sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Teófilo Braga (A Noiva do Corvo)

Recolhido no Algarve

Havia numa terra uma mulher, que tinha em sua companhia um corvo. Defronte dela moravam três raparigas muito lindas. Como o corvo queria casar, mandou falar à mais velha; respondeu-lhe que não, e o corvo raivoso arrancou-lhe os olhos. Sucedeu o mesmo com a segunda, até que a terceira sempre se sujeitou a casar com o corvo.

Tempos depois de já viverem na sua casa, a rapariga falou a uma vizinha no seu desgosto de estar casada com um corvo; a vizinha aconselhou-lhe que lhe chamuscasse as penas, porque podia ser obra de encantamento, e assim se quebraria. Quando à noite se foram os dois deitar, a rapariga chegou a candeia às penas do corvo; ele acordou logo, dando um grande berro:

– Ai, que me dobraste o meu encantamento! Se me queres salvar, vai pôr-te àquela janela, e todos os pássaros que vires, chama-os e pede-lhes assim: «Venham, passarinhos, venham despir-se para vestir el-rei que está nu». De fato os passarinhos começaram a vir pousar na janela, e cada um deixava cair uma pena com que o corvo se foi cobrindo. Depois que ficou outra vez emplumado, o corvo bateu as asas, e desapareceu, dizendo para a mulher:

– Agora se me quiseres tornar a ver

Sapatos de ferro hás de romper.
   
A pobre rapariga ficou sozinha toda aquela noite, e logo que amanheceu foi comprar uns sapatos de ferro e meteu-se a correr o mundo. Tinha os sapatos quase estragados de andar, quando encontrou um velho e lhe perguntou se não tinha visto um pássaro. O velho respondeu:

– Eu venho da fonte da madrepérola, onde estavam bastantes.

Ela continuou o seu caminho, e antes de chegar à fonte ali encontrou um corvo, que lhe disse:

– Olha, se quiseres salvar o rei, vai à fonte, onde estará uma lavadeira a lavar um vestido de penas, tira-lho e lava-o tu. Ao pé da fonte está uma casa, e um velho que a guarda; entra aí, mata o velho para poderes quebrar todas as gaiolas e dar a liberdade aos pássaros que ele tem lá presos.

A rapariga chegou à fonte, e fez como o corvo lhe tinha dito; lavou o vestido de penas, e depois entrou na casa onde estava o velho, fingiu que via vir pelo mar uma linda embarcação; o velho chegou-se à janela e a rapariga pegou-lhe pelas pernas e deitou-o ao mar. Depois quebrou todas as gaiolas e os pássaros em liberdade tornaram-se príncipes que estavam encantados, e entre eles estava o seu marido, que era rei e lhes pôs obrigação de a servirem toda a vida.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Juvenal Galeno (Poesias)

A MODA

O que eu desejo, senhoras,
É que se cumpra o rifão:
— Cada terra com seu uso,
Cada roca com seu fuso: —
Eis a minha opinião!

Mas, vestir-se o brasileiro
Como lhe ordena o francês...
Não acho isso direito!
Viver o povo sujeito
Aos figurinos do mês!

É mesmo falta de brio,
É fazer-se manequim;
Dizem que somos macacos...
Pois antes trajarmos sacos,
Do que servir de saguim!

Devemos ter nossa moda,
Tenha a sua o japonês;
Vista o prusso à prussiana,
Ande o russo a russiana,
Ninguém roube a do chinês.

Cada qual conforme o clima
De sua terra natal;
Que se o Norte tem calores,
No sul existem rigores
Da viração glacial.

Mas ornar-se quem tirita
Como quem sopra... é de mais!
Se trajamos nos estios
Como a França nos seus frios,
Não somos racionais!

E que roupagem ridícula
Nos impõe o tal Paris!
Que não levem... rabos tais!
Às damas puseram rabo! —
Pois não é um menoscabo
A esta terra infeliz? —
(...)

Batinas e polonaise,
Hoje, bico — amanhã, não;
Muitas trouxas, muitos regos,
Babados e repolegos,
Arregaços... confusão!

E franjas, fitas e penas!
No meio dessa babel,
A mulher desaparece...
Nem o marido a conhece
Nequele horendo pastel!
(...)

E é tamanha a tirania,
Que aqui não sabe ninguém
Como andará pela rua,
Ou consorte ou filha sua,
Em dias do mês que vem!

Já disse o suficiente...
Às damas peço perdão!
Apenas bato o abuso...
Cada terra com seu uso...
Esta é minha opinião!

OS BARÕES

I

Eu não canto os barões assinalados
Por atos de virtude ou de heroismo...
Mas espertos e torpes titulados,
Egrégios na baixeza e no cinismo!
Que os primeiros são tão raros
Nesta terra em que nasci,
Ao passo que dos segundos
Mais de um cento conheci!
E deles cada qual o mais tratante,
Mais néscio e mais servil...
Em fidalgos ruins já ninguém vence
Por certo o meu Brasil!
E se alguém duvidar ponha a luneta
E o passado examine dos barões...
Empurre no presente uma lanceta
E verá o que sai... que podridões!
Ou procure, que tenho na gaveta,
Alguns apontamentos ou borrões...
Mas trabalho é demais... ninguém se meta,
Antes leia estes traços a crayons.

(...)

III

Que ativo contrabandista
Foi outrora, — e ainda o é —
Aquele esperto Fulgêncio,
O barão do Gereré!...

Quem mais ligeiro no ofício?...
Sagaz!
Por entre as trevas da noite...
Trás... zás!

As cousas vinham dos barcos,
Sem o fisco examinar...
Pelas artes de berliques,
Passavam todas no ar;

E por artes de berloques,
Nunca as poderam pegar!
E as que vinham pelo fisco
Mudavam de condição...
Popelinas despachadas
Por fazenda de algodão!

E desse modo Fulgêncio
Depressa se f'licitou...
Passando mil contrabandos
Em pouco tempo enricou,
E para não ser Fulgêncio,
Um baronato arranjou!

Hoje é fidalgo...
Dos nobres é:
Barão exímio
Do Gereré!...

(...)

ALFACE

A alface das nossas hortas
É do ópio sucedâneo:
Acalma dores e tosses,
Seu efeito é instantâneo.

Serve o chá das suas folhas
Para curar os nervosos,
E para banhar os olhos
Inflamados, dolorosos.

Quem o tomar, ao deitar-se,
Logo o sono concilia:
Galeno ceava alfaces,
Pois de insônia padecia.

As urinas facilitam,
E servem de laxativo;
Finalmente, em muitos males
Não há melhor lenitivo.

O CAIPORA

— No meio da mata, menino, não corras,
Que o vil caipora
Agora,
Nesta hora
Passeia montado no seu caititu;
E arteiro e malino
Se encontra o menino...
Ai dele! que o leva no seu grande uru!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Seus olhos pequenos são negros, e feros,
Quais d'onça, luzentes,
Ardentes...
E os dentes
São como os do mero, ferinos, cruéis;
E o duro cabelo,
Assim, como o pêlo
Dos bravos queixadas, que são-lhe fiéis.

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Qu'ousado e valente o tal caboclinho,
De penas coberto,
Esperto...
Decerto
Se vê-te quer fumo, pedir-t'o lá vem;
Se acaso lh'o negas,
Se não lh'o entregas,
Quem é que te salva? Lá vais ao moquém!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Se acaso te encontra... lá vais para a grota
Debalde lutando,
Gritando,
Chorando,
Na embira amarrado do seu grande uru!
Não corras menino,
Que o índio malino
Na mata passeia no seu caititu!

E o louco menino
Não quis escutar;
Fugindo de casa
Não pôde voltar.

Fontes:
GALENO, Juvenal. Lendas e canções populares. 4.ed. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno, 1859/1865.
GALENO, Juvenal. Medicina caseira. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno, 1969.
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno, 1969.
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno.

Juvenal Galeno (1836-1931)

Neto de Albano da Costa dos Anjos e do português Manuel José Theóphilo, Juvenal Galeno da Costa e Silva nasceu em Fortaleza, a 27 de setembro de 1836, em uma residência na Rua Formosa, nº 66 (hoje Barão do Rio Branco). Filho de José Antônio da Costa e Silva e Maria do Carmo Teófilo e Silva, abastados agricultores cafeeiros na encosta da Serra de Aratanha em Pacatuba. Primo pelo lado paterno de Capistrano de Abreu e Clóvis Beviláqua e pelo lado materno de Rodolfo Teófilo.

Ainda pequeno se mudou com a família para o Sítio Boa Vista, recanto aconchegante que lhe embalou os sonhos de criança. O tempo foi passando e o menino Juvenal trazia a seiva da imensurável ramificação cultural.

Seus estudos primários ele os fez numa escola de Pacatuba. Aos treze anos de idade, já com noções de latim ministradas pelo padre Nogueira Braveza, mal ainda havendo despertado para a adolescência, fundou e fez circular o primeiro jornal puramente literário no Ceará, o “SEMPRE VIVA”, destinado ao sexo feminino. O jornal teve efêmera existência, porque vivia ainda sob a tutela dos pais, não tinha condições de dar continuidade a esse empreendimento.

Ainda na infância, acompanhou o tio, Dr. Marcos Theóphilo, médico, pai de Rodolfo Theóphilo, à cidade de Aracati, onde frequentou uma escola pública ministrada por Porfírio Sabóia. Voltando de Aracati em 1851, matriculou-se no Liceu do Ceará onde cursou Humanidades até 1855.

Em 1853, fundou e fez circular o primeiro jornal da imprensa estudantil no Ceará, o jornal “Mocidade Cearense”, também de efêmera existência, em virtude, da transferência de seu sócio e colega Joaquim Catunda para o Rio de Janeiro.

Após o Curso, foi para o Sitio Boa Vista ajudar o pai na administração das atividades agrícolas, principalmente na cultura cafeeira, numa época em que o café assumia expressiva importância na economia cearense.

Com o intuito de aperfeiçoá-lo em assuntos agrícolas, seu pai mandou-o para o Rio de Janeiro em busca de adquirir maior conhecimento nas técnicas do plantio do café. Levava consigo uma carta de recomendação de Rufino José de Almeida apresentando-o a Francisco Paula Brito, proprietário da Marmota Fluminense. Ali Juvenal Galeno travou relações de amizade com Machado de Assis, Saldanha Marinho, Joaquim Manoel de Macêdo, Quintino Bocaiúva e outros.

Seduzido pelo convívio das letras, passou, a partir de então, a escrever poesias e a publicá-las na Marmota Fluminense ao lado de Machado de Assis e outros escritores. Demorou no Rio pouco mais de um ano, mas antes de seu regresso ao Ceará reuniu tais produções, editando-as em 1856, sob o título de Prelúdios Poéticos.

De volta ao Ceará, Juvenal Galeno trouxe dois exemplares de “PRELÚDIOS POÉTICOS”, ricamente encadernados com sua fotografia, que ofereceu a seus pais.

“PRELÚDIOS POÉTICOS” livro de estreia de Juvenal Galeno, editado em 1856, foi o primeiro livro da literatura cearense, tornando-se o marco inicial do Romantismo no Ceará, como afirmaram Mario Linhares, na sua “Historia da Literatura”, Antônio Sales e outros.

A partir de então sua existência passou a transcorrer entre o Sítio Boa Vista, na Serra de Aratanha, e a cidade de Fortaleza. Ainda por esse tempo ingressou como alferes nos quadros da Guarda Nacional, como também no Partido Liberal , em cujo jornal passou a colaborar. Em 1858 foi eleito Suplente de Deputado Provincial pelo círculo de Icó, onde defendeu um projeto para criação de uma escola prática de agricultura.

Em 1859, desembarcava em Fortaleza, trazida a bordo do Tocantins, a célebre Comissão Cientifica de Exploração, dirigida por Freire Alemão, composta por doze pessoas, entre as quais se destacavam Raja Gabaglia, Capanema e o poeta Gonçalves Dias, que chefiava a Seção Etnográfica e Narrativa da Missão.

De Fortaleza rumaram para Pacatuba ficando hospedados na casa dos pais de Juvenal Galeno. Ali na serra e na capital cearense, Juvenal teve como amigo e conselheiro, Gonçalves Dias, que lhe estimulou os pendores literários, aliás, já manifestados nas poesias “A Noite de São João”, “A Canção do Jangadeiro”, “Cantiga do Violeiro” e outras mais do livro “Prelúdios Poéticos”.

Gonçalves Dias, estabelecendo conversação com o poeta Juvenal Galeno, convidou-o para participar de um banquete com todos os membros da Comissão Cientifica de Exploração, do Senador Tomás Pompeu e de Silva Coutinho em Fortaleza. Juvenal Galeno atendeu de pronto ao convite do amigo, e em função do evento, deixou de comparecer à uma revista do Batalhão da Reserva do Exército a que pertencia. Isto irritou o Comandante da Guarda Nacional de Fortaleza, João Antônio Machado, que em seguida determinou o recolhimento do subalterno à prisão.

A penalidade lançada a Juvenal Galeno trouxe como resultado a confecção de um livro severíssimo e duro contra o tal Machado e, esse trabalho ele publicou num volume, o qual deu o título de “A MACHADADA”, aproveitando o simbolismo do sobrenome de João Antônio Machado. Esse livro foi a primeira obra literária impressa no Ceará.

Em 1861, Juvenal Galeno aparece em público como teatrólogo. É levada à cena, pela primeira vez, no Teatro Taliense, 3 de novembro de 1861, a comédia de sua autoria intitulada “ QUEM COM FERRO FERE COM FERRO SERÁ FERIDO”. Esse drama sociológico foi a primeira peça teatral produzida e encenada no Ceará. Nesse mesmo ano presenteou o público com o poemeto indianista denominado “A PORANGABA” (descrição em versos de uma lenda que Juvenal Galeno disse ter ouvido de um velho caboclo que escutara dos seus pais, e estes a seus maiores).

A poesia de Juvenal Galeno reflete toda a psicologia da alma da gente humilde, digo da alma da população do nordeste em todas as modalidades do seu sentir, nos seus lances heroicos, infelizes ou gloriosos.

Os sentimentos, os anseios dessa gente toda, da serra, praias e sertões, ele os gravou indelevelmente em seus versos.

Em 1865, no prólogo de “LENDAS E CANÇÕES POPULARES” ( obra-prima de Juvenal Galeno que foi saudado por Machado de Assis e outros renomados escritores, o que atesta o valor nacional do vate montanhês), ele declarou: “ Escrevi este livro acompanhando o povo no trabalho, no lar, na política, na vida particular e pública, na praia, na montanha e no sertão, onde ouvi os seus cantos e os reproduzi, ampliei sem desprezar a frase singela, a palavra de seu dialeto, a sua metrificação e até o seu próprio verso”.

Franklin Távora considerou-o não só como uma obra de arte em que se revelou o gênio do poeta, mas como documentário precioso devendo ser detidamente estudado, podendo se constituir um guieiro para a indagação e pesquisa dos usos, costumes e tradições populares.

O amor e a dedicação de Juvenal às Letras eram tais, que só aceitava empregos no setor intelectual. Desempenhou as funções de Inspetor Escolar, numa época em que os transportes eram difíceis,  penosos. Só havia acesso a certos lugares por meio de animais, fazendo-se o percurso de léguas, debaixo de uma soalheira causticante de uma escola para outra, tal a distância em que ficavam localizadas. Estradas inteiramente desertas. Contudo ele trabalhava com prazer e não sentia fadigas, gostava do convívio das crianças, orientava as professoras e tanto se fez a esse meio que chegou a compor singelas e tocantes “CANÇÕES DA ESCOLA”, que foram impressas e distribuídas nas escolas para serem cantadas. Esse livro que se esgotou em poucos dias, consagrou-o, também, como Poeta da Juventude. Essa obra foi adotada pelo Conselho de Instrução Pública do Ceará para uso das aulas primárias.

Nessa sua tarefa de Inspetor da Instrução Pública, ele se hospedava sempre em casa do velho pescador João Gomes, homem humilde, casado e com vários filhos, residia em Freixeiras. Numa destas ocasiões, Juvenal ouviu a narração dos sofrimentos que assaltaram inopinadamente o pescador e sua mulher, devidos à perseguição cruel de um potentado que, por vingança, aprisionara para o recrutamento militar o seu genro querido, deixando ao desamparo e na maior dor a esposa e o filho recém-nascido. Indignado, Juvenal tomou a si, com o entusiasmo que sentia na defesa das causas justas, retirar Vicente do recrutamento. Jurou que o conseguiria, afirmou destemido ao velho pescador que livraria seu genro e retornou logo a Fortaleza para não perder tempo. Escreveu então a seu cunhado e amigo Dr. José Gonçalves da Justa, que ocupava importante cargo no Rio de Janeiro, pedindo-lhe a liberdade de Vicente como o maior favor que lhe poderia prestar. O poeta era queridíssimo de toda família e seu cunhado conseguiu satisfazer-lhe o pedido.

Inspirado nessa verdadeira e altamente comovedora cena da vida real, escreveu ele o conto intitulado “AMOR DO CÉU” enfeixado no seu livro “CENAS POPULARES “ editado em 1891.

Sobre “Cenas Populares” disse José de Alencar: “ livro tão original ainda não se escreveu entre nós”. Ao invés do verso, o autor preferiu a prosa em que descreve lugares, pessoas, costumes típicos de sumo interesse para o folclore em alguns contos singelos: “Os pescadores”, “Dia de feira”, “Folhas secas”, “Noite de núpcias”, etc. Esse livro foi o primeiro livro de conto publicado no Ceará.

Juvenal Galeno montou uma tipografia expressamente para impressão de “LIRA CEARENSE”, livro impresso em fascículos e distribuídos aos domingos em formato de jornal, com o mesmo título, Lira Cearense, com seu primeiro número circulando a 7 de janeiro de 1872. Fascículos depois reunidos em um volume, dividido em três partes: Lira Popular, Lira Americana e Lira Íntima.

Foi nomeado em 19 de maio de 1876 terceiro suplente do Juiz Municipal de Pacatuba. Naquele ano casou-se com sua vizinha Dona Maria do Carmo Cabral , filha do Comendador Cabral de Melo. Depois de alguns anos, Juvenal e sua esposa querendo proporcionar uma melhor educação para os três filhos: José, Antônio e Maria do Carmo, deixam o sítio e vão morar num sobrado da Vila de Pacatuba. Até 1886, o seu domicílio seria a Vila de Pacatuba, em cujas ruas mantinha um estabelecimento de lojista.

Em 1887 fixa residência em Fortaleza, na Rua General Sampaio 1128, ali nascendo João, Henriqueta e Julinha.

Em 1887 quando da fundação a 4 de março do Instituto do Ceará, foi considerado Sócio Fundador daquela entidade. Dois anos depois, em 1889 foi nomeado pelo presidente da Província de Fortaleza, Caio Prado, para a função de Diretor da Biblioteca Pública, então localizada na Rua Sena Madureira, cargo que ocupou por longos dezenove anos. Nesta função divertia-se em policiar a leitura dos estudantes tirando-lhes das mãos as obras de Júlio Verne substituindo-as pela História de um Bocadinho de Pão. Juvenal Galeno costumava dizer, amava aquela repartição como se fosse um de seus próprios filhos.

O Conde D”Eu quando por aqui passou antes da inauguração do regime republicano, comparecendo à recepção que lhe foi oferecida, em palácio, pelo presidente da Província, foi apresentado ao nosso poeta. E para espanto da altas figuras ali presentes, o genro do imperador em voz alta, recitou, naturalmente querendo dar provas de que já conhecia muitas de suas poesias, algumas estrofes de “O Filho do Vaqueiro”.

Juvenal por algum tempo escreveu no Jornal “A CONSTITUIÇÃO”, um dos mais lidos no século XIX, em Fortaleza. Suas crônicas eram verdadeiras caricaturas dos costumes então em uso, e assim, ora em versos tersos e vibrantes, ora em prosa causticante, ele combatia a torto e direito os vícios e abusos daquela época.

Acastelhava-se por identificar o autor, e “A CONSTITUIÇÃO” aumentava a tiragem, esgotando-se, tal era a procura.

O poeta mostrou-se, nesse gênero, de uma verve admirável, e ora enérgico e destemido, ora trocista e brincalhão, ia fazendo cócegas e irritando aqueles em cuja cabeça a carapuça tão bem se ajustava. SILVANUS, com sua verve inesgotável, marcou um acontecimento no mundo social, e ele soube se haver com tal inteligência e habilidade, que não feriu diretamente a este ou aquele. E o sucesso foi tamanho que, quando o poeta deu por finda a sua publicidade, recebeu pedidos insistentes para enfeixar em livros aquelas produções. A princípio não quis fazê-lo, mas acabou cedendo, e eis, ereto e altivo o “FOLHETINS DE SILVANUS”, editado e descoberto em 1891 para gáudio de seus numerosos leitores. “Folhetins de Silvanus” é uma fina sátira dos costumes, hábitos, fielmente observados e descritos com um humorismo encantador.

A maior parte do livro foi escrita em verso, em que estigmatizava o luxo, o pedantismo provinciano, a falsa ciência dos diletantes, em plena Fortaleza do século XIX.

Aos setenta e três anos de idade, atacado de glaucoma, acaba por se aposentar do serviço público, já irremediavelmente cego, isso em 1908, passando a viver da aposentadoria, dos rendimentos próprios
auferidos não só da produção de seu sítio como dos aluguéis de suas vinte casas.

Em 1897, Juvenal Galeno dita à sua filha Henriqueta os seus versos de “Medicina Caseira”, livro somente impresso em 1969, no cinquentenário de fundação da Casa de Juvenal Galeno.

Continuou a produzir ditando poemas para sua filha, Henriqueta Galeno, que o assistiu, juntamente com sua esposa, até o fim da vida. Uma de suas imagens mais conhecidas retratou esse momento: no salão de sua residência, sentado em uma rede de varandas bordadas, as barbas alvas e longas, o olhar perdido, e a filha ao lado, sentada em uma cadeira, a tomar nota dos últimos versos ditados pelo grande bardo.

Desde 1916, a residência do poeta era frequentada por intelectuais como Alfredo Castro, Cruz Filho,
Leonardo Mota, Mário Linhares, Antônio Furtado, Irineu Filho, Antônio Sales, José Albano, Beni Carvalho, Papi Júnior, Sales Campos, José Sombra, entre outros.

Atribui-se às irmãs Júlia e Henriqueta Galeno a ideia de reunir o escol das letras cearenses, nos moldes dos salões literários franceses. Por iniciativa delas, a Casa se constituiu um palco de recitais, palestras, conferências, números de canto, audições ao piano, concertos de violões e danças. Tais eventos se realizavam a propósito de qualquer ocasião: despedidas, homenagens, aniversário de membros do círculo, lançamento de livros e recepção a visitantes ou intelectuais que tornavam à capital cearense, depois de longa ausência. Tudo era motivo para as sessões literárias que se realizavam na Casa de Juvenal Galeno, em presença do velho poeta, que não tomava parte nas apresentações, mas, segundo apontavam, fazia questão de ouvi-las.

Juvenal Galeno faleceu de uremia em 7 de março de 1931, aos noventa e cinco anos de idade, deixando uma volumosa produção literária e a Casa que se tornara referência e ponto de encontro preferido de intelectuais.

Dia 28 de setembro de 2013, na casa de Cultura Juvenal Galeno houve a solenidade de fundação da Academia de Letras Juvenal Galeno. Projeto da escritora Eliane Arruda, Patrono JUVENAL GALENO DA COSTA E SILVA. Presidente: Eliane Maria Arruda Silva – Cadeira 01.

Casa de Juvenal Galeno
Rua General Sampaio, 1128 - Centro
Fortaleza – Ceará
CEP: 60020030
Fone: (0xx85) 3252-3561
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Alfredo Mendes (Caderno de Poemas) I

A LIBERDADE 

Que se eliminem todas as grilhetas.
Que sejam retiradas as mordaças
Que seja o mundo livre de arruaças,
dos ditadores tipo, proxenetas.

Que se ouçam de novo as trombetas,
Anunciando ao povo novas graças.
Já bastam tantos ódios e desgraças,
Retirem as promessas das gavetas.
  
As promessas de paz anunciadas
E por conveniência propaladas.
Se querem dividendos receber.

Ao teatro da guerra digam não!
A Terra é um planeta em convulsão...
Não ponham tantos povos a sofrer!

AMAR O PRÓXIMO

Amar sem condição, amar somente!
Abrir o coração ao semelhante.
Fazer do nosso amor, uma constante,
E nas horas amargas, ‘star presente!

Amar sem condição, devotamente.
Amar só por amar, ser tolerante.
Com o próximo, não ser arrogante,
P’ra com seus impropérios, indulgente!

Tratemos toda a gente tal e qual.
Com a mesma ternura, e modo igual,
Como gostamos nós de ser tratados!

Se estendermos a todos nossas mãos!
E fizermos vivência como irmãos!
Por certo nós seremos mais amados!

A MINHA GUITARRA
(Sextilhas)

Dedilhei a guitarra em tom dolente.
Foi saindo um acorde confrangente,
Como um soluço preso na garganta!
O seu tanger é fado, mal fadado…
É fífia em coração atraiçoado,
Ciúme que no peito se agiganta!

A adaga que lançaste me acertou.
Teu beijo de mentira envenenou,
O ar que recebi da tua boca!
Que triste fado foi o nosso amor,
Uma letra sem rima, sem primor,
Cantada por fadista de voz rouca!

O ventre da guitarra soluçou.
A melodia, em ais se transformou…
Emitindo o tinir de alguém gemendo.
É a minha guitarra se finando…
As suas cordas frouxas se soltando,
Enquanto nossos fados vão morrendo!

 CALENDÁRIO

Arranquei uma folha ao calendário.
Foram mais trinta dias que passaram.
Tentei imaginar quantos ficaram,
privados deste gesto tão primário!

E a quantos foi mostrado o itinerário,
que as leis do passamento decretaram!
E o sono mais que eterno iniciaram...
Com suas mãos envoltas num rosário!
  
E tento equacionar o tempo ido.
Analisar o tempo decorrido...
E quantas folhas posso ‘inda mudar!

Fito o meu calendário e o seu mês!
E penso que chegada a minha vez...
A folhinha não mais vou arrancar!

CONTRADIÇÃO
 

Tenho meu coração amordaçado,
as asas lhe cortei p’ra não voar.
Não vá fugir de mim e te contar,
quanto anseio que estejas a meu lado!

Quero que faças parte do passado.
Não quero mais de ti me recordar.
Quero rasgar lembranças, apagar...
O sabor do teu beijo apaixonado!

A luz do teu olhar quero esquecer.
Teus lábios de carmim, não quero ver,
desejando o calor dos lábios meus!

Eu não quero teu corpo desejar...
Mas quanto mais eu quero me afastar,
mais desejo cair nos braços teus!

CORTAR O PASSADO

Rasguei as lembranças do tempo passado.
Os sonhos guardados, desfiz em pedaços.
Da caixa com fotos atada com laços,
Eu fiz um braseiro; foi tudo queimado!

Tristeza, amargura, tirei do meu lado.
Mandei-as embora para outros espaços.
Fugi da mentira, dos falsos abraços…
Que às vezes sentia, ao ser abraçado!

Do zero farei, outra forma de vida.
Será mais concreta, serena, sentida,
Apenas cercado p’los grandes amigos.

Amigos que sabem, o que é amizade.
Que no peito ostentam a fraternidade,
Que é arma letal para os seus inimigos!

DIA DA MULHER

Hoje se cantam odes à mulher.
Dizem ser o seu dia especial.
Hoje a mulher é símbolo nacional,
é superior a tudo e a qualquer!
  
Chegado o amanhã não é sequer,
lembrado o seu carinho maternal!
Tudo volta à rotina natural...
Outro ano virá, se Deus quiser!

Sendo por este, ou por aquele motivo.
Se foi criando um dia mais festivo,
ao sabor do que mais se lhe aprouver...
  
Os homens podem dias inventar...
Mas por mais voltas que lhes possam dar...
Sempre os dias serão: de ti, mulher!

ERRANTE

Caminhei pela noite sem destino.
Errando como um pobre peregrino
Que busca avidamente a fé de Deus.
A luz que iluminava meu caminho.
‘scondia tanto cravo, tanto espinho...
que foi rasgando a carne aos braços meus!

Indiferente à dor, ao sofrimento.
Ao frio gelado, à chuva, ao forte vento
Que me sulcava a face cruelmente.
Segui o meu caminho sem traçado,
Ao acaso, sem ter rumo acertado...
Seguia por seguir, seguia em frente!

Sentia-me empurrado por alguém...
Seria alguma força do além
Dando impulso à inércia dos meus passos?
Que forças me empurravam desse jeito?
Apertei minhas mãos juntas ao peito,
E tive a sensação de mil abraços!

Mil abraços de amor e de ternura,
Que eram bálsamo p’ra tanta tortura,
Que germinava dentro do meu ser!
Era farol intenso a me indicar
O caminho melhor p’ra te encontrar,
Que eu sabendo, fingia não saber!

Cheguei por fim a Ti, meu Bom Jesus!
À minha escuridão Tu deste luz,
E foste iluminando os passos meus.
A paz reencontrei no teu caminho.
Já não ando perdido, tão sozinho...
Obrigado por tudo Meu Bom Deus!

(2º Prémio Literário - Paul Harris 2001)

FANTASIA

Queria ser o Sol que te bronzeia.
O gel que no teu corpo vais usar.
O colar que teu colo vai beijar...
E ser para o teu mal, a panaceia!

Ser a seda que fez a tua meia.
O perfume que tens p’ra te aromar.
O lencinho que tens para limpar,
A lágrima teimosa que te enleia!

O lençol que te aquece em noite fria.
Do sonho, ser a tua fantasia.
De corpos se fundindo ternamente.

Ser o copo que toca em tua boca.
E ser o tal, da tua noite louca...
E te ficar beijando loucamente!

Alfredo Mendes (1933)

Alfredo dos Santos Mendes nasceu na cidade de Lisboa/Portugal, em 1933. Desde cedo, e talvez devido a seus hábitos de leitura, onde predominava a poesia, treinou a composição das suas primeiras quadras, com as quais enfeitava os vasos de manjericos, que tradicionalmente, e quase como que por obrigação, tinha de estar presente no meio da minúscula folhagem verde, do célebre manjerico. O tema das quadras era e continua a ser, o namorico e as fogueiras. Essa tradição ainda hoje se mantém, por ocasião das festas dos Santos Populares. Santo António, São Pedro e São João.

Teve uma infância muito ligada à leitura. Começou a ler toda a coleção de Júlio Dinis. O seu modo de escrever, inserindo nos diálogos o modo de falar de cada região, fascinou-o. Recorda também, que era raro Júlio Dinis não incluir nos seus livros, um pouco de poesia. Júlio Dinis, serviu de trampolim para outros voos. Camilo Castelo Branco, ensinou-o a gostar ainda mais da leitura. Na poesia, o seu soneto (AMIGOS), marcou-o de tal modo, que até hoje hoje não esqueceu. Fernando Pessoa, Florbela Espanca, assim como o poeta popular António Aleixo, foram os grandes responsáveis pela iniciação em poemas.

O primeiro soneto, foi escrito em 1952, dedicado à irmã, no dia do seu casamento.

Em 1995, fixou-se na cidade de Lagos Algarve.

Em 1998, começou a colaborar com alguns jornais locais, que regularmente editavam os seu poemas, e posteriormente começou a concorrer a Jogos Florais.

Em 1999, conseguiu três menções honrosas.

Em janeiro de 2012, possui: 6 Primeiras colocações. 4 Segundas colocações. 1 Menção Especial. 28 Menções Honrosas, nas modalidades: Soneto, Glosa, Poesia Lírica, e Quadra.

Nunca editou nenhum livro.

Rachel de Queiroz (Tragédia no mar)

Parece título de filme B - mas anda mesmo morrendo muita gente. São os recentes conflitos no Balcãs, são os judeus e palestinos se matando uns aos outros, são as bombas dos terroristas bascos, ou irlandeses, ou muçulmanos, e agora essa tragédia com a plataforma de petróleo, na bacia de Campos.

As pessoas se chocam com as perdas de vida, em massa; paira nos ares da mídia um clima de catástrofe - clima, aliás, criado pela própria mídia, que consegue cada vez mais eliminar distâncias, transmitindo as cenas de terremoto ao vivo, enquanto ele ocorre; ou pegando a queda livre dos pedaços do avião em chamas.

Antigamente valia aquela observação do Eça de Queiroz, segundo a qual a nossa reação de horror e pena diante de um desastre está na razão direta da nossa proximidade. E assim a gente se impressiona muito mais com a perna quebrada da vizinha do que com a morte de milheiros de pessoas na China. Mas foi-se esse tempo. Agora a gente vê ao vivo e em cores a cara das criancinhas sendo desenterradas dos escombros, e escuta os gemidos dos que ainda estão sob o entulho. Aquela espécie de privacidade que nos era facultada pelo fato de estarmos longe acabou. Hoje ninguém está longe. É uma das características da atual psicologia. De massa, e a reação dessa dita massa ante a notícia das mortes ocorridas uma a uma. Quero dizer; numa grande cidade como o Rio morre diariamente uma meia centena dos seus milhões de habitantes - como seria fácil de verificar nos obituários dos jornais, se eles dessem realmente a conta exata dos que morrem dentro da área urbana. (Parece que a publicação se faz por amostragem, já que não confere nunca sequer com os convites para enterro publicados na mesma página, ou com o número dos presuntos desovados por aí além, em praias e matagais.)

De qualquer forma, como todos, sem exceção, estamos à espera da morte, em qualquer esquina e em qualquer momento, deveríamos receber com naturalidade a notícia de que morreram alguns tantos de nós num acidente. Não é esse o destino de toda carne? Mas não. A gente se assombra, se apavora, se revolta. Como se Deus estivesse extrapolando dos seus privilégios, tirando-nos a vida de forma injusta e exagerada. Vá lá que venha a morte, mas que ela vá pinçando de uma em uma as suas vítimas, no meio da multidão. Pois até os massacres de presos dentro dos presídios chocaram muito, contrastando mesmo com a crença pouco cristã da maioria da população de que “bandido tem mesmo é que morrer”. Pois até morte de bandido, vindo em massa, assusta. O nosso acordo com Deus Nosso Senhor é que Ele nos mate de modo salteado, disfarçando. Filosofias à parte, foi horrível mesmo esse caso da plataforma da Petrobrás - a P-36. Primeiro, a grande dor pelos que se foram de repente, no acidente inesperado. Depois, a morte afogada, que só tem pior a do fogo. Afogados naquelas águas profundas e traiçoeiras.

Mas parece que a dor pior é a dos que sobreviveram. Deixando os seus no fundo do mar. Aquele sentimento de culpa: “eles foram e eu fiquei. Por que:” Ai, a vida é assim - ou antes, a morte é assim. Além da dor da perda, o misterioso sentimento de culpa - por que eles e não eu? Verdade que há também, em muitos casos, um sentimento oposto ( que ocorre especialmente entre os mais velhos): “Eles se vão, mas eu - eu estou ficando!” Espécie de triunfo do sobrevivente.

Fonte:
Correio Brasiliense. Brasília/DF, 09 de abril de 2001

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Rachel de Queiroz (Morrer sonhando)

Sempre me sinto entre a vida e a morte, mais para a morte do que para a vida, neste calor medonho do verão do Rio. Um calor de boca do inferno, um ar pesado que pode ser tirado às colheradas. Em plena praia do Leblon, mesmo com o pé na água, se você riscar um fósforo, ele queima sem tremer até lhe sapecar o dedo. E, nesse ambiente de forno, a gente, talvez por associação, sonha com um iglu, daqueles dos esquimós, todo armado em tijolinhos de gelo, no feitio dos fornos de barro, do sertão. Dentro do iglu, em vez desse suor viscoso que nos gruda a roupa à pele, uma gotinha de água gelada de vez em quando nos pinga no rosto, ou pousa, feito uma pérola, nos pelos de nosso agasalho de couro. O iglu é, assim, uma visão de paraíso, miragem de viajante derrubado pela insolação na areia ardente do deserto.

O pior é que, ante nossas queixas, o pessoal carioca vem e diz: "Logo você, do Norte, reclamando contra o calor!" Triste ignorância. Primeiro, eu não sou do norte, sou do Nordeste. E as pessoas que ainda chamam o Nordeste de Norte são tão antigas! Do tempo em que se considerava como Norte tudo o que ficasse da Bahia para cima. A distinção entre Nordeste e Norte é um conceito moderno, que entrou em voga pela década de 30. E, no Nordeste, o clima é muito diferente do clima equatorial do Pará e do Amazonas. Norte autêntico é o calor pesado e úmido que te envolve com um ar feito de lã, só ocasionalmente aliviado por pancadas bruscas de chuva - violentas e repentinas como se a água do céu fosse despejada sobre o chão. No Nordeste o calor é limpo, claro, todo puro sol. O sol é sempre esticado e transparente como uma gaze azul, cortado aqui e além por raros flocos de nuvens brancas, postas ali só para compor a paisagem.

Tão raro é um céu nosso pejado de nuvens que a gente lá, enfadada de tanta claridade, costuma dizer, ante um promissor céu enfarruscado: "Olha como o tempo está bonito para chover!" Note-se que, para nosso alívio (o que não acontece no sul nem no norte), naquela teimosa limpidez de sol nordestino, sopra sempre, abençoadamente, uma brisa: a viração. Basta você se abrigar do sol debaixo de uma sombra, imediatamente a viração te afaga o rosto, suave e fresca. Por isso é que a viração que sopra na boca da noite, a mais constante e amena, é chamada "o aracati" - palavra que, na linguagem dos índios, quer dizer brisa boa, brisa bonita.

Tem horas, aqui no Rio, em que a gente sai de um ar refrigerado e recebe de chofre, na cara, o bafo incendiário do calor de fora. Mal comparando, recordo nessa hora o que se informava sobre a explosão atômica, logo após o primeiro emprego do artefato em Hiroshima: "Quando a bomba explode, segue-se imediatamente uma rajada de calor violentíssimo; em seguida é que sobe ao céu o cogumelo de fogo". Não é a cara do verão do Rio?

Quando penso no fim do mundo e na infinidade de previsões com que sábios e adivinhos o descrevem, só faço a Deus um pedido: "Se o mundo se acabar ainda no meu tempo, por favor, que não seja pelo fogo!"

Pode vir por contaminação atmosférica, por peste, por colisão com outro astro, por uma grande maré que afogue os continentes. Contanto que não seja pelo fogo. Parece que o fim melhor ainda seria pelo frio. Nada de explosões e chamas, só o ar gelado tomando tudo. A gente vai se encolhendo, se amontoando uns contra os outros, tiritando, batendo o queixo. E aí, sendo o frio cada vez mais forte, baixa aquela sonolência; e se adormece e se morre, sonhando. Pelo menos assim me contou um russo, que quase morreu congelado e já foi salvo dormindo.

Pelo fogo, não!

Fonte:
Correio Braziliense. 03  de fevereiro de 2002.

Irmãos Grimm (Cinderella ou A Gata Borralheira)

A esposa de um homem rico ficou doente, e quando ela percebeu que o seu fim estava se aproximando, ela chamou a sua única filha até a cabeceira da sua cama e disse,

— Filhinha, seja boa e piedosa, e assim o bom Deus sempre te protegerá, e eu olharei por ti do céu e sempre estarei perto de ti. Dito isto, ela fechou os seus olhos e morreu. Todos os dias a jovem visitava o túmulo de sua mãe e chorava, porém, ela permaneceu boa e piedosa. Quando chegou o inverno, a neve espalhou como que um lençol branco sobre o túmulo, e quando o sol da primavera se afastou novamente, o homem conheceu uma outra esposa.

A mulher trouxe consigo duas filhas para a casa com ela, que tinham um rosto lindo e eram muito belas, porém, tinham um coração malvado e negro. Começava agora um período ruim para a pobre criança adotiva.

— Será que essa pata choca vai se sentar na sala conosco? diziam elas. Quem quer comer pão, deve trabalhar para consegui-lo; vai lá com a criada da cozinha. Elas tiraram as belas roupas que ela usava, vestiram-na com um camisolão velho e cinzento, e lhe calçaram os tamancos de madeira.

— Olhem só a princesa orgulhosa, como ela está enfeitada! elas gritavam, e riam, e a conduziram para a cozinha. Lá ela tinha de fazer o trabalho difícil desde manhã até a noite, levantar-se antes do sol raiar, carregar água, acender o fogo, cozinhar e lavar. Além disso, as irmãs a maltratavam de todas as formas possíveis — zombavam dela e derramavam todas as ervilhas e as lentilhas sobre a brasa, de modo que ela era forçada a sentar e a catar tudo de novo.

À noitinha, quando ela tinha trabalhado até se cansar, ela não tinha uma cama para dormir, mas tinha de dormir ao lado da lareira perto das cinzas. E por esse motivo ela estava sempre suja e empoeirada, e elas a chamavam de Cinderella. Aconteceu que um dia seu pai estava indo para a feira, e ele perguntou às suas duas filhas adotivas o que elas queriam que ele trouxesse para elas.

— Lindos vestidos, disse uma delas,

— Pérolas e Joias, disse a outra.

— E tu, Cinderella, disse ele, o que tu desejas?

— Pai, traga para mim o primeiro galho de árvore que bater no seu chapéu ao voltar para casa. Então ele comprou lindos vestidos, pérolas e joias para suas duas filhas adotivas, e ao retornar para casa, quando ele estava cavalgando através de um verde e denso matagal, um galho de um pé de avelã raspou nele e bateu no seu chapéu. Então ele quebrou o galho e o levou consigo. Quando ele chegou em casa, ele deu às suas duas filhas adotivas, as coisas que elas tinham pedido, e à Cinderella ele deu o galho do pé de avelã.

Cinderella lhe agradeceu, foi até o túmulo de sua mãe e plantou o galho lá, e chorou tanto que as lágrimas caíram sobre ele e o regaram. Ele cresceu, contudo, e se tornou uma bela árvore. Três vezes por dia Cinderella ia e sentava debaixo da árvore, e chorava e orava, e um pequeno pássaro branco sempre vinha também na árvore, e se Cinderella expressava um desejo, o pássaro lançava para ela o que ela tinha desejado.

Um dia, porém, o rei anunciou que haveria uma festa, a qual haveria de durar três dias, e à qual foram convidadas todas as lindas e jovens garotas do país, para que o seu filho pudesse escolher ele mesmo a esposa. Quando as duas filhas adotivas souberam que elas iriam estar presente entre os convidados, ficaram eufóricas, e chamaram Cinderella e disseram,

— Penteie o nosso cabelo, engraxe os nossos sapatos e amarre os nossos cintos, pois estamos indo a uma festa no palácio do rei.

Cinderella obedeceu, porém, chorou, porque ela também teria gostado de ir com elas para o baile, e implorou à sua madrasta que a deixasse ir. — Ires tu, Cinderella! disse ela; — Estás suja e empoeirada, e queres ir à festa? Não tendes sapatos nem roupas, e ainda queres dançar! Mas como Cinderella continuasse insistindo, a madrasta disse afinal,

— Despejei um prato de lentilhas nas cinzas para ti, se conseguires catar todas elas em duas horas, tu irás conosco. A jovem atravessou a porta dos fundos que dava para o jardim, e chamou, Oh, pombinhos bonzinhos, oh, rolinhas amorosas, e todas as aves que voam no céu, venham me ajudar
As boas podem guardar
As ruins podem comer.

Então dois pombos brancos entraram pela janela da cozinha, e depois vieram as rolinhas, e no fim todas as aves do céu, vieram chiando e fazendo algazarra, e pousaram entre as cinzas. E os pombinhos balançavam suas cabecinhas e começaram a bicar, bicar, bicar, e os outros começaram também a bicar, bicar, bicar, bicar, e colheram todos os grãos que estavam bons no prato. Nem uma hora tinha se passado quando terminaram o serviço, e todos voaram para longe novamente.

Então a garota levou o prato de lentilhas para a sua madrasta, e ficou contente acreditando que agora a madrasta deixaria que ela as acompanhasse à festa. Mas a madrasta disse,
   
— Não, Cinderella, tu não tens roupa e não sabes dançar; tu serias apenas motivo de risos. E como Cinderella começasse a chorar, a madrasta disse,

— Se conseguires juntar para mim dois pratos de lentilhas das cinzas em uma hora, tu irá conosco. E ela pensou consigo mesma, que ela com toda certeza não conseguiria. Quando a madrasta esvaziou os dois pratos de lentilhas entre as cinzas, a donzela atravessou a porta dos fundos que dava para o jardim e gritou, Oh, pombinhos bonzinhos, oh, rolinhas amorosas, e todas as aves que voam no céu, venham me ajudar.
As boas podem guardar
As ruins podem comer.

Então os dois pombos brancos entraram pela janela da cozinha, e depois vieram as rolinhas, e finalmente todas as aves do céu, vieram chiando e fazendo algazarra, e pousaram entre as cinzas. E os pombinhos balançavam suas cabecinhas e começaram a bicar, bicar, bicar, e os outros começaram também a bicar, bicar, bicar, bicar, e colheram todos as sementes que estavam boas no prato. Nem meia hora tinha se passado quando terminaram o serviço, e todos voaram para longe novamente.

Então a donzela levou os pratos para a madrasta e ficou muito feliz, acreditando que ela poderia ir com elas a festa. Mas a madrasta disse,

— Nada disto vai adiantar; tu não irás conosco, porque não tens roupa e não sabes dançar; Nós teríamos vergonha de ti! Dizendo isso, virou as costas para Cinderella, e desapareceu, com suas duas filhas orgulhosas.

Como ainda não havia ninguém em casa, Cinderella foi até o túmulo de sua mãe, debaixo do pé de avelã, e clamou,

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

Então o pássaro lançou para ela um vestido de ouro e prata, e sapatos enfeitados de seda e prata. Ela colocou o vestido com toda pressa, e foi para a festa. As irmãs adotivas e a madrasta entretanto não a reconheceram, e pensavam que ela devia ser uma princesa estrangeira, porque ela estava tão linda em seu vestido dourado. Jamais poderiam pensar sequer que ela fosse Cinderella, e acreditavam que ela tinha ficado em casa sentada na sujeira, catando lentilhas das cinzas. O príncipe foi encontrá-la, pegou-a pela mão e dançou com ela. Ele não quis dançar com nenhuma outra donzela, e jamais soltava de suas mãos, e se alguma outra pessoa vinha para convidá-la, ele dizia,

— Ela é a minha companheira.

la dançou até o anoitecer, e então ela quis ir para casa. Mas o filho do rei disse,

— Irei contigo e te farei companhia, porque ele queria conhecer a família da bela donzela. Ela fugiu dele, todavia, e se escondeu na casa do pombo. O filho do rei esperou até que o pai dela chegou, e então ele lhe disse que a estranha donzela havia se escondido na casa do pombo. O velho pensou, — Terá sido Cinderella? e lhe trouxeram um machado e uma picareta para que ele pudesse reduzir a pedacinhos a casa do pombo, mas não havia ninguém dentro.

E quando eles chegaram em casa Cinderella estava com suas roupas sujas mexendo nas cinzas, e uma lamparina pequena e fraca que estava queimando na lareira, pois Cinderella tinha pulado rapidamente dos fundos da casa do pombo e correu para o pé de avelãs, e lá el tirou o seu belo vestido e o colocou em cima do túmulo, e o pássaro o levou de volta novamente, e depois ela voltou para a cozinha entre as cinzas com seu vestido cinzento.

No dia seguinte, quando a festa começou novamente, e os pais dela e as duas irmãs tinham ido mais uma vez, Cinderella foi até o pé de avelã e disse

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

Então o pássaro lançou para ela um vestido mais lindo do que o dia anterior. E quando Cinderella apareceu na festa com esse vestido, todos ficaram maravilhados com a sua beleza. O filho do rei havia esperado até que ela chegasse, e imediatamente a pegou pelas mãos e não dançou com nenhuma outra, apenas com ela. Quando outros vinham e a convidavam para dançar, ele dizia,

— Ela é a minha companheira. Quando a noite chegou ela quis sair, e o filho do rei a seguiu e queria ver em que casa ela tinha entrado.

Mas ela escapou dele, e correu para o jardim que havia atrás da casa. Lá ficava uma árvore bela e alta onde havia as peras mais maravilhosas. Ela subiu com tanta agilidade entre os galhos, como se fosse um esquilo, que o filho do rei não percebeu onde ela tinha ido. Ele esperou até que o pai dela chegasse, e disse-lhe, A estranha donzela fugiu de mim, e eu acho que ela subiu o pé de pera. O pai dela pensou, Teria sido Cinderella? então ele pegou um machado e derrubou e destruiu a árvore, mas não havia ninguém nela. E quando eles chegaram à cozinha, Cinderella estava entre as cinzas, como sempre, pois ela tinha pulado do outro lado da árvore, tinha levado o lindo vestido para o pássaro que ficava no pequeno pé de avelãs, e vestiu o seu vestido cinzento.

No terceiro dia, quando seus pais e suas irmãs já tinham ido para a festa, Cinderella foi mais uma vez ao túmulo de sua mãe e disse para a pequena árvore

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

E então o pássaro lançou para ela um vestido que era mais esplêndido e magnífico do que qualquer um que ela já tivesse visto, e os sapatos eram de ouro. E quando ela foi para a festa usando o vestido, ninguém nem conseguia falar de tanto deslumbramento. O filho do rei dançou somente com ela, e se alguém a convidasse para dançar, ele dizia,

— Ela é a minha companheira.

Quando a noite chegou, Cinderella queria ir embora, e o filho do rei estava ansioso para ir com ela, mas ela fugiu dele tão rapidamente que ele não conseguiu segui-la. O filho do rei, no entanto, usou de um estratagema, e tinha mandado que toda a escada fosse untada com piche, e então, quando ela fugiu, o sapato esquerdo da donzela ficou colado. O filho do rei o apanhou, e ele era pequeno e gracioso, e todo de ouro.

Na manhã seguinte, ele levou o sapato para o seu pai, e disse para ele, — Ninguém será a minha esposa, exceto aquela cujo pé couber dentro destes sapatos de ouro.
   
Então as duas irmãs ficaram contentes, porque elas tinham pés bonitos. A mais velha delas entrou com a sandália no seu quarto e quis experimentá-lo, e a mãe dela ficou por perto. Mas ela não conseguiu colocar o seu dedão enorme dentro dela, e a sandália era muito pequena para ela. Então a mãe dela lhe deu uma faca e disse,

— Corte o dedão fora; quando fores a rainha não precisarás mais andar a pé. A donzela cortou o dedão fora, forçou o pé dentro do sapato, engoliu a dor, e foi até o filho do rei. Então ele a levou em seu cavalo como sua noiva cavalgou para muito longe com ela. Contudo, eles foram obrigados a passar perto do túmulo, e lá, em cima do pé de avelãs, estavam dois pombos que gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Há sangue dentro do sapato,
O sapato é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está te esperando.

Então ele olhou o pé dela e viu que havia sangue pingando dele. Deu a volta com o cavalo e levou a falsa noiva de volta pra casa, e disse que ela não era a verdadeira, e então a outra irmã também quis colocar o sapato. Então ela entrou no seu quarto e os dedos dela entraram no sapato sem problemas, mas o seu calcanhar era grande demais. Então a mãe dela pegou uma faca e disse,

— Corte um pedaço do seu calcanhar; quando fores rainha não precisarás mais andar a pé. A donzela cortou um pedaço do seu calcanhar, forçou o seu pé até entrar no sapato, engoliu a dor, e foi até a casa do filho do rei. Ele a levou em seu cavalo como sua noiva, e cavalgou para longe com ela, mas quando eles passavam perto do pé de avelãs, dois pombinhos estavam sentados no galho e gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Há sangue dentro do sapato,
O sapato é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está te esperando.

Ele olhos os pés dela e viu que sangue estava escorrendo de seu sapato, e que ele havia manchado as meias brancas dela. Então ele virou o seu cavalo e levou a falsa noiva novamente para casa. Esta também não é a verdadeira, disse ele, você não tem uma outra filha?

— Não, disse o homem, — Há ainda uma pequena e raquítica ajudante de cozinha que a minha falecida esposa me deixou, mas possivelmente ela não poderá ser a noiva. O filho do rei exigiu que fosse chamá-la para que viesse até ele; mas a mãe respondeu, — Oh não, ela é muito suja, ela não pode se apresentar! Ele voltou a insistir, e Cinderella teve de ser chamada.

Ela lavou primeiro as suas mãos e o seu rosto, e depois foi e fez reverência diante do filho do rei, que ofereceu a ela o sapato de ouro. Então ela se sentou em um banquinho, e tirou de seus pés o pesado tamanco de madeira, e os colocou dentro do sapato, o qual entrou como uma luva. E quando ela se levantou e o filho do rei olhou para o rosto dela ele reconheceu a linda donzela que havia dançado com ele e gritou,

— Essa é a noiva verdadeira! A madrasta e as duas irmãs ficaram horrorizadas e pálidas de tanto ódio; ele, entretanto, levou Cinderella em seu cavalo e cavalgou para longe com ela. Quando eles passavam perto do pé de avelãs, os dois pombinhos brancos gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Não há sangue dentro do sapato,
O sapato não é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está com você.

E depois de terem dito isso, os dois pombinhos desceram voando e pousaram nos ombros de Cinderella, um à direita, e o outro à esquerda, e ali permaneceram sentados.

Quando o casamento com o filho do rei foi celebrado, as duas falsas irmãs vieram e queriam conquistar os favores de Cinderella e dividir com ela a sorte conquistada. Quando o casal de noivos foram para a cidade, a mais velha ficou do lado direito e a mais jovem do lado esquerdo, e os pombinhos arrancou um olho de cada uma dela. Depois que elas voltaram para casa, a mais velha ficou à esquerda, e a mais jovem a direita, e os pombinhos arrancaram o outro olho de cada uma delas. E assim, por causa da maldade e da falsidade delas, elas foram punidas com a cegueira até o fim da vida delas.

Fonte:
Contos de Grimm

Jangada de Versos do Ceará (11) – Quintino Cunha

José Quintino da Cunha
Itapajé  (1875 -1943) Fortaleza


ENCONTRO DAS ÁGUAS
(Rios Negro e Solimões)

Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este
É o rio Negro, aquele á o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como as saudades com as recordações.

Vê com se separam duas águas.
Que, se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

 É um  simulador só, que as águas donas
Desta terra não seguem curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;

Para o velho Amazonas, Soberano
Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!

Olha esta água, que é negra como tinta,
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto, é também limpa, engana;
É direito a virtude quando passa
Pela flexível virtude quando passa

Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza ais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
 Neste céu d’água, brutalmente enorme.

Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...

A PIRACEMA

Aqui é um lago, feito de água clara;
Visualmente negro se mostrando;
Calmo que sobre si passa uma igara,
Como no espaço um passarinho voando.

Sol, das dez da manhã. O amor compara
Este quadro à virtude. Um vento brando...
Mas lá fora no rio. Ele aqui pára,
O lago, a mata e o Céu quietos deixando.

Do anivelado espelho d'água, apenas
Manchado levemente por pequenas
Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,
Frágeis, cambiantes, rápidas fugindo,
Como travessas conchas madrepérolas.

VISTA IGNOTA

Há um ruído infernal, dentro do leito
Do rio. A lontra rosna. A capivara
Espavorida esconde-se no estreito
De um paraná, que a enchente ali formara.

O jacaré, levando tudo de eito,
Foge, estrugindo horrivelmente; e, para
Mais aumentar o grande ruído feito,
O rio inteiro se convulsionara...

E, enquanto em medo tudo se alvorota,
Nesta paisagem visualmente ignota,
Mas facilmente do índio percebida,

Uma anta firme, calma que arrebata,
Corta o fundo das éguas, distraída,
Como se fosse andando pela mata!...

VAZANTE
O mês de julho mostra um tempo novo
Em tudo: à margem pousa alegre bando
De borboletas, cor de gema de ovo,
O declive das águas anunciando.

Da floresta central, de lá de ignotas
Matas, voltam, da imensa arribação,
Os maguaris, as garças e as gaivotas,
- A beleza das praias no verão!

E o uirapajé cantando, e a saracura
Cantando, em fim o plácido barulho
Das aves todas, dá-nos a envoltura
Dessas manhãs esplêndidas de julho.

A própria vida mais amor exalta,
Nesses dias magníficos, sem-par,
Quando mais se ouve o canto da pernalta,
No alegre anseio de nidificar.

EPÍLOGO
Só de um lance de vista a ideia morre,
Sem ver no Solimões grandeza alguma;
Porque assim de relance, mal parece
Um vasto espelho de moldura verde
Onde o Céu tem costume de mirar-se!

Vede-o alternadamente:

                                      É um mar tranquilo
Onde passa um navio. Agora, é a praia
— Branca toalha de Deus ao Sol corando,
Uma igara, que o desça, a vida lembra
No declive do mundo enfurecido,
E ora tão calmo, das paixões humanas.
A garça que ali pouse, é o ponto branco
Da pulcra proposição: — a ave é a poesia.
Se porventura o vento o agita, um coro
De banzeiros, em lágrimas desfeito,
Ecoa ao longe, no íntimo das matas!

O louro-rosa, o cedro, a samaumeira,
Quando derivam na voraz corrente,
Lembram destroços de cruel derrota
Da mais tremenda luta pela vida.
Quando à margem fervilha a piracema
De jaraquis, pacus, mandis, sardinhas,
Frágeis, cambiantes, madreperoladas,
Vezes subindo à flor d'água, e de novo,
Quando o dourado ou o boto lhes persegue,
Caindo como bátegas de chuva
Na coberta de zinco das barracas,
Igualando-os, no meio, a piraiua
Como a queda de um'árvore na mata,
Ou mesmo a pirarara, arremedando
As lavadeiras quando batem roupa;
Quando estrugindo o jacaré bubuia,
Na defesa dos filhos pequeninos,
Se humana voz em terra os arremeda;
Quando, à mercê da simples correnteza,
De bubuia, nas árvores que descem,
As gaivotas também descem reunidas,
Como um bando de náufragos, que buscam
Salvação nos destroços, que flutuam,
Da galera infeliz da humanidade,
Se tal galera a mata imensa fosse;
E quando outras no ar recurvam voares
E o corta-água e a ariramba gaivoteiam,
Assim, sim, já se pode ter em mente
Que o território desse rio imenso,
Sem marcos miliários confinantes,
É um país ideal, cheio de assombros,
E de verdades e d'encantos cheio!

Vede-o profundamente:

                                      No seu seio
Milhões de seres encantados moram,
Mitologicamente idealizados:
De Uirará, de Unutara, de Honorato,
À virginal Ararambóia, à Iara,
Iara — a formosa imperatriz netúnica,
A sereia fluvial, por cujo canto,
Perdera a fala a fauna ictiológica,
Subjugando-a, vencendo-a, dominando-a,
Como o próprio Tupã, do alto de Iuaca

Na pátria pois das ilhas flutuantes,
Onde Boiaçu nos dera a noite.
E onde Membiíra rosna como a onça,
Quando os botos suspiram como gente,
Os botos, filhos da encantada corte,
Nesse canto, patrícios, a poesia
Não flutua, mas vive como os peixes!...
.............................................................

Dá-me, Amor Pátrio, com que agora o veja
De um moroso galerno, espanejado,
Como uma taça imensa, onde Iara beba
À saúde do Sol que nos aclara,
Com esse licor original de sombras
— Sombras de nuvens, dissolvidas n'água!

Fontes:
– CUNHA, Quintino. Pelo Solimões : versos norte-brasileiros. Paris: 1907.
–  Antonio Miranda

Teófilo Braga (A da Varanda)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um mercador que tinha uma filha linda como as estrelas e ladina como os diabos. Pegado à varanda dela era o quintal do rei. Todas as tardes ela ia regar as suas flores, e tinha um grande manjericão. O rei começou a gostar muito dela, e já a esperava à hora certa para a ver, e perguntava-lhe sempre:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

Ela dava-lhe o troco, dizendo:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei começou então a ver se podia pregar uma peça à rapariga, e aproveitou uma ocasião em que o mercador tinha saído para fora da terra. Arranjou uma tenda com quinquilharias, e foi vestido de tendeira a casa dela. A filha do mercador mandou-a entrar sem suspeitar mal; o rei levava um anel muito rico, que deixou a rapariga encantada. Gabou-o muito com pena de o não poder comprar; mas a tendeira disse-lhe:

– Eu, minha menina, dou-lhe o anel se me der um beijinho; estou perdida por si; mesmo que seja por cima deste véu que trago pela cara.

Quem mal não pensa mal não vê, a rapariga deu o beijo e ficou com o anel.

De tarde quando foi regar as flores, apareceu o rei, como de costume:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela retrucou logo:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei, que ficou calado, continuou:

– E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…

A rapariga ficou capaz de morrer; fez-se muito vermelha e jurou de si para si que se havia de vingar. Vai um dia, veste-se de preta, e foi a casa do rei oferecer-se para criada; primeiro combinou com o seu criado, que de noite botasse na varanda do rei a cabra que tinham no quintal.

O rei tomou logo a pretinha para si, porque era muito engraçada, e com medo que ela lhe fugisse deitou-a num quarto ao pé do seu, com uma fita amarrada ao braço dela.

De noite o rei puxou pela fita e ainda a pretinha respondeu; mas assim que o rei pegou no primeiro sono, a rapariga desamarrou-se, foi buscar a cabra muito devagarinho, pô-la em seu lugar, e foi-se embora.

Quando o rei acordou, lembrou-se da pretinha, que era de encantar, puxou-a pela fita para a sua cama, mas a cabra começou a berrar, e o rei espantado a gritar que tinha o diabo em casa; acudiu muita gente e todos viram a cabra em vez da preta no quarto do rei.

No outro dia à tarde, o rei foi ver a filha do mercador, que andava a regar e perguntou-lhe:
– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela, em despique:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

Diz o rei:

– E o beijinho por cima do véu?…

E ela:

– E a cabra que fez méu, méu?…
   
O rei conheceu que ela o tinha desfrutado, mas achou-lhe graça. A rapariga não quis ficar por aqui. Soube que o rei ia para uma caçada, vestiu-se de homem, montou numa mula, e levou consigo uma máscara, e foi seguindo a comitiva de longe.

Depois de muito andar, o rei disse para parar um pouco, e que o deixassem sozinho. Assim que os cavaleiros se afastaram para longe, a rapariga tira a máscara da algibeira, saca de um punhal e vai para o rei, como quem quer matá-lo, e grita-lhe:

– Beije já o rabo da minha mula, senão mato-o aqui já.

Naqueles apertos, o rei como estava ali sozinho beijou o rabo da mula.

A rapariga voltou para casa; no outro dia estava regando as flores, e o rei apareceu, e fez as perguntas do costume:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

Diz o rei:

– E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…

Ela:

– E a cabra que fez méu, méu?…

O rei:

– Não se finja tão fula.

Ela:

– E o beijo no rabo da mula?

O rei lembrou-se do acontecido, achou-lhe muita graça, e quando o mercador voltou à terra foi pedir-lhe a filha em casamento, porque com uma mulher tão esperta havia de ser por força muito feliz.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Laurindo Ribeiro (Poesias Avulsas) III

AMOR-PERFEITO

Secou-se a rosa... era rosa;
Flor tão fraca e melindrosa,
Muito não pôde durar.
Exposta a tantos calores,
Embora fossem de amores,
Cedo devia secar.

Porém tu, amor-perfeito,
Tu, nascido, tu afeito
Aos incêndios que amor tem,
Tu que abrasas, tu que inflamas,
Tu que vegetas nas chamas,
Por que secaste também?!

Ah! bem sei. De acesas fráguas
As chamas são tuas águas,
O fogo é água de amor.
Como as rosas se murcharam,
Porque as águas lhes falharam,
Sem fogo murchaste, flor.

É assim, que bem florente
Eras, quando o fogo ardente
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que, já foi meu coração.

Secaste, porque esse pranto
Que chorei, que choro há tanto,
De todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua
Secaste, como sem água,
A triste rosa secou.

Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles
Meu presente e meu porvir,
Faziam cruéis ensaios
Para matar-me. Eram raios,
Tinham por fim destruir.

Destruíram-me: contudo
Perdoo o pesar agudo,
Perdoo a pungente dor
Que sofri nos meus tormentos,
Pelos felizes momentos
Que me deram nesta flor.

Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito,
Quando te vi florescer!
Ai! não houve criatura
No prazer e na ventura
Que me pudesse exceder.

Ai! seca flor, de bom grado,
Se tanto pedisse o fado,
Quisera sacrificar
Liberdade e pensamento,
Sangue, vida, movimento,
Luz, olfato, sons e ar.

Só para ver-te florente,
Como quando o fogo ardente,
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que já foi meu coração.

DOIS IMPOSSÍVEIS

Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo
Onde, por misterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade,
Se de um lado a razão seu facho acende
De outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
Só da razão o facho bruxoleia
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que mesmo apaixonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te,
Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que deles copiou na fantasia.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional

Carlos Heitor Cony (O Bem Amado das Pulgas)

Até que era asseado, tomava banho todos os dias, mas tinha o sangue que ele considerava "doce", daí que era perseguido desde a remota infância por pulgas - das quais se julgava alvo preferencial e inimigo irreconciliável.

Pegou pulga até mesmo durante uma viagem ao Canadá - país civilizado que ele julgava isento de pulgas. Lembrei a ele que a pulga canadense talvez fosse importada, ele a levara na bagagem, junto com um complicado equipamento para pescar acho que trutas, num riacho perto de Quebec.

Certa vez ele armou uma colossal hipótese para explicar sua birra contra as pulgas, ou mais exatamente, das pulgas contra ele:

Imagine o Maracanã cheio, 200 mil pessoas como no final da Copa de 50. Além das 200 mil pessoas, os 22 jogadores, os reservas, o juiz, os dois bandeirinhas, os fiscais da Fifa, os policiais, os gandulas, os fotógrafos, os penetras vários. Ao todo, umas 210 mil pessoas. Vai começar a partida. O juiz coloca a bola no meio do campo e prepara-se para o apito inicial. Nisso, uma pulga - uma única e escassa pulga - está em cima da bola e sente que será chutada. Resolve sair de cima da bola. Tem à disposição 210 mil pessoas, nem todas banhadas naquele dia, nem todas de roupas trocadas. Pois bem, 15, 20 minutos de bola rolando no campo, a pulga vem diretamente para mim. Num ângulo de 360 graus, com toda uma multidão a seu dispor, ela vem por ínvios caminhos até onde estou, atraída pelo meu sangue doce.

Apreciei devidamente a hipótese levantada por ele. Mas se houvesse 210 mil pulgas em cima da bola, todas elas iriam sugar seu doce sangue? Ou se dividiriam democraticamente pelo estádio, cabendo uma pulga a cada torcedor?

Ele não previra a hipótese dentro da hipótese. Foi com horror que se imaginou atacado por 210 mil pulgas ao mesmo tempo.

Nunca mais frequentou estádios, vê jogos pela TV.

Fonte:
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro/RJ. 15  de junho de 2002.

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) II


SER SUPREMO

Primeiro, último e único
Está certo em linhas tortas
O acento é sempre tônico
Está nas folhas vivas ou mortas
Não sabe o que são derrotas

Espírito, carne e sabedoria
Na difusão dos ensinamentos
Pela nossa hipocrisia
Pelas contas, é mais, sem menos

Finito e infinito
No futuro e no presente
Está na Lei, está escrito
Para o proscrito e o ausente

Quem quer um conselho, tome
Não se fale em seu nome
Não se faça uma promessa
Não se cale o sobrenome
Nem pense que não interessa
Pra que tanta pressa?

Ao sinal dos tempos vãos
E dos pedidos extremos
O que será de nós senão
Apelar a um ser supremo.

VALSA ESPANHOLA

Andando pelo Bétis de Andaluzia
À beira do Mediterrâneo vejo o mar
Hoje, oh! Guadalquivir
Me leva para o mar

A procura de Dolores Sierra
Pela terra, feito abelha
Nas pistas vermelhas
Com espelhos volto a ver
Meu bem querer

Naquele navio, por um fio
Por instantes torno a sonhar
Com aquele olhar

Não tem mais beira do cais
Nem tem mais castanholas
Não tem companhia
Sem sarjeta, sem peseta
De noite e de dia
Ninguém lhe dá mais

Volto à realidade dura do trabalho e solidão
Com a ilusão de um dia te encontrar
E nunca mais deixar
Partir para Barcelona
Viver sob a mesma lona
Sem pensar que um dia houve adeus
E agradecer de novo a Deus
A vida afora

SER FELIZ E BEM VIVER

O bom cabrito não berra
Mas não tenho que engolir sapo
Nesse mundo quem não erra
É porque está no buraco

Esse cara é um louco
Mas ele tem muito juízo
Todo mundo tem um pouco
Da excelência do "ISO"

Quem muito abaixa a cabeça
Mostra o fundo das calças
Faça com que aconteça
As coisas sempre de graça

Mas quem tem a costa larga
Pode aguentar o tranco
De trabalho, dessa carga
Eu estou lhe sendo franco

Esses ditos populares
São pra alertar você
Para não abdicares
De ser feliz e bem viver

CONFLITO INTERIOR

Corre em minhas veias
Esse sangue colorido
Como se fosse uma teia
Com o fio corrompido
Entre lapsos de tristeza
E alegria que me tiram a sutileza
Sem forças para dominar
Esse amor que é um mar

Tudo se complica
Ao te ver passar
Seguir sem pensar
Isso é o que implica
Demonstrar nobreza
Na tua presença
Prefiro ausência
A mostrar tristeza

Enquanto luto contra esse amor
Que já muito intenso
Enquanto eu fraco for
Me deixa mais tenso
Sem te poder ter
Preciso força
Prá não perder o senso

SURREAL

Bem no deserto profundo
Bem no meio do oco do mundo
Num segundo percorro uma vida
Sem ter peso e sem medida

Nunca se sabe o que vem
Certeza também ninguém tem
Olhar para frente ou pra trás
Sem ficar com o pé atrás

Se eu tivesse a razão principal
Sairia na folha central
Poderia encarar o futuro
Pra sair do imenso escuro

Tomando um caminho aberto
Certamente seria concreto
Caminhando ou voando veloz
Como um bicho ou um ente feroz

No caminho poente do sol
Ou do cometa do arrebol
Na chapada ou no pantanal
Entre o surreal e o real

AMOR E PAIXÃO

O amor é como o tempo
Lúcido, firme, constante
Paixão é como o vento
Extravagante

Sem direção
Inconsequente
Louca
Sabor ardente

No mar de amor e paixão
Maior abismo
Fosso profundo
Tamanho do mundo

Profano e puritano
Tal qual pororoca
Tal qual rio e oceano
Tal qual cinema e pipoca

UNIVERSO PARALELO

Imagino o mundo de Nárnia,
Onde preconceitos, vaidades e culpas
Não podem entrar.
Ah! Aslam, criador de todo esse universo
Seu protetor em prosa e verso
A feiticeira branca foi derrotar

Assim aqui também quimera
Num universo paralelo
Das casas de troca de pares
As coisas fora de lugares
Ao som de Bolero de Ravel
Nem parece o castelo Cair Paravel

Fonte:
Clube Caiubi

Auta de Souza (Horto)

Análise por Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura

O livro Horto, de Auta de Souza, é a história de uma grande dor. Formou-o a autora recordando, sentindo, penando. Não se tratava apenas de um relato de vida em versos, tampouco de uma escritora feminina oitocentista, preparada apenas para amar Cristo sob todas as circunstâncias, ela também rompia as barreiras da escrita feminina, pois nessa época, a sociedade estava voltada em especial, para conferir visibilidade social ao homem, não a mulher, havia o sexismo da crítica, a figura feminina era preparada para “anjo do lar”.

Sua poesia é dotada de um lirismo cheio de pureza e com uma vocação legitimada que marca um estilo próprio, vocação essa reconhecida por ela mesma, ao se definir como “noiva da poesia”, amava o verso. Despreocupada com qualquer engajamento literário, não se filiou a nenhuma escola. O gosto pelo individual em detrimento a objetividade da vida, mística de seus versos, permite o questionamento dos críticos literários em torno de seu estilo: simbolista? parnasiano? romântico? Do ponto de vista da técnica inconfundível do uso de letras maiúsculas nos substantivos comuns, na busca de evidenciar um conteúdo sugestivo e ainda, se considerarmos o caráter místico e religioso de sua obra, revela-se o Simbolismo, a exemplo disso “Crepúsculo”:

O Ângelus soa vagarosamente
A noite desce plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
chorando a tarde, a noiva peregrina.


Evidentemente o título do livro Horto, numa construção metafórica, faz menção ao local em que Jesus se refugiou para os seus últimos momentos de agonia na cruz e menção ao interior do eu-poético, marcando assim a religiosidade e o subjetivismo, marcas também do Simbolismo. Percebe-se que em seus escritos também se refletem as leituras de românticos como Castro Alves, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, esses dois últimos responsáveis pela entrada da literatura em sua vida. Não há como negar que o estilo desses autores se presenteia em sua poesia, há um forte apelo do momento com marcas de romantismo. Atrelando-se a esse estilo, de certa forma o Simbolismo, que é nela uma continuação do Romantismo, tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização, o subjetivo, o vago, o misterioso, o ilógico, há sim um neo-romantismo, até porque os dois em sua obra não se anulam, se complementam.

Há ainda um inegável conhecimento da forma: soneto com 16 versos, que abre com os dois primeiros decassílabos do segundo quarteto, como epígrafe:

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da igrejinha em ruínas...

Um prestígio parnasiano em sua obra, o que explica a presença de Olavo Bilac como responsável pelo prefácio da obra. O poeta compartilha com a criação poética de Auta de Souza ao fazer referência à obra “Horto”: “[...] O labor pertinaz de uma artista, transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas esperança em pequenas jóias”.

Tratava-se antes de tudo, de uma jovem solitária que buscava em sua poesia a aceitação da existência, versos de sua alma e a razão de viver. Trata-se de uma poeta do “sensível” e “invisível”, que põe em seus versos o discurso de Jesus, num diálogo de confiança.

[...]
“Filha adorada que o teu gemido
Ergueste n’ asa de uma oração,
Na treva escura sempre envolvido,
Por que soluça teu coração?”
[...]


Nos versos da poeta pode-se estabelecer uma relação do sentimento de vida do eu poético comparando-os ao momento de sofrimento de Jesus na cruz, Auta de Souza sofreu unida à cruz do Salvador. E foi esse o grande e iluminoso consolo, principalmente para familiares e amigos que viam a cada momento definhando uma jovem pela doença conhecida como mal-do século (tuberculose), também como “A dama branca”. Não se pode esquecer que o modelo católico ocidental da época preparava as moças católicas para a morte, identificando-a com os sofrimentos do Cristo.

Em palestra pronunciada em Macaíba, pequena cidade Rio Grande do Norte, no dia 12 de setembro de 1976, em comemoração ao centenário de nascimento da poeta (1876-1976), o professor e membro da Academia de Letras, José Melquiades, considerou exagero a afirmação de que a poesia de Auta de Souza fosse apenas uma poesia essencialmente católica. Se considerarmos o poema “Versos ligeiros”, percebemos a amplitude de uma escritora que não está emblemática a um tema, mas sim a um “devaneio cósmico que se insere em sua realidade”, que ousa quebrar tabu e que não deve apenas ser reconhecida como poesia “católica”, mesmo que seus textos sejam marcados com alusões aos cânones católicos e influência de formação da época. Na obra, eles são resignificados como metáforas, numa busca do eu-poético em alcançar a plenitude em Jesus Cristo, independentemente de sua condição humana . Ela deixou sim, uma mensagem espiritual, não apenas para igreja, mas para as crianças de sua terra, para a sua família, para os amigos, desnudando o seu cotidiano de forma sublime, poética e não divina. Assim, a sua poesia como “Num leque”, abre-se para possibilitar um sopro novo e não apenas crenças cristalizadas. É possível perceber em Auta de Souza uma poesia simples, mas madura, que rompe a barreira de um Romantismo “piegas” e navega na imaginação “doce” de uma realidade “dura”, marcada muitas vezes pelo realismo que se projeta em temas do cotidiano, a conferir-lhes em sua obra os poemas: “Versos ligeiros”, “No álbum de Dolores”.

“A noiva do verso” despediu-se cedo da vida, não cantou “amores” como era de esperar de uma jovem de sua idade, a convivência com “a dama branca” impedia-lhe de uma vida natural e assim o sofrimento diário, junto à intimidade do verso, levou-a uma relação maior com um outro amado, Jesus Cristo, sentimento esse que aparece como exemplo de contemplação ao divino e refúgio para lhe aliviar o constante sofrimento. “A via crucis de Jesus” se repete no livro Horto, através de um eu lírico carregado de um sentimento panteísta que junto ao cotidiano dessa jovem poeta, promove a transformação do universo poético e místico em um sentimento paradoxal de viver e morrer em plenitude.

RENASCIMENTO

A Olegária Siqueira

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!
 
Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto!


Fonte:
Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura, disponível em Passeiweb

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Ariano Suassuna (Poemas Escolhidos) II

AQUI MORAVA UM REI

Aqui morava um Rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão
Pedra da sorte sobre o meu destino
Pulsava junto ao meu seu coração

Para mim, seu cantar era divino
Quando ao som da viola e do bordão
Cantava com voz rouca o desatino
O sangue o riso e as mortes do sertão

Mas mataram meu pai, desde esse dia
Eu me vi como um cego sem meu guia
Que se foi para o sol, transfigurado

Sua Efígie me queima, eu sou a presa
Ele a brasa que impele ao fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto Ensanguentado

A MORTE DO TOURO MÃO DE PAU
Musicado por Antonio Nóbrega

"Ariano Suassuna escreveu esse poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"


 Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.

 Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.

 Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:

 - "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!

 O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!

 Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensangüentados.

 A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:

 Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:

 -"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!

 Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensangüentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

 ABERTURA SOB PELE DE OVELHA

Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila — inevitável,
meu Sangue traça a rota deste Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a Pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto — incendiado.

Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do Ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.

Poema que abre 
O ROMANCE D´A PEDRA DO REINO E O PRINCÍPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA,

Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!