segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Fernando Sabino (O Falso Coronel)


SONHEI que ia por uma estrada sob a luz da lua, quando, a uma curva do caminho, dou com um casarão estranho, ares de mal-assombrado. No andar inferior podia-se ver através das janelas o que se passava lá dentro. A princípio me pareceu a mais desvairada orgia: corpos semidespidos ou completamente nus que se misturavam numa dança frenética, ou que rolavam pelo chão, engalfinhados. Logo percebi que eram loucos furiosos, aprisionados num hospício. Parecia uma visão medonha do próprio inferno.

Apavorado, eu já ia tratando de me afastar, quando surge à minha frente um sujeito enorme, que mais parecia um gorila: olhos dilatados; cabelos revoltos, mãos crispadas, braços estendidos para a frente como se estivesse para se abater sobre mim. Era, certamente, um louco fugido daquele hospício. Antes que ele me agredisse, todavia, ocorreu-me a ideia salvadora:

— Enquadre-se! — ordenei, numa voz de comando que não admitia vacilações: — Apresente-se ao comandante de sua unidade!

O louco imediatamente se perfilou, fazendo-me continência:

— Pois não, meu coronel.

Fiz-lhe também uma continência, já contendo o riso, e o vi dar meia-volta, para logo se recolher ao hospício de onde fugira. Não resisti mais e abri numa gargalhada. A essa altura minha mulher me acordou, assustada, perguntando o que se passava, pois me vira fazer dormindo uma continência e depois começar a rir ruidosamente, como um idiota.

Contei mais tarde o sonho a meu amigo Hélio Pellegrino e pedi que me desse, como psicanalista, uma interpretação. Ele não vacilou:

— Quer dizer simplesmente isto: o doido que existe em você é trazido num verdadeiro regime de disciplina militar, com exercícios de ordem unida e tudo mais. O diabo vai ser o dia em que ele descobrir que você não é coronel.

O doido que existe em mim. Em todos nós — inclusive no Hélio Pellegrino, no entanto mais sensato e equilibrado que muito coronel. O ser humano ainda não conquistou um mínimo de equilíbrio mental que justifique a sua pretensão de civilizado — nem sequer de ser racional, feito à imagem e semelhança de Deus. Perdeu no pecado a divina condição de sua origem. Perdeu tudo, menos a razão, como na célebre definição de Chesterton. Não passa de rei dos animais, com desdouro para o leão, na sua autêntica e incontrastável realeza. Basta um olhar ao redor, para nos certificarmos que é tudo tantã — como dizia aquele doido do programa de televisão. O único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra foi Jesus Cristo — e esse, como sensatamente dizia aquele outro doido, olhem só o fim que ele teve.

Basta observar este ser dos mais puros, na flor da sua inocência, que é uma criança. Se a criança é mesmo o pai do homem, então estamos bem servidos, porque menino e doido é a mesma coisa. Menino fala sozinho, rasga dinheiro, bota fogo na casa e acha sempre que tem um jacaré debaixo da cama,
 
O pior é que às vezes tem.

Pois então deixa eu dizer que o doido que existe em mim é o responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. Foi ele, este monstro oligofrênico de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados, que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou e se apaixonou e possuiu a mulher e lhe fez filhos. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa de força com que os mais velhos procuram conter o seu protesto. E é ele que dorme dentro de mim o seu sono cheio de pesadelos, pronto a despertar a qualquer momento para reivindicar o direito de ir aonde levem os seus passos e fazer ouvir o som inarticulado de suas palavras. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, é o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, santo e débil mental, soldado raso submetido ou beneficiado pela hierarquia dos privilégios, escravizado à férrea disciplina das conveniências, mas que um dia há de rebelar-se, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura ao descobrir enfim que nunca fui nem serei coronel.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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