quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Carolina Ramos (A Toalha de Natal)


Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses, por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal e retirá-la, uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário interromper o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto. Na maioria das vezes, bastava uma sacudidela e a fidalguia do linho estava pronta para receber as baixelas e louças especiais, os copos de cristal e os talheres reservados à época — tudo à espera do momento especial de exibir os exageros culinários, doces e iguarias a serem consumidas pela ruidosa família, reunida graças à ternura da data.

Naquela noite, porém, ao desdobrar a toalha, Yolanda não gostou da surpresa. A alvura do linho, magistralmente trabalhado com motivos natalinos, não se apresentava impecável como das outras vezes.

Na verdade, a cada ano, uma nova nodoazinha insignificante vinha somar-se às demais, que resistiam aos esforços das esfregadelas e à moderada ação dos alvejantes, sempre  empregados com muitíssima cautela. Não era difícil disfarçar essas pequeninas imperfeições, inevitáveis, adquiridas no decorrer do tempo. Bastava a oportuna providência de cobri-las, manhosamente, com um prato qualquer ou usar da cumplicidade elegante e insuspeita dos dois majestosos candelabros de prata que, além de iluminar e encantar os olhos, assumiam a nova função de disfarçar senões.

Desta vez, entretanto, era diferente. Como mascarar aquela feia mancha de vinho, fruto da taça partida por ocasião das núpcias da filha, no ano anterior?! Apesar de toda a persistência, a nódoa rosada insistia em derrotar esforços do afã de removê-la. E dizer-se que aquelas bodas — até pareciam mau agouro! — não haviam durado sequer um ano! Em dez meses, tudo consumado; casamento, viagem de núpcias pela Europa, desentendimentos, brigas, separação e divórcio! Dez meses apenas! Gente jovem não atura o que se aturava antigamente! Intolerância maior do que o amor? Ou amor menor do que o mútuo egoísmo? Sabe-se lá! A questão é que a mancha rosada ali estava a estigmatizar a alvura filial da toalha, jogando sombras sobre os brilhos natalinos.

Sem melhor solução, Yolanda mudou de lugar a bandeja de prata, que foi camuflar, satisfatoriamente a nódoa de triste memória.

Um suspiro doído veio-lhe do fundo da alma, traduzido num protesto; — Ah! filha... filha... por que tivera de escolher justamente a véspera do Natal para casar-se?! Um dia tão sublime, agora maculado pelo rompimento!

Desgostosa, empurrou para longe os maus pensamentos. Águas passadas não devem perturbar o fluxo do presente. Más lembranças devem ser enterradas, se possível, definitivamente.

Quanto à toalha, uma boa lavanderia resolveria a questão.

Assim que os ecos do "reveillon" se diluíram, cedendo espaço à euforia das novas esperanças, a toalha festiva veio de volta da lavanderia, outra vez imaculada, alva como alma de criança, passada e levemente engomada, dentro do maior requinte.

Yolanda não resistiu à tentação de comprovar a eficiência da tecnologia humana. Desdobrou cuidadosamente o linho, deslumbrada com o que via. Nem uma ínfima nodoazinha! Nem uma só mácula! Ninguém diria que aquela brancura de lírio já recebera desastroso banho de vinho, em não menos desastrosa noite de festa!

Testemunha das alegrias de tantos natais, a preciosa toalha parecia mais alva do que nunca! Até mesmo os bordados de tons vibrantes, estavam atenuados, o que já era um desperdício.

E foi aí que começou a tragédia: — Como num filme de terror, o linho rompia-se, esgarçado pela pressão dos dedos. A ação, nada criteriosa dos alvejantes, evidenciava-se.

Yolanda não acreditava no que estava acontecendo. A queridíssima toalha de Natal desfazia-se em trapos em suas próprias mãos!

Após o instante de perplexidade, o desapontamento e a raiva transformaram a estima em profundo desapego.

Vilipendiada, a toalha, tão querida, foi atirada ao lixo, sem a menor consideração! Fim de um ciclo tradicional de alegrias, esperanças e anseios. Tudo indelevelmente enrustido na página branca da velha toalha, agora descartada como imprestável.

Naquela mesma noite de janeiro, sem sinos, sem quitutes, sem magias natalinas, duas pequeninas mãos, ao vasculharem as latas de lixo adormecidas às portas dos casarões, encontraram a velha toalha rasgada, jogada fora com tanto desamor.

Chovia fino. Embora o verão fosse dono da noite, os braços do garoto pediam calor e aconchego. Aconchego de braços maternos, que desconhecia. Aconchego de calor diferente do calor da febre que o fazia tiritar.

Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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