
E o dela sempre em comunicação.”
Fox-canção de Orestes Barbosa


— E os macetes que o carioca inventou para conseguir ligação?

— Não adiantam nada. Bater no gancho para conseguir linha é sair do princípio de uma fila e entrar no último lugar. Prender o disco, forçar a sua volta, discar devagar ou depressa, acrescentar mais um algarismo — nada disso adianta. Tem gente que acredita até em discar com a mão esquerda para dar sorte. Ou com o dedo mindinho, sei lá.

— Conseguir telefonar ainda é uma questão de sorte?

— Mais ou menos: aumentou o número de usuários de maneira assustadora, fazendo com que o problema continue grave, apesar das melhorias.

Quer dizer que, tudo considerado, o serviço piorou porque o sistema melhorou.

— Para terminar, uma última pergunta: por que será que basta discar um número errado para que atenda sistematicamente uma alemã malcriada, de sotaque carregado?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) III


CONSELHOS

Não odeies um pobre que mendiga,
que ao mendigo, na mesa falta o pão;
é que Deus abençoa a mão amiga
que entre os trapos, se humilha e estende a mão!

A humildade suprema não castiga,
e oferece conselho a cada irmão;
prova sempre do pão, que alguém mastiga,
quando é feito da massa do perdão!

Abre as mãos, ergue os braços, cerra os punhos,
que entre os ecos da vida há mil rascunhos
de conselhos de amor pedindo paz...

Que os que guardam rancor dos infelizes,
ficam neles, profundas cicatrizes,
entre as marcas, que o tempo não desfaz!
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GRATIDÃO

Não maldigo da vida os atropelos
e nem posso do tempo ter desgosto;
devagar vai pintando os meus cabelos,
pondo riscos de rugas no meu rosto.

Passa a vida e no espelho posso vê-los,
e aceitá-los assim, estou disposto,
quanto é bom contemplar meus brancos pelos,
mas confesso, um pouquinho a contragosto.

São sinais estes meus cabelos brancos,
certamente, de muitos solavancos
que o capricho da vida me deixou...

E eu feliz igualmente a um beduíno,
corro atrás do fantasma do destino
que o feitiço do tempo me levou!
****************************************

INQUIETUDES

Vim pedir-te Senhor, de olhos abertos,
ante as luzes de velhos castiçais,
que os meus sonhos de amor, sejam libertos,
das algemas dos sonhos irreais!

Meu temor é o de ter sonhos incertos,
e entre sombras e anseios tão fatais,
os meus sonhos se tornem tão desertos,
que eu não sonhe contigo nunca mais!

Cada sonho na vida é um breve instante;
muitas vezes, de paz, de amor constante,
e, outras vezes, também cego e sem luz...

No altar-mor, como é bom que Cristo veja,
nós dois juntos, no altar da mesma igreja,
ajoelhados aos pés da mesma cruz!
****************************************

MÃOS

Esses traços, que tens em tuas palmas,
nessas mãos tão sensíveis, sem temores,
podem ser traços vindos, de outras almas,
entre as almas febris de outros valores!

Por favor, joga fora esses teus traumas,
vem comigo depressa e esquece as dores,
vamos juntos curtir, nas horas calmas
os prazeres da vida entre os amores!

O que eu quero é prender-me nos teus laços,
ser escravo da cruz dos teus abraços
entre as cruzes das mãos que sempre quis...

Se os teus dedos das mãos são tão audazes,
sem meus dedos, jamais serão capazes,
de escrever esses versos que te fiz!
****************************************

SAUDAÇÃO À CAPISTRANO DE ABREU

Capistrano de Abreu, grande arquiteto,
que, no mundo das letras, floresceu.
Maranguape, seu berço predileto,
foi a terra da luz, onde nasceu!

Nessa terra sagrada ele cresceu
foi um autodidata tão completo,
que no mundo da história, o que escreveu,
usou todas as tintas do alfabeto!

Ninguém pode esquecer que Capistrano
exaltou Maranguape, ano após ano,
berço eterno do altar de tanta glória.

Capistrano de Abreu virou poema
e entre os beijos eternos de Iracema
beija e abraça os portais de nossa história!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Proparoxítonas)


Há dois tipos de palavras: as proparoxítonas e o resto.

As proparoxítonas são o ápice da cadeia alimentar do léxico.

Estão para as outras palavras assim como os mamíferos para os artrópodes.

