sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Aparecido Raimunto de Souza (Parte Vinte e Dois) Empacotados.

Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
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UM

DOIS LITROS DE LEITE caminham pela calçada em acirrada conversa. Os ânimos dão a impressão de estarem exaltados. Mas não. É o modo como falam e gesticulam, que parece destoado dos demais que cruzam com eles.  

— Pois é, véi. Agora como bem pode ver, estou de visual novo.

— E daí? Que adianta isso? Eu sou pasteurizado, você não.

— Grande coisa! Eu não tenho nata, você tem.

— Em compensação, não preciso ser fervido. Você, se não for ao fogo... kikikiki... Quarenta e oito horas depois...

— Qual o quê! Sempre me mantenho fresco e saudável. Notadamente entre um grau centígrado e dez.

— Hummmm...! Bem que eu desconfiava... Você tem cara de fresco mesmo. Aliás, isso já me deixava com a pulga atrás da orelha. Ante a sua confirmação, acabou de tirar todas as minhas duvidas, assumindo...

DOIS

— Deixa de ser besta, véi. Assumindo o quê?

— Ora, a sua frescura. Até um minuto atrás, só havia suposições. Agora, a certeza.

— Você não passa de um grandessissimo idiota.

— Antes idiota que fresco.

— Fresco, seu depravado, mente suja, no sentido de puro, gostoso, saboroso, delicioso. Sem falar que não engordo.

— Filtra de novo!

— Como? O que foi que disse?!

— Conta outra. Você engorda. E muito. Já o papai aqui, seja puro, ou misturado, ao chocolate, ou com um cafezinho feito na hora, me torno indispensável, insubstituível. Na verdade, ninguém fica sem mim. Em toda casa de família, seja ela rica ou pobre, eu me faço presente...

— E qual a vantagem disso? Pra ficar escondido, de castigo na geladeira? Eu não! Meu lugar é sempre no melhor da casa. Onde todos me enxergam, me procuram, brigam para me verem na mesa, principalmente no desjejum da manhã e, claro, no lanche da tarde. Os patrões me amam... À noite, ninguém vai pra cama sem antes bater um papinho comigo.

TRÊS

— Eu tenho grande valor energético. E você?

— Sou rico em carboidratos.

— O que faz a diferença, hoje, meu prezado, são as proteínas. As proteínas entende o que falo?

— Você está por fora. Proteínas já eram. A galera está ligada nas gorduras totais.

— Kikikikikikikiki... Estas gorduras estão todas saturadas.

— Nada a ver. Por isso as minhas são trangênicas.

— Fique sabendo que eu tenho no sangue fibras alimentares...

— Eu, sódio.

— E, eu, bobão, cálcio.

— Meus VDRs, valores diários de referência servem de base para dietas de 2000 kcal ou 8400 kl.

— Você tem Glúten. Eu não.

QUATRO

— Já ouviu falar em estabilizantes? Eu sou rico em estabilizantes...

— Em contrapartida, lhe falta o Citrato (não confunda com Nitrato) de sódio. Sem falar no monofosfato e difosfato dissódico, que, por sinal, passou a quilômetros de você...

— Minha estampa imponente chama a atenção. Olhe para mim. Não sou lindo? Confesse!

— Você se acha. Mas não passa de um trouxa com cara de almofadinha. Agora dá uma espiada aqui no papai. Como bem pode ver meu amado, eu ando na moda. Nos trinques. Sou destaque internacional. Meus pais ganharam o ISO recentemente. Ah, outro detalhe, tenho SIF e sou registrado como manda o figurino do Ministério da Agricultura. Tenho também o DIPOA e os cambaus. Sem contar que apareço na televisão, em uma infinidade de comerciais em horários nobres.

CINCO

— Como você é metido. Que coisa feia! Eu sou Integral. Acho que já disse isso, mas vá lá. Não me custa repetir. EU SOU INTEGRAL. Sabe o que é ser INTEGRAL? Não é para qualquer um...

— Você pode até ser integral, mas não é UHT.

