A mulher louca é alvoroçada, é leviana, e não avalia o mal que pratica.
Davi, 9,13.
Há muito passava da meia-noite. A originalíssima noitada carnavalesca promovida pelo rico e nobre James Dudeney transcorria com um brilho incomparável. Nos quatro salões do palácio, luxuosamente ornamentados, reinava uma atmosfera de estonteante alegria e rara beleza. As orquestras vibravam sem cessar as saltitantes músicas americanas. De quando em vez eu sentia sob os pés, ao caminhar, um verdadeiro tapete de confetes e serpentinas. As fantasias mais custosas e mais exóticas desfilavam diante de meus olhos deslumbrados. Príncipes, rajás magníficos, duquesas com adereços de brilhantes e damas medievais (com seus chapéus vermelhos guarnecidos a ouro) faziam curioso contraste com piratas, espanholas, ciganas (com remendos em requinte de pura seda), camponesas turcas, gladiadores romanos e chineses. Havia ali figuras que evocavam todas as épocas da história e lembravam todos os climas do mundo.
Uma jovem, em esplêndida fantasia de Cleópatra, acercou-se de mim. Trazia os cabelos negros presos por fita prateada; as mangas de seu vestido eram listradas. Sob a gola, também listrada, de sua blusa, rebrilhavam fios de pérolas. Pompeava brincos de fantasia e pulseiras largas de ouro e esmalte. Fazia-se acompanhar, num requinte de luxo, por uma “escrava” de rosto bronzeado que agitava um grande leque de plumas brancas.
— Não danças? — perguntou-me, entreabrindo os lábios num sorriso encantador.
E rematou em tom brejeiro:
— Há pouco tive a impressão de que fugias de mim!
— Receio o ciúme de César! — respondi, tentando um galanteio de sabor histórico.
— Ora, ora — replicou amável, com seu belo e claro sorriso. — Pelo que vejo, estás esquecido das glórias de teu povo. Os árabes, sempre audaciosos e invencíveis, conquistaram e dominaram o Egito.
— Sim — concordei sem hesitar. — Bem sei que os árabes conquistaram o Egito. Mas essa incrível proeza só foi possível num século em que a irresistível Cleópatra não se achava mais no trono. Diante da graça e da beleza os árabes não vencem. São vencidos!
Aquele inofensivo diálogo com a rainha do Nilo foi interrompido com a súbita chegada do pecunioso James Dudeney, dono da casa. Ostentava modelar fantasia de Hamlet. A presença do milionário fez com que a sedutora Cleópatra se afastasse, seguida de sua não menos sedutora “escrava”.
— Preciso de teu auxílio, meu amigo — disse-me Dudeney em voz baixa, com ar preocupado. — Tenho a impressão de que se acha em nosso baile de hoje um convidado indesejável. Estou na dúvida. Não sei como agir no caso.
— Aponta-me o folião sobre o qual recaíram as flechas de tuas suspeitas — retorqui.
— É o xeique da faixa azul!
Eu já havia, realmente, atentado na figura soberba e distinta daquele cavalheiro que se exibia, entre os convivas de Dudeney, sob o disfarce de impecáveis trajes orientais. Duas ou três vezes, inspirado pela voz do meu sangue, levara as lentes da minha atenção sobre o pseudo muçulmano.
— Ali está ele — acudiu Dudeney, já impaciente, meio nervoso. — Repara!
O suspeitoso xeque, cujo rosto a máscara preta velava, aproximara-se vagaroso e ficara imóvel ao lado de um grande espelho, os braços cruzados, numa atitude discreta e nobre. Um albornoz de seda clara repousava-lhe comodamente sobre os ombros fortes. Cobria-lhe a cabeça belo kafié (1) branco com listras azuis, preso na altura da testa por finíssimo agal trançado de ouro e prata. Apertava-lhe a cintura uma faixa azul de onde pendia riquíssima espada toda cravejada de marfim.
— Sinto-me indeciso — tornou Dudeney. — Não sei o que devo fazer. Aquele homem tem um ar misterioso. Pretende passar por um árabe autêntico, pois na lista dos convidados é indicado por um nome tipicamente islamita. Repara, meu caro Hank. O nosso hóspede não conversa, só fala o árabe; não bebe; não dança; caminha de um lado para o outro observando com cuidado especial as damas mais formosas. A presença de um aventureiro iria empanar o brilho desta festa. O xeique da faixa azul será um árabe de verdade?
