sábado, 31 de outubro de 2020

Humberto de Campos (Miopia)


Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma bênção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.

Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.

Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da linguiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um dia, me contou.

Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios famintos!

Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.

- Sr. visconde, que é isso? - exclamou, rubra, a esposa do ministro.

A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:

- Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que estava aqui, a meu lado?

E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos o pince-nez, lamentou batendo na testa, com a mão espalmada:

- Maldita miopia!... Maldita miopia!...

E escanchou a bicicleta no nariz.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

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