quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Fernando Sabino (O Ricochete Telefônico)


“Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.”
Carlos Drummond de Andrade


TIRO o fone do gancho e uma voz me pergunta:

— Quem está falando?

Isso é que é eficiência — ainda nem disquei!

— Você. Não falei nada.

Desligo e tento de novo. Desta vez vou obtendo logo um sinal de ocupado, antes de discar.

O que eles querem é que eu desista. Não adianta, sou teimoso como uma mula.

Mais uma tentativa — desta vez não acontece nada.

Pois então vamos ver quem tem mais paciência.

Deixo o fone fora do gancho e vou cuidar da vida. De vez em quando volto para dar uma escutadinha.

Nada.

Ao fim de dez minutos, ganho a parada: obtenho uma linha.

Só que é daquelas que continuam tocando depois que a gente disca.

Então está bem.

Consigo outra. Novo sinal de ocupado depois de discar o número da estação.

Estou progredindo.

Com diabólica obstinação me submeto à provação do ricochete telefônico, ou seja, a sequência de insólitos fenômenos auditivos que faz do completamente de ligação uma loteria nem sempre esportiva:

— Eu gostaria de esclarecer umas dúvidas.

— Pois não. Com muito prazer.

— Sinal de ocupado antes da hora?

— Sobrecarga de chamadas. Congestionamento na estação.

— Aquela linha boba que não pára?

— Defeito no equipamento. O jeito é tentar outra.

— Chamada que não se completa?

— Sobrecarga.

— Número errado o tempo todo?

— Defeito.

Quando não é sobrecarga, é defeito. E aquele sinal de ocupado que vem depois que a gente liga, pensa que me enganam? Aquele sinal é falso, não está ocupado coisa nenhuma.

— Só nas novas estações acontece isso.

— E nas outras?

— Não acontece nada.

Estou falando com um representante da Companhia Telefônica Brasileira, da seção de Relações Públicas, para esclarecer umas tantas coisas. Pelo telefone, depois de meia hora de tentativas. Ele não falou propriamente assim, estou resumindo: foi amável, interessado e convincente, Quando soube que eu pretendia escrever sobre o assunto, se dispôs logo a colaborar. Disse que a CTB não estava tentando livrar a cara, pelo contrário: é a primeira a reconhecer que o sistema é deficiente e está procurando melhorá-lo. Por exemplo: este ano vão inaugurar novas estações, a partir de abril — uma por mês. O que quer dizer que haverá menos sobrecarga. Outras providências que estão tomando reduzirão os defeitos.

Mantivemos uma instrutiva conversa de quase uma hora, durante a qual não aconteceu nada: nem linhas cruzadas, nem ruídos (ou música, como costuma acontecer), nem queda de ligação, como se diz hoje em dia, quando a chamada pifa. Ao fim, eu estava satisfeito: conseguira falar ao telefone. Agradeci e desliguei. Não sem antes defender uma velha tese minha, segundo a qual uma das maneiras mais eficientes de melhorar os serviços telefônicos seria incentivar a utilização dos Correios e Telégrafos.

“Telefonavas, telefonavas”
Manuel Bandeira


Reconheço publicamente que sofro da síndrome de Graham Bell. Doença terrível no Rio de hoje — a dos maníacos como eu, que não podem passar sem um telefone: tornei-me sério candidato a uma temporada de cura e repouso no Pinel.

— E a linha cruzada?

— Contato nos cabos. Quando chove penetra umidade no cabo, e dá linha cruzada.

É o serviço telefônico mais barato do mundo: permite participar da conversa de uma porção de gente ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.

— Quantos telefones tem no Rio?

— Tem 12 aparelhos para cada 100 pessoas. Não pode se comparar a Washington, por exemplo, que tem 98, ou Nova York, que tem 60.

Não estou comparando, estou só perguntando:

— E quantos entre estes cem podem falar ao mesmo tempo?

— Vinte e cinco.

Considerando-se que estarão falando com outros 25, já são 50 — nada mal.

— Que acontece se os cem resolvem falar ao mesmo tempo?

— O sistema entra em colapso.

Como costuma acontecer quase toda tarde. (Dizem que a culpa é do jogo do bicho.) Tenho um amigo que conseguiu se livrar dos que o importunavam pelo telefone, pedindo que o chamem sempre entre cinco e sete da tarde.

“Meu telefone agora vive mudo
E o dela sempre em comunicação.”
Fox-canção de Orestes Barbosa


— E os macetes que o carioca inventou para conseguir ligação?

— Não adiantam nada. Bater no gancho para conseguir linha é sair do princípio de uma fila e entrar no último lugar. Prender o disco, forçar a sua volta, discar devagar ou depressa, acrescentar mais um algarismo — nada disso adianta. Tem gente que acredita até em discar com a mão esquerda para dar sorte. Ou com o dedo mindinho, sei lá.

— Conseguir telefonar ainda é uma questão de sorte?

— Mais ou menos: aumentou o número de usuários de maneira assustadora, fazendo com que o problema continue grave, apesar das melhorias.

Quer dizer que, tudo considerado, o serviço piorou porque o sistema melhorou.

— Para terminar, uma última pergunta: por que será que basta discar um número errado para que atenda sistematicamente uma alemã malcriada, de sotaque carregado?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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