— Ser ou não ser, meu caro Hamlet — respondi, parodiando Shakespeare —, ser ou não ser! Vou apurar a verdade e deslindar todo esse mistério.
Acerquei-me do xeique, saudei-o muito amável e disse-lhe em puro idioma árabe:
— Hal lazem lak chay? (Deseja alguma coisa?)
Respondeu-me em tom delicado com um sorriso fino, exprimindo-se com absoluta correção:
— Mannoum! Ma lazem li chay. (Obrigado! Nada desejo no momento.)
Convidei-o cordialmente a ir comigo até a biblioteca. Ficamos a sós, e o xeique, num gesto de apurada elegância, arrancou a máscara que lhe cobria o rosto. Notei que se tratava de um homem relativamente moço e simpático. E, sem preâmbulos, assim falou:
— Percebi que minha presença nesta reunião carnavalesca despertou suspeita em Mr. Dudeney. E com toda a razão. No meio da brilhante sociedade que aqui se recebe, sob este acolhedor palácio, sou eu o único, digo-o com certa vaidade, que não se acha fantasiado.
— Como assim?
— Nada mais claro. Estes trajes com que me apresento diante dos convivas de Mr. Dudeney são aqueles que eu costumo vestir, nos dias de gala, quando em minha tenda, para além de Dareyn, (2) recebo os xeiques amigos para festejar o aniversário do Profeta ou o término do Ramadã. A roupa que ostento não é, pois, uma fantasia como julgam. É uma realidade.
— O senhor é, então, um xeique de verdade?
— Até onde esse título pode honrar um homem. O meu nome é Hassan el-Bourini ibn-Taufiq. Sou natural de Cham, mas tenho propriedades até em Tell Abou Jezid, onde as tâmaras são menos abundantes do que as lendas.
Interroguei-o mais uma vez com intransitiva curiosidade:
— E veio a esta festa especialmente para admirar a alta sociedade de Londres?
— De forma alguma — discordou, em tom muito grave, o xeique. — A minha presença nesta encantadora reunião tem um fim todo especial, um objetivo bem estranho: descobrir o paradeiro de uma joia roubada. Cabe-me, neste baile, entre serpentinas e canções brejeiras, realizar uma tarefa de caráter rigorosamente policial.
A intempestiva declaração do xeique caiu sobre mim como uma bola de ferro sobre um copo de cristal. Sentia-me despedaçado. Observei muito sério:
— Sou amigo íntimo de Mr. James Dudeney. Peço-lhe, portanto, meu caro xeique Hassan el-Bourini ibn-Taufiq, que esclareça todos os pontos obscuros desse mistério. Asseguro-lhe, sob palavra, que se a justiça do caso estiver do seu lado, o senhor terá completo apoio neste palácio. A joia roubada será apreendida e o criminoso entregue à polícia.
Depois de acender lentamente o seu cigarro, o xeique, ao cabo de breve pausa, narrou-me o seguinte:
— Quando cheguei a esta capital, vindo de Damasco, fui apresentado a uma certa sra. Hopkins, esposa de opulento industrial de Manchester. Vendi a essa senhora, por solicitação de um joalheiro sírio, precioso colar de pérolas no valor de 1.500 libras. Recebi anteontem chamado urgente da sra. Hopkins. Fui procurá-la e encontrei-a enferma em consequência de um abalo cardíaco. Contou-me a boa senhora que o colar, por mim vendido duas semanas antes, havia sido roubado. Perguntei-lhe se havia levado o caso ao conhecimento das autoridades. “Nada fiz nesse sentido”, respondeu-me. “Meu marido, por motivos políticos, quer evitar o escândalo. O colar foi roubado a uma de minhas filhas.” E a sra. Hopkins inquiriu-me aflita: “O senhor seria capaz de reconhecer o colar roubado?” Declarei que poderia apontá-lo no meio de mil. Aquelas pérolas de um colorido especial, azul poente, eram inconfundíveis. Eu as tivera em minhas mãos durante mais de dez anos! “Pois bem”, tornou a sra. Hopkins. “Tenho certeza de que a pessoa autora do furto irá ao baile, no palácio de Mr. Dudeney, com o meu colar. Já fiz com que todas as pessoas de minhas relações fossem avisadas de que me encontro impossibilitada de sair. Obterei para o senhor um convite para essa reunião. É um grande favor que lhe peço. Compareça fantasiado a essa festa e investigue; observe tudo. O meu colar estará presente e será facilmente encontrado!”
