domingo, 4 de outubro de 2020

Zaé Júnior (Caderno de Trovas)


Ao cumprir o meu dever
de filho, de pai, de irmão,
aprendi que compreender
vale mais que ter razão!
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A ternura que deixaste,
pai, qual herança tão nobre,
deixou-me na alma o contraste
de ser rico... sendo pobre!
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Brilhando ao sol, em cascata,
as águas, fazendo festa,
jorram confetes de prata
no carnaval da floresta!
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Cansado, mas com coragem
de continuar a jornada,
a vida é a minha bagagem,
que vou deixando na estrada!
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Com pena das minhas penas,
tais penas o assum levou,
e apenas penas pequenas
das próprias penas deixou!
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Copiando os astros distantes,
o sereno, em seus desvelos,
pousa estrelas de diamantes
na noite de teus cabelos!
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Depois da chuva inclemente,
levando um pássaro morto,
o ninho, na água corrente,
é nau fantasma e sem porto!
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Depois do amor sem censura,
nossos agrados sutis,
dizem coisas de ternura
que a nossa boca não diz!
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Dividindo, sem paixão,
tudo o que nos pertenceu,
levaste o teu coração,
mas não me deixaste o meu!
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Do teu perfil, na verdade,
só podes ver um pedaço,
pois para a tua vaidade,
o espelho tem pouco espaço!
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Em frente à perfumaria,
enquanto o ônibus espera,
pergunta o cego ao seu guia:
- Já chegou a primavera?
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Em silêncio vejo pura,
disfarçada em teu olhar,
a lágrima de ternura
que não querias chorar!
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E quando o inverno chegar,
saudosos, em seus desvelos,
meus dedos irão esquiar
na neve dos teus cabelos!
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Fiz da vida um labirinto,
do qual, se eu tento escapar,
quanto mais fujo, mais sinto
que estou no mesmo lugar!
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Há quem renove a esperança
e com promessas se iluda...
mas o Ano Novo é mudança,
que em verdade nada muda!
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Herói, que vence o cansaço
da vida em rude batalha,
tem no peito um marca-passo,
sua invisível medalha!
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Lembra? Eu brincava de Rei,
você... de escrava brincava;
do meu sonho hoje acordei,
escravo de minha escrava!
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Manhã... a geada caindo...
Mas se do inverno estou farto,
beijo os teus olhos se abrindo
e é primavera em meu quarto!
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Meu barraco, sem queixume,
fiz com redes de cipós...
mas a vida, com ciúme,
um a um desfez os nós!
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Meu cirquinho no quintal
era um circo de verdade;
na infância, não tinha igual
nem tem igual na saudade!
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Meu pai, a tua bondade,
que nos deu pão na pobreza,
é agora a farta saudade
que se serve em nossa mesa!
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Meu reino é um casebre antigo
onde um sol, sem majestade,
vem, de cócoras comigo,
aquecer minha saudade!
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Na Academia onde moram,
em sussurrante coral,
os imortais também choram
a morte de um imortal!
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Na existência dividida
pela incompreensão da idade,
se não te encontrei em vida,
te encontro, pai, na saudade!
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Na infância a gente brincava,
eu de sol, você de lua...
e o universo começava
e acabava em nossa rua!
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Não me agrada a falsa glória
que o jogo da vida tem,
pois sei que toda vitória
sempre é derrota de alguém!
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Não queiras cobrar com sangue
o mal que te machucou,
pois o mal é um bumerangue
que volta à mão que atirou!
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Na penumbra, sobre a toalha,
vultos que a vela produz
mostram que a sombra não falha,
por menor que seja a luz!
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No meu palco de ilusão,
quando se fecha a cortina,
ao terminar a sessão,
a ilusão nunca termina!
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No princípio, a solidão,
mas tu voltaste... e depois,
não coube em meu coração,
o que restou de nós dois!
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O atalho me leva à ermida,
a ermida me leva a Deus;
e Deus me leva à outra vida,
que a levou dos olhos meus!
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O bonde rangeu nos trilhos,
meu pai desceu, não sei onde...
Seguimos, a mãe e os filhos,
sozinhos no mesmo bonde!
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O chão não é de ninguém
nem do seu "dono", um instante;
do chão os homens só têm
sete palmos... e é o bastante!
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O meu sonho é um passarinho,
que de voar ficou farto
e acabou fazendo o ninho
na janela do meu quarto!
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O poeta mais que o soldado,
se quiser ser vencedor,
terá que amar, ser amado,
e só perder por amor!
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O tempo é como a caverna,
que não tem volta nem fundo,
onde a vida, que é eterna,
dura apenas um segundo!
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Ouço a melodia amena,
que vem do cosmos disperso
e minha alma, tão pequena,
ganha amplidão de universo!
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Plantando a vida se cansa...
e o caboclo, sem espaço,
colhe tão pouca esperança,
que não vale o seu cansaço!
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Quando a saudade é saudade,
saudade que faz penar,
saudade é felicidade
que se foi e quer voltar!
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Quando a seresta termina
sob o lampião do jardim,
a solidão, em surdina,
toca apenas para mim!
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Quem perde o tempo não sabe
que perde a vida também,
pois jamais a vida cabe
no tempo que a gente tem!
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Queres ferir-me gritando,
mas em soluços aflitos,
os teus murmúrios chorando
me ferem mais que teus gritos!
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Sagrado seja esse chão
no qual rezando, o roceiro
planta o próprio coração,
para a fome do ano inteiro!
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Se descobrir é preciso,
mais preciso é navegar;
"Terra à vista"... e um paraíso
floresceu além do mar!
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Sem abrigo, ao vento forte,
sem jardim e sem escolha,
sou frágil trevo sem sorte
à espera da quarta folha!
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Sem família, na orfandade,
aprendi triste lição;
quanto mais dói a saudade,
menos dói a solidão!
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Sem fronteiras, num só laço,
os homens são mais felizes,
pois a Terra, lá do espaço,
não se divide em países!
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Seu regresso foi surpresa,
pois já ninguém o esperava;
nem sentou... tinha outro à mesa,
na cadeira em que sentava!
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Teu olhar azul celeste
só sabia dizer não;
tantos não azuis disseste,
que azul virou poluição!
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Vovó, desfiando o rosário
das peraltices que fez,
foi zerando o calendário,
virou criança outra vez!

Fonte:
Zaé Junior. Pássaro Aprendiz: 1001 trovas.

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