As palavras mais pernósticas são sempre proparoxítonas. Das mais lânguidas às mais lúgubres. Das anônimas às célebres.

Se o idioma fosse um espetáculo, permaneceriam longe do público, fingindo que fogem dos fotógrafos e se achando o máximo.

Para pronunciá-las, há que ter ânimo, falar com ímpeto - e, despóticas, ainda exigem acento na sílaba tônica!

Sob qualquer ângulo, a proparoxítona tem mais crédito.

É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.

O inclinado e o íngreme.

O irregular e o áspero.

O grosso e o ríspido.

O brejo e o pântano.

O quieto e o tímido.

Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.

Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.

Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.

É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.

Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.

Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.

(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)

Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.

É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.

O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.

Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.

Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.

O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.

Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.

O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a esse círculo do vernáculo – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?

Fonte:
Facebook Língua e Tradição

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 420

 



Olivaldo Júnior (O Aluado)


Conheci o aluado há muito tempo. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Morava num galho de árvore, na beira do rio. Comia os frutinhos que a mata lhe dava. Era um homem de mais ou menos trinta anos, pele escura pelo sol, olhos negros pela noite, com fiapos de luar em seus cabelos, tão sujinhos de memórias. Não falava nossa língua. Aliás, já não falava. Dizem que ficou assim depois de ter amado.

Não sei, mas o amor pode mesmo machucar. Não, o amor não. A paixão. A senhora dos corações humanos, ainda mais que o amor, esse bálsamo que os anjos de quando em quando deixam cobrir nossas feridas, a paixão é o que nos fere, muitas vezes mortal e irremediavelmente, sem dó. Assim estava ele, o aluado, em permanente estado apocalíptico, pós-paixão.

Conheci há muito tempo o aluado. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Hoje, os olhos dele são meus olhos quando o vejo, tenho o tal em minha vista. Canta, cantarola em língua própria seu hinário, de dor, de amor, de andor. Não sei se o perco de vez na escuridão, se lhe dou a mão para subir, não sei o que fazer. Hoje é lua cheia. Do edifício das estrelas, São Jorge desce e quer levá-lo. Ave, Maria, cheia de garças, levai o Homem a ser ave! Posso, da vista de casa, avistá-los. O aluado não quer ir, mas São Jorge insiste e ele vai. No dorso do cavalo branco, guerreiro, perdendo a guerra em paz, o aluado vai morar no Céu, enfim.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Carla Rejane Silva (Ritmo Desacelerado)

Andei por caminhos tortuosos em busca da paz.
 
Nessa jornada encontrei somente pedras e espinhos. Muitas vezes repousei minhas angústias e tristezas.  Quantas lágrimas sentidas derramei em vão  por esse mundo de Deus  afora. Foram tantos os percalços que perdi a conta. Na verdade penso que chorei por mim, por você,  ou melhor, por nós.
 
Hoje, nesse sacolejo da vida perene, ando devagar, sem pressa de chegar. Meus passos até pouco tempo eram rápidos, diminuíram com o passar dos anos. Meu coração que outrora batia descompassado, desordenado, descomedido, e despropositado, como numa dança sensual, hoje já não sustenta o mesmo ritmo.
 
Não podia ser diferente. Juntos “eu e Ele” passamos por muitas batalhas, tanto fisicamente como emocionalmente. Meu corpo idem, coitado, carrega grandes cicatrizes, marcas indeléveis que a vida sem piedade fez questão de deixar emaranhadas. Marcadas como um troféu dentro de mim...
 
Fui forte, me fiz guerreira. Lutei bravamente minhas guerras, como se o porvir nunca viesse a existir. Uma briga árdua com meu “eu” interior travei desordenadamente por anos infindáveis. Houve momentos, é bem verdade, que cheguei ao limite do desespero total, da angústia mórbida e da infelicidade. Quase desisti do meu desafortunado destino.
 
Porém, sempre segui em frente, mesmo com a alma em frangalhos, meu interior bagunçado, meus sonhos rasgados, mormente como um farrapo jogado ao léu. Meus pés descalços e calejados em face do caminhar por vias perdidas da vida confusa. Minhas mãos, hoje, enrugadas pelo sol e deterioradas pela chuva, apesar disso continuo seguindo... Seguindo...
 
Obtive algumas vitórias, verdade seja dita, muitas por excelência.  Também conheci o doce amargo das derrotas consecutivas infligidas a mim, todavia, consegui chegar aqui nesse lugar onde me encontro agora. E sinto, vejo como é bom e gostoso, repousar nos braços do sossego das minhas rugas... Sentir a maciez dos meus cabelos brancos...  

