Iara exultou ao ver as duas salas cheias de mantimentos, uma. A outra, de pacotes, brinquedos e roupas usadas, que prodigamente forravam as paredes até o teto envernizado.
Nos seus sete anos de existência, o "Lar da Tranquilidade" conquistara o apoio público de maneira bastante sensível. Neste ano, a mudança para moeda forte, vencidos os temores iniciais, tornara as pessoas mais confiantes, eufóricas e, consequentemente, mais dadivosas as bolsas.
O Natal rondava perto e logo começaria a faina das senhoras da sociedade, prontas para esquecer imperativos fúteis e empenhar as mãos no Banco Anônimo da Caridade Cristã.
O "Lar da Tranquilidade" abrigava, de um lado, velhinhos carentes que, no convívio com gente da sua idade, encontravam ouvidos pacientes para a troca de confidências, sobre dores e mazelas sazonais. No outro, crianças órfãs ou abandonadas.
Com um sorriso de íntima satisfação. Clara rememorou fatos que haviam precedido a fundação da entidade. Fora sua a ideia da formação do Lar beneficente. Ideia aprovada com entusiasmo pela maioria daqueles que lhe ofereciam apoio. Boa parte, entretanto, tivera de ser conquistada a duras penas e muita tenacidade, porque não poucos se opunham ao binômio velho-criança sob o mesmo teto, embora em alas distintas. Para Clara, valia tentar. O ponto é o começo e o fim de tudo. Infância e velhice, ainda que em campos opostos, tinham pontos afins. Nas voltas que o mundo dá, acabam por encontrar-se. Por quê, então, não colaborar para esse encontro? Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida! Velhos e crianças amam e precisam sentir-se amados. E por quê não atirar uns nos braços dos outros?! Sofisma?
Vencidas as barreiras, o projeto, por si, dera mostras de viabilidade.
O "Lar da Tranquilidade", há muito, deixara de ser mera expressão literária. Funcionava. E muito bem! Ganhara apoio incondicional e, cada vez mais procurado, abria os braços para a acolhida carinhosa. A ajuda da sociedade viera espontânea — chuva gratuita que vem e vai, deixando o campo preparado para nova colheita.
Contudo, como nada nesta vida é perfeito, embora as intenções sejam as melhores possíveis, a própria prosperidade ostensiva, acabara por incomodar. Não a quem dela gozava, evidentemente, por necessidade, mas, em particular, a quem pretendia apenas usá-la e dela tirar proveito.
O aprazível "Lar da Tranquilidade" não tardaria em atrair atenções dos que, ignorando a amplitude do seu alcance social, viam nele, tão somente, fonte rendosa de fácil acesso.
Aproximavam-se as festas natalinas e já marcada a distribuição dos donativos. Crescia a ansiedade de Clara e a daquelas mãos bondosas que a assessoravam na direção do estabelecimento.
Entre os abrigados, poder-se-ia dizer que só havia crianças. Os olhos cansados dos velhinhos tinham brilho especial que os igualava aos olhos da garotada que serelepeteava pela área interna do prédio, a espichar o pescoço para alcançar o beiral das janelas e bisbilhotar o interior das salas abarrotadas de presentes.
Naquela manhã, como sempre. Clara chegara de braços cheios sendo logo rodeada pelo alvoroço das crianças.
- Tia... Tia... deixa a gente espiar... só um "poquinho", deixa?
Clara fingia zanga, sentindo o coração explodir de felicidade!
— Nada disso... deixem de ser abelhudos. Falta só um pouquinho para o Natal! Quinze dias só! E, aí, vocês vão ver e pegar tudo aquilo a que têm direito. Está bem? Olhem lá os velhinhos. Eles não têm pressa. Sentadinhos, tomando sol e esperando, sem queixa nenhuma. Eles sabem esperar. Vocês precisam aprender com eles. E eles têm tanto a ensinar a vocês!...
A equilibrar embrulhos, Clara torceu a chave e entreabriu a porta, com cautela, evitando a curiosidade que a cercava.
Recuou de pronto, reprimindo um grito. Tudo vazio! Atônita, correu para outra sala. O mesmo! A história se repetia. Já vira esta cena uma outra vez! Sentiu-se também vazia por dentro. Era demais! Há dois anos, por essa mesma data, acontecera fato idêntico. Na surdina, os larápios haviam levado tudo o quanto puderam, deixando sua festa de Natal mergulhada no caos. As lágrimas saltaram incontroláveis, num misto de raiva e desapontamento. Desta vez, fora bem pior! Nada sobrara! Nadinha! As quatro operações completas! Somar e multiplicar, até que não fora tão difícil. Dividir, mais fácil ainda, que as mãos estendidas apareciam em profusão! Reconhecia que, subtrair, dentre todas, tinha sido a operação mais rápida! Numa só noite, os gatunos haviam dado conta de tudo!
Clara recusava-se a acreditar: — Outra vez, não! Não é possível, meu Deus!
O que fazer nos quinze míseros dias que precediam o Natal?!
A névoa da desolação abateu-se sobre o "Lar da Tranquilidade". Velhinhos e crianças perderam o brilho do olhar. Crianças ficaram menos crianças e velhinhos, ficaram mais velhinhos ainda!
Clara trancou o desespero entre as quatro paredes do quarto vazio. Não queria ver nem falar com ninguém. Saiu, pouco depois, decidida. Ao voltar, trazia consigo larga faixa de pano, que fez estender na parede frontal do prédio e que esclarecia em letras negras e gritantes:
"S.O.S.— Senhores ladrões: O "Lar da Tranquilidade" mantém velhinhos e crianças, apenas com contribuições. Somos pobres. Precisamos da ajuda de vocês. Ajudem-nos, por favor."
Alguns dias depois, nova surpresa. Abertas as portas, as duas salas estavam repletas de presentes. Pacotes de todos os tamanhos forravam as paredes suplantando o volume dos surrupiados.
O brilho voltou aos olhos e o riso novamente trouxe alegria àquela casa. O Natal do Tranquilidade foi, desta vez, verdadeiramente muito especial! Crianças de diferentes idades, várias com mais de oitenta anos, cantavam e cirandavam ao redor da Árvore iluminada.
No presépio, em Seu leito de palhas, o Menino-Deus sorria, ansioso por erguer-se e cirandar também com elas.
E, até hoje, não houve mais qualquer problema naquele Lar abençoado, a não ser a renovação anual da faixa, agora com apenas três palavras; "DEUS LHES PAGUE!"
Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
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terça-feira, 13 de outubro de 2020
Carolina Ramos (S.O.S.)
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