quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Sammis Reachers (Os Primeiros Livros [e Enciclopédias] a Gente Nunca Esquece)

Se não todas as pessoas, pelo menos a maioria das que são letradas possuem uma história com o livro. Essa história pode ser breve ou longa, mono ou multilogal, a depender da quantidade e qualidade dos livros - entendendo qualidade não pelo redundante valor literário, mas pelo impacto que determinado livro possa ter causado naquela alma.

Em meu caso, a história começa na formatura da alfabetização (hoje Pré-Escola), ao ganhar meu primeiro livro: A Tartaruga Infeliz - fato devidamente registrado (e como lembraria?!) por uma prosaica fotografia 10x15. O título do opúsculo quelônio (quelônio é a ordem das tartarugas, jabutis e cágados) foi de mau augúrio: queimou de melancolia o futuro leitor e poetastro...

Mas, pensando bem, definir "primeiros livros" é difícil, pois havia em minha casa paterna uma pequena quantidade deles, e sabe-se lá qual daqueles possa ter sido adquirido tendo a minha pessoa como alvo primário... Exempli gratia, tínhamos pequenas coleções com jeitinho de enciclopédia, assim, querendo, já quase sendo, mas sem ser, sabe? Uma delas era a Saber em Cores (Enciclopédia Didático Visual), de 1975, publicada pela Maltese/Melhoramentos. Belas ilustrações e informações hiper resumidas, mas que me deram o primeiro contato com grandes nomes da Literatura, artes plásticas, além de noções de geografia e ciências. Hum, mas não sei se foi adquirida antes ou depois de meu nascimento (78). E não eram enciclopédias de fato...

Enciclopédia, essa coisa hoje anacrônica, naftalinado ônibus (bonde?) do Conhecimento, surgiu como ideia onde surgiram a maioria delas (as boas ideias), na Grécia antiga. Mas o modelo nosso conhecido é mais recente, do séc. XVIII, filha dos esforços dos franceses d’Alembert e Diderot, por isso mesmo chamados de enciclopedistas.

Passemos então à minha primeira enciclopédia, minha mesmo e enciclopédia mesmo, de fato e direito. Era uma Conhecer, editada pela Abril Cultural, no longínquo 1966, contando com reedições várias. A princesa me chegou usada, como doravante a maioria de livros que me atravessaram a ânima e as manoplas. Na altura de uns 11, 12 anos, corria a brincar de pique-esconde na pequena favelinha onde meio que me "criei", na verdade uma única rua de média extensão formada por algumas casas humildes e até alguns barracos. Algumas casas ainda possuíam o quintal aberto, sem muros. A favelinha era a Beira Rio, que possuía tal nome justamente por... beirar um pequeno rio (o Anaia ou Alcântara ou outros nomes, pois a cada trecho tal rio assume um nome, enquanto percorre meio município de São Gonçalo), que o tempo transformou em valão. Na ânsia de esconder-me, entrei por um desses quintais abertos, que era composto por quatro casinhas, quando o titular do terreno, um negro simpático que trabalhava na cidade de Niterói como porteiro, dito Quiquinho, me chamou, lotado de sorrisos, e mostrou aquela maravilha. Como ele, que só me conhecia de vista na rua, adivinhara que eu era a presa certa, eu nunca soube. A tal maravilha, como eu poucas vezes (brevemente na biblioteca escolar) havia contemplado parecida, teve sobre minha curiosidade um efeito estonteante, catártico.

Fascinado, desliguei-me da brincadeira e mergulhei naquele esplendor - sim, pois a Conhecer contava não com fotos, mas com ilustrações primorosas em praticamente cada uma de suas grandes páginas. "Gostou?", sorria o vendedor de ocasião. "Peça a seu pai para comprar pra você. Diga para ele vir aqui falar comigo. Como essa, há outras dez, olha ali" - e apontou-me para a estante capenga que se escorava numa parede de tijolos nus de seu casebre.

Corri para casa. Perturbei seu Mário que, entre um trago e outro de cachaça (naquela época ainda bebia), consertava na varanda dos fundos máquinas de escrever e mimeógrafos. Perturbei e perturbei, até que ele resolveu ir até lá. Era também a seu modo um amante dos livros, e comprador regular das tais coleções pretensamente enciclopédicas, que nos idos eram vendidas de porta em porta por colportores ou mascates. Bom negociador - arte em que inutilmente tentou a vida inteira me iniciar - seu Mário sempre foi. Conversa vai, choro vem, e lá fomos nós para casa com aquela riqueza, aquela internet de papel (da qual faltou um volume), a Wikipédia possível em fins da década de 80. Nos anos seguintes, aquela enciclopédia foi devorada e sacramentou minha excursão pelo sendero luminoso das sabenças.

Hoje o tesouro, o tesauro das enciclopédias de papel esboroou-se: A Britannica deixou de ser impressa em 2012. Sem mágoas, por favor: A Wikipédia, com seus contras e (a meu humilde ver, muitos) prós aí está, solapando com terabytes de informação uma geração abençoada, eleita, reluzente que nunca saberá do sacrifício que era necessário, pouco tempo antes de nascerem, para a aquisição de conhecimento. E nem sentirão jamais o peso físico de ter que carregar doze volumes duma enciclopédia!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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