— Quero ser um mico de circo se estiver errado. Você se gaba ai de ser UHT. Aposto uma grana que nem sabe o que isso significa.

— Errou meu amigo. Sei e muito. UHT significa Ultra-Alta Temperatura.

SEIS

— Não disse? Sabe nada! UHT, seu paspalho, nada mais é que Ultra High Temperature. E sabe o que quer dizer isto?

— Sei.

— Então desembucha...

— Sou pré-cozido.

— Buuuurrrroooo... UHT é um processo em que os responsáveis por você e por mim, nos fazem passar antes de irmos para as gôndolas dos supermercados. Consiste em um tratamento térmico feito em alta temperatura, todavia...

— Todavia...?

— Todavia mantemos as nossas qualidades essenciais. Aprendeu?

— Pra aturar você tem que ter SAC. E eu tenho um SAC bem grande...

— Que diferença isso faz? — Eu tenho WWW e aposto que você não tem.

SETE

— Mas por outro lado, venho com imagens ilustradas. Neste quesito, você passou longe. Tão longe que visto daqui parece um ponto no universo.

— Tudo bem. Posso até ter passado longe. Um  ponto no universo, né? Mas segura essa, mano véi. Eu tenho FSC e você não.

— Eu fui agraciado com o S.I.F. Sou, portanto, inspecionado pelo Ministério da Agricultura.

— Agora eu calo a sua boca. Dou minha tapa à cara. Você não tem Tetra Pak.

— Quêêêê...?!

— Dou minha cara à tapa.  

— De fato. Nesse treco realmente entrego as mãos à palmatoria. Que vem a ser isso?

— Trocado em miúdos, minha embalagem. Minha roupagem, minha vestimenta, kikikiki... Protege o que é bom.

— Convencido de uma figa!  Somos todos iguais. Saímos do ube ou das tetas da mesma vaca.

— Duvido. Duvidoóóóó... Minha mãe é uma vaca, porém, a sua, a sua é uma... A sua é uma bezerra. Kikikiki...

— Ria, seu idiota.  Ao contrário de você, sou enfardado e envasado em embalagem asséptica. Ninguém toca em mim...

— Só falta o engraçadinho querer me convencer agora nessa altura do campeonato, que é virgem. Kikikiki... Fala ai, mano. Você é virgem? Tem selo de inspeção? Tem código de barras?

— Tenho tudo isso e muito mais. Venho de boa usina, meu laticínio é conhecido país afora, possuo CEP, CNPJ e etc. etc...

— Você não preserva a natureza... Eu, ao oposto...

— Como você é tapado. Tapado e idiota. Sabia que tenho como ser reciclado?

— Reciclado coisa nenhuma. No final das contas você vai é servir de lixeira pra encherem você de porcaria. Au... Au... Au... Ua... Ua... Ua...

OITO

De repente, em face da conversa acalorada, febricitante, ambos, distraídos (embora usem a faixa destinada aos pedestres), são atropelados por um motoqueiro que inopinadamente avança o sinal. Fatalidade, sorte quem sabe, acaso, destino, um sobrevive. O outro, porém, chega a óbito. Bate com as doze.

NOVE

Dia seguinte, os jornais noticiam, em letras garrafais: “DOIS LITROS DE LEITE, AO CRUZAREM A AVENIDA, SÃO ATROPELADOS NO SEMÁFORO POR UM MOTOQUEIRO BÊBADO E EM ALTA VELOCIDADE” Mais embaixo, o texto em explicação à chamada. “UMA DAS VÍTIMAS, INFELIZMENTE, NÃO RESISTIU AOS FERIMENTOS E FALECEU À CAMINHO DO HOSPITAL”.

DEZ

O litro sobrevivente, ainda na enfermaria, ao ser procurado, um tanto quanto assustado e ligeiramente abalado, não quis dar entrevista. Os repórteres só conseguiram saber seu nome verdadeiro. “Longa Vida”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Ed. AMC-GUEDES, 2020.

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