Apesar das vistas cansadas, me sinto completamente imersa, tranquila dentro de mim. Com a certeza absoluta que estou em paz comigo, com meu coração e principalmente, com a minha consciência e vida simples.

Fonte:
Carla Sonhadora (facebook)

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 5


A DESVENTURA É UMA ESCOLA...

Ao meu médico e amigo Dr. Francisco Gugliotti

A Desventura é uma Escola, ..
Curso de Aperfeiçoamento...
Dá Serenidade à alma,
e ao coração — sentimento...

Tenho vários companheiros
na minha infelicidade;
Inquietação, Incerteza,
mais o Silêncio e a Saudade…

O silêncio é doce amigo;
tenho-lhe grande amizade.
Mas dos outros não gostei.
Principalmente a Saudade…

A Saudade é implicante,
tem jeito dissimulado...
 Não sendo amiga da gente,
vive sempre ao nosso lado...

A desventura é uma Escola,
nem útil, não nego não...
Mas quem dera que chegasse
o dia da "Colação"...
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AO CREPÚSCULO

No meu quarto a brisa sopra
e a lâmpada rodopia…
O crepúsculo se insinua
bem de leve... Finda o dia...

Toca o Rádio... É Beethoven
numa triste melodia...
No meu peito sinto leve
agulhada, fina e fria…

Eu tão moço! Que tristeza!,..
E esta doce melodia,
a avivar minha incerteza
neste triste fim de dia!…
****************************************

CULPEM A VIDA...

"Deixa a tristeza de lado,
este tom sempre magoado,
de um Tempo que já morreu...
Este lirismo, hoje pobre,
do poeta Antônio Nobre,
de Casimiro de Abreu..."

…Mas nunca tem culpa a gente,
da vida que se viveu…
Eu não quis ficar doente...
Nem fiz o Destino meu...

Os meus versos são apenas,
reflexos de minhas penas,
o que eu já sofri enfim;
se lembram Nobre um momento,
culpem ao meu sofrimento,
à minha Dor... não a mim!…
****************************************

DESÂNIMO

Então é o fim? Ou fugirei ainda
de tão horrendo leito — a sepultura!?
Se aqui há tanto sol, e a vida é linda,
mais dói esta partida prematura…

E esta constante dúvida não finda:
"Meu Deus eu morrerei? Eu terei cura?"
Não é justo colher a flor que ainda
há de ser fruto, — a vida não madura…

Quase sempre nós temos um ideal;
e em sua busca tenho sido um forte!
Porém agora a luta é desigual,

e eu temo muito pela minha sorte!
Pois sei que é bem traiçoeiro este meu mal
e é sorrateira muito mais a morte...
****************************************

PERSISTÊNCIA

Se hoje, até velhos castelos,
bombas podem arrasar,
quanto mais os meus castelos
arquitetados no ar!...

Porém, por mais que estes dias,
sejam cruéis, intranquilos,
por mais também que os destruam,
tornarei a construi-los…
****************************************

POBRE LUIZ!

E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

…Quem sabe se ouço a voz desse soldado,
que eu vejo — com o olhar cheio de mágoa
perdido no Deserto ensolarado,
a pedir, quase morto, um pouco d'água!?

... Quem sabe se ouço a voz dessa velhinha,
que lá de sua tão longínqua terra,
pensa no filho e reza — coitadinha! —
para que acabe bem depressa a guerra!?...

...E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

…Quem sabe se ouço imprecações de Dor,
gemidos ou tremores de receio,
ou o barulho estranho de um motor,
de algum soturno avião de bombardeio!?

…Quem sabe (e eu a pensar sinto a mão fria!)
você, amor, que vive tão distante,
julga talvez que estou em agonia,
e pensa em mim agora nesse instante!?...

...E nessa agitação, nesse abandono,
sinto que alguma coisa de anormal,
me faz perder completamente o sono...

E amanhã, quando então sair, já dia,
de face branca e com olhar bem fundo,
hei de escutar, em frases de ironia,
a voz tola e inconsciente desse mundo:
"Se não deixar de vez esta boêmia,
verá bem cedo seu tristonho fim!"
"Sempre trocando a noite pelo dia,
vai muito mal, vai muito mal assim!"
"Está tão magro e pálido o infeliz!"
"Estas noites perdidas em orgia!
Pobre Luiz!"
— Oh! sim, pobre Luiz...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Contos e Lendas do Mundo (Entre as Rosas)

Era final de inverno...

