Texto integrante do livro “Comédias da Vida na Privada”.
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MINHA FILHA BEATRIZ acabou de me dizer que não vai se casar, pelo menos por enquanto. Segundo explicações dela, ‘está fazendo estágio com o namorado’. Enfurecido e colérico, pedi um elucidário mais pormenorizado sobre esta história de estágio:
— Seguinte, paizinho. A gente, pra tudo na vida, não faz estágio? O senhor mesmo, quando se formou em medicina não fez?
Fui grosso e curto, ou melhor dito: mais curto, que grosso:
— Não, Beatriz. Fiz residência.
Ao que ela, em seguida, de nariz empinado e sem pestanejar, retrucou:
— Então, paizinho. Antigamente a gente —, quero dizer, no seu tempo —, os doutores, como o senhor, faziam residência. Hoje, com a chegada da modernidade, a gente faz estágio. Nos seus idos, se amarrava linguiça com cachorro...
— Beatriz, cachorro com linguiça... Por tudo quanto é mais sagrado!
— Desculpe, paizinho. Foi mal!
Depois deste ‘foi mal’, interrompi bruscamente, começando a espumar pela boca Logo teria um troço:
— Beatriz, está querendo me fazer de besta? Minha mãe, sua avó, escreveu aqui na minha cara que sou otário?
— Não, pai, de fato não. Raciocine comigo. Eu mais o Beto estamos fazendo uma espécie de preliminar... Um treino básico para ver se daremos certo, se as funções que estamos agregando no dia a dia contribuirão para que, num porvir não muito longe, conseguiremos chegar inteiros a uma velhice sadia e sem complicações. Se tudo correr como engendramos, no final da praticagem, reuniremos as famílias, marcaremos a igreja (quero subir no púlpito toda de branco e pleiteando, desde agora, que o senhor me leve até o padre), distribuiremos os convites, faremos uma festinha, e, por fim, trocaremos as alianças...
— Beatriz, não me venha com esta conversa de cerca Lourenço*. Você está de namorico com este tal de Beto, há mais de dois anos. Podem se considerar, pelo tempo de uso, marido e mulher.
— Que isto, paizinho. Papo mais careta! Tempo de uso? De jeito nenhum. O Beto tem lá as suas manias —, uma ou duas que odeio —, tipo ficar jogando a noite inteira, no celular, ou cantando, no banheiro, enquanto toma banho, por sinal, umas músicas chatas num inglês meia sola que faria Freddie Mercury perder seus quatro dentes nascidos a mais, dentro da boca numa única mastigada. Se fosse só esta droga de cantar e jogar... Na verdade, o cantoria até que dá para digerir, porém, durante as partidas, ele briga com os parceiros gritando... Gritando não, berrando: ‘vai pro lado, volta, volta, tem um inimigo atrás de você... Imbecil, olho no telhado... Cuidado, Mané, vai levar um tiro...’.
— Meu Deus, minha filha que horror!
— Bota horror nisto paizinho... Sem mencionar o fato de que o Beto fica de luz acesa e fumando o tempo todo. Aliás, a noite inteira. Fiz a gentileza de marcar num caderninho. O infeliz consome três ou quatro maços de cigarros... Se não mais...
— Larga deste cara. Abandone esta digressão etílica que está consumindo a sua beleza. Manda o infeliz para os quintos do inferno. Você é jovem, tem presença... Logo aparecerá um rapaz direito, étimo* e sem vícios... Um homem que lhe dê valor e, sobretudo, que se eleve a si mesmo e pense à nível de futuro em construir uma família ordeira e na senda da retidão.
— Não posso, paizinho. Estamos, como disse, em fase de estágio. Temos um pré contrato antenupcial de... Como é mesmo a palavra?... Ah, lembrei. Tirocínio probatório.
— Rasga esta porcaria de documento, filha. Larga deste verme, volte para casa. Não eduquei você para viver com um sujeito que não deixa você dormir e, ainda, por ironia dos pecados, fuma e joga a noite toda. Ele, por acaso trabalha?
— Não, paizinho. Desde que começamos a dividir os mesmos espaços, ele, coitado... Tadinho, está esperando exatamente um estágio.
— E você pode me dizer quem mantém o vício deste picareta?
— ...
— Fala filha, quem mantém a fumacinha viciante deste encosto?
— Se o senhor não zangar, eu abro o jogo.
— Jogo, que jogo? Não me fala em jogo.
— A pedra, paizinho. Eu quis dizer a pedra.
— Canta logo. Quem mantém o pavio aceso deste canalha?
— Ta legal, paizinho, mas lhe peço, não se irrite. Eu falo. Quem mantém é o senhor.
— Eu? Está me tirando, Beatriz?
— Não senhor.
— Você sabe que eu não fumo, não bebo, nem jogo. De mais a mais, você acabou de me revelar que sou eu quem sustenta o parasita. Onde é que eu entro neste circuito?
— Não é bem no circuito, mas na mesada que o senhor me dá todo mês. É com ela que o Beto compra as carteiras de cigarros.
Olhei bem dentro dos olhos da minha filha com uma suspicácia* apreensiva e desassossegada:
— Fala sério, minha filha. A que ponto você chegou! Vejo a sua jornada como um balde se debatendo, vazio, no fim de um poço cavo e sem água!
— Vou falar sério paizinho e a que ponto ‘esse você chegou...’. Estamos ambos, duros e sem nada. Sequer dispomos de um centavo para fazer um cego de esquina cantar Jesus Cristo, de Roberto Carlos. E é em razão deste pormenor que estou aqui agora e desculpe, este é o ponto em que ‘você chegou’, porque eu o coloquei... Me perdoe, paizinho. A culpa é toda minha.
— Acaso está me dizendo que não veio visitar seu velho pai e tomar o desjejum comigo?
— Sim e não.
— Como, sim e não?!
— Seguinte, paizinho... Eu e o Beto passamos a matar jacarés a beliscões. Um leão na hora do almoço e um tigre na janta.
— Seja mais clara...
— Paizinho, estou lhe pedindo que me adiante a mesada do mês que vem. É com ela que vou tentar despistar a nossa fome!
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GLOSSÁRIO
Cerca Lourenço – Papo fora de esquadro. Diálogo bobo, sem nexo.
Suspicácia – Qualidade do que é suspicaz; suspeita, desconfiança.
Étimo – Verdadeiro.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.
Um comentário:
Um texto muito bem montado, com diálogos que os levam a pensar nos relacionamentos entre pais e filhas, que infelizmente, conforme o texto deste jornalista capixaba, são realidade em nosso mundo atual. Parabéns, escritor, seu texto merece aplausos.
Alexandre Andrade
Academia de Letras, Artes e Filosofia de Fortaleza
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