O xeique fez ligeira pausa e logo retomou o fio da narrativa:
— Aqui vim, portanto, em atenção ao pedido da sra. Hopkins. Longa e cuidadosa foi a investigação a que procedi. A princípio temi fracassar. Revestido de muita força de ânimo, não me deixei envolver pela onda desta perdulária alegria. Aproximava-me das damas não para admirar a beleza dos olhos, a alvura dos braços bem torneados, mas sim para apurar a legitimidade dos colares e certificar-me do colorido das pérolas.
— E conseguiu descobrir o colar da sra. Hopkins? — indaguei num ímpeto.
— Sim — confirmou serenamente o xeique. — Já o encontrei. Enfeita o gracioso pescoço de uma das jovens mais bem fantasiadas…
— A bela Cleópatra?
— De forma alguma. Essa “egípcia” formosa apresenta-se com três colares, é verdade, mas todos três mais falsos do que os antigos deuses dos faraós. Certifiquei-me de que o colar da sra. Hopkins está com uma graciosa princesa hindu…
— A princesa do turbante cor-de-rosa?
— Precisamente. Deve ser esposa de riquíssimo marajá, pois carrega na testa uma estrela de rubis do Oriente.
A situação devia ser enfrentada com a maior serenidade. A dama (a princesa hindu, do turbante cor-de-rosa), acusada tão gravemente pelo xeique, era a própria esposa de meu amigo James Dudeney, o dono da festa.
Disse, pois, um tanto desconcertado, ao xeque Hassan ibn-Taufiq:
— Esse caso será esclarecido. Precisamos, porém, agir com a máxima delicadeza. Se a sua denúncia tiver o cunho da verdade, o colar será apreendido e, dentro de 24 horas, restituído à sua dona legítima. Peço-lhe mil desculpas.
Redarguiu o xeique:
— Diante de sua declaração, nada mais tenho a dizer. Dou por finda a minha espinhosa missão nessa casa tão alegre e acolhedora. Vou partir imediatamente. Queira apresentar a Mrs. e Mr. Dudeney as minhas homenagens e os meus agradecimentos. Uassalã! (3)
Conduzi o ilustre xeique até a porta do palácio e observei ainda quando ele tomou o carro que o devia levar até o hotel. Ao voltar, esbarrei, na escada, com o animadíssimo Dudeney.
— E então? — interrogou-me, tomando-me pelo braço. — Que pretendia o xeque?
— Nada — respondi, improvisando uma mentira qualquer. — Um sonhador! Queria descobrir aqui, no meio dos nossos convidados, uma odalisca que ele conhecera, casualmente, no palácio do sultão em Istambul!
Dudeney argumentou, agitando os punhos:
— Logo vi! Uma fantasia do xeique!
No dia seguinte, o colar foi entregue à sra. Hopkins e a verdade do caso até hoje ficou em segredo.
O nobre e generoso Dudeney, na sua boa fé, de nada desconfiou. Evitei que ele tivesse insanável desgosto ao saber do roubo do colar. Jamais poderia pairar sobre o meu bom amigo a menor sombra do ato delituoso.
Que culpa pode, realmente, cair sobre um homem digno e honrado que casa com uma jovem cleptomaníaca?
As palavras do sábio encerram a grande verdade: a mulher louca é alvoroçada, é leviana e não avalia o mal que pratica.
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NOTAS
1 kafié – peça de vestuário.
2 Dareyn – pequena povoação, na Síria.
3 Uassalã! – é uma forma de despedida usada pelos árabes.
Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.
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terça-feira, 20 de outubro de 2020
Malba Tahan (A Fantasia do Xeique)
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