Mais um ano havia passado e não se chegara a nenhuma conclusão.

Os partidários das diversas facções, dia após dia, perdiam-se em longas e intermináveis discussões sobre esta ou aquela candidata, sem chegarem a um consenso.

Decantava-se a beleza da papoula, as qualidades das alfazemas, o perfume dos cravos, as virtudes de pureza e humildade de lírios e violetas.

Tudo em vão. Num canto despretensioso do mundo, onde as espécies vegetais cresciam silenciosamente, um pequeno arbusto travava sua luta diária pela sobrevivência, alheio a toda sorte de discussões.

Conformada com sua forma tosca, retorcida, prenhe de espinhos pontiagudos e consciente de que nunca alcançaria a beleza de um dente-de-leão, acostumara-se a ser desprezada e humilhada, sem no entanto deixar de prestar atenção nas pequenas criaturas que dependiam de sua existência para sobreviver.

A elas dedicava a sua vida, emprestando a segurança de seu tronco e ramos para abrigar insetos das chuvas e ventanias.

Era feliz, pois, se não tinha a beleza, tinha a utilidade, e isso lhe bastava.

Naquela manhã fria de final de invernia, ainda não totalmente desperta da noite, a plantinha rude viu despregar do céu uma linda estrela cor de prata. Sorrindo, acompanhou-lhe a trajetória em arco perfeito pelo céu escuro, descendo, descendo, em direção à floresta ainda adormecida. Era tão suave e linda aquela forma que, instintivamente, todos na floresta: árvores, arbustos, pássaros e flores, acordados pela luz repentina, curvavam-se para vê-la passar.

A estrela flutuou entre sorrisos, agradecendo a simpatia da floresta, até chegar perto do arbusto cheio de espinhos.

Aproximou-se lentamente da plantinha e falou-lhe docemente.

- Não te inscrevestes na eleição da rainha das flores, por isso vim pessoalmente buscar-te.

– Mas, senhora - gaguejou a planta - eu? Como posso aspirar a ser rainha de qualquer coisa, não vês o quanto sou feia?

- O Senhor da vida ordenou-me que viesse buscá-la.

- Se este é o seu desejo, aqui me tens, senhora.

E partiram em um rastro de luz, na direção do conselho das flores.

As demais candidatas riram-se da pretensiosa intenção daquele feio arbusto.

A plateia silenciou quando entrou no ambiente a primavera, anunciada pelo som de mil clarins.

O arbusto, espantado, reconheceu a estrela que a trouxera até ali.

- Então, senhores conselheiros - questionou a primavera - o Senhor da vida deseja saber se já encontraram a legítima representante de Seu reino!

- Não, senhora. Estávamos para decidir-nos, quando fomos interrompidos pela vaidade dessa planta sem qualidades que aí está. Veja! Quanta ousadia!

A primavera voltou-se para a plantinha que chorava de vergonha e humilhação e perguntou:

- O que mais desejas nesta vida?

E a planta respondeu entre lágrimas.

- Amar e ser amada.

A primavera, então, tocou os galhos espinhosos e, logo, botões surgiram dos galhos seminus, abrindo-se em mil pétalas sedosas, de perfume inesquecível.

– Qual é o teu nome? - perguntaram todos.

- Eu sou a Rosa.

Moral da Estória:
Quando o amor tocar os espinheiros do mundo, as rosas brotarão em cada alma.

Fonte:
Universo das Fábulas

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 419

 


Daniel Maurício (Poética) 7

 

Lygia Fagundes Telles (Então, Adeus!)


Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro:

— Vejo que aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: – Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos… Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.

— Volte sempre — pediu-me.

— Impossível — eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia… — acrescentei sem nenhuma esperança.

— E então, até logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.

Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?… “Então, adeus!”, ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma ideia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!…

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.

— Até logo! – eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.

Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”

Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.

Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.

— Boa noite!

Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.

— Que coincidência… — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer.— Eu não esperava vê-lo… tão cedo.

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.

Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho…”

Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:

— Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?

Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.

— Ah, não sei… Antes eu sabia, mas agora já não sei.

Fonte:
Figuras do Brasil. 80 autores em 80 anos de Folha. SP: Ed. Publifolha. Folha de São Paulo.