Sábado, dia de sol. Seis horas da manhã. Reunidos na pracinha da Lagoa, à espera do ônibus, quarenta super atletas.
Vida tranquila essa de jogador. Futebol de segunda a domingo, sem reclamação, viagens, festas, hotéis.
O adversário esperava por nós a cem quilômetros de distância, na vizinha Ponta Grossa. Um misto de amadores e peladeiros, mais dispostos à festa do que o jogo em si.
Duas horas de viagem, muito samba, cerveja, piadas e gozações no trajeto. Nessa hora fazemos de conta que não temos pai, mãe ou irmão e todos entram na dança.
O local, meio retirado e fora do perímetro urbano da cidade, mas diga-se de passagem, agradável ao extremo. Uma bela represa, água cristalina, muito verde e o ar da maior pureza.
O anfitrião, veterinário gente boníssima, vêm logo ao nosso encontro. Apesar de todo aquele patrimônio, muito educado, simples e camarada. De bolsa esportiva na mão, seguimos em frente formando fila pela mesma ordem de desembarque, a fim de atravessarmos a ponte sobre a represa, ligando a entrada da fazenda ao local da recepção, na outra margem do rio.
Pontezinha danada, toda bamba, construída sobre o apoio de tambores vazios, flutuantes na água. O pelotão futebolístico vai aglomerando-se, comandado pelos mais afoitos. Entra um, dois, trás, quatro . . . do décimo em diante foi um tombo apenas. A ponte não suportou o peso e mandou todos para a água, sem direito à troca de calção de banho.
Foi um Deus nos acuda. Alguns nadam, outros riem. Ninguém quer perder a bolsa, o relógio e aquele ray-ban polido especialmente para o passeio. Pares e pares de sapatos sobem à tona rapidamente e deslizam correnteza abaixo. A festa começou apimentada. Um susto e nada mais. Nenhum ferido ou afogado. O pior está por vir, depois de uma recepção fria e descontraída.
Segue o almoço, churrasco e chope à vontade. A partida, marcada para as quatro da tarde, parecia impossível de ser realizada. Imaginem um jogo depois de se devorar um boi e ingerir alguns barris de chope. Tudo em nome da alegria e confraternização.
Após o almoço fomos intimados a trocar de roupa. Cada um procura o local mais propício. Vestiário, nem pensar.
Na pressa de aprontar-me antes dos demais, entrei no único banheiro disponível na fazenda. Antigo, do tipo casinha. Quando a gente passava as férias na casa da avó havia sempre uma no fundo do quintal. Pequena, apertada, sem muita claridade, sem vaso, apenas aquela abertura em forma de losango concebida, única e exclusivamente, para o encaixe do traseiro.
Deixei a mochila de lado e fui logo tirando a roupa. Tinha devorado parte do boi e tomado um bom banho na represa, restava o futebol. Estava doido para colocar o uniforme e bater uma bolinha. Metido a zagueiro, queria ser o primeiro da fila e garantir uma vaga no time.
Depois de ter ficado nu por inteiro senti falta da mochila verde e branca que comprei com orgulho somente para viagens de futebol. Tinha o símbolo do nosso clube, o Araucária, custou caro na época, poucos foram os felizardos que conseguiram uma. Será que deixei fora da casinha ? Hesitei, embora soubesse de antemão que entrei com a danada na mão.
- Lúcio, vê se minha mochila ficou aí por fora.
- Aqui não ! Lá dentro também não . . .
- Meu Deus, será ? Imaginei o pior .
Em pânico, desloquei os dois globos oculares lentamente para dentro daquela figura geométrica, o losango apertado onde mal cabia um traseiro. Jamais caberia uma mochila cheia de roupas e pertences, pensei, com os olhos marejados de raiva.
Recusei-me a crer, mas era verdade. Minha bolsa, verde e branca, agora mais verde do que branca, repousava no fundo do vale, velejando sobre os excrementos acumulados ao longo de anos. Entreaberta, via-se apenas a perna direita da minha calça boca-de-pito bege suspensa do lado de fora, parcialmente rebocada. Algumas centenas de moscas a contemplam feito prótons e elétrons ao redor do núcleo.
Disfarçadamente, saí da casinha, à cata de um galho ou um pedaço de pau qualquer. Apanhei o primeiro que apareceu e voltei afoito, havia de recuperar a mochila. Documentos, tênis, roupas, dinheiro e o meu ray ban do Paraguai. Deus do céu !!!
De cima para baixo eram mais ou menos uns dois metros. Desci o galho calmamente e consegui enroscá-lo na alça. Tentei trazer a mochila com cautela e, ao aproximá-la da boca do losango, despencou novamente, de ponta cabeça. É demais . . . os urubus estão a meu favor.
Meu desejo é chorar e acabo rindo. Nesse momento havia uma plateia de gozadores assistindo ao evento. Um barril de chope triplica o riso, pode crer. Com muito jeitinho consegui retirá-la. A notícia se espalha, alguns colegas rolam no chão, outros gritam : - Dá-lhe, verdão!!!
Segurando-a na ponta dos dedos disparei em direção à represa. Uma legião de moscas tentou acompanhar-me e lembro apenas de ter sido mais rápido do que elas. A torcida aplaude, se diverte. A bolsa ficou submersa na água durante toda a tarde, presa por uma pedra enorme que encontrei no fundo do riacho. Tive pena dos peixes. Nem preciso contar o resto do dia. Do jogo, soube apenas o resultado, derrota na certa.
À noite, o time inteiro foi para o restaurante dançante, exceto o bocó da mala que acabou dançando sozinho e permaneceu dentro do ônibus meditando, sob um cheirinho nada convidativo. Pelo menos trouxe a mochila de volta, sem perder a pose nem o meu curto e rico dinheirinho.
O homem da mochila verde. Quem viu vai lembrar, isso foi há mais de vinte anos.
Fonte:
Jerônimo Mendes. Muito além do cotidiano: crônicas. Curitiba